segunda-feira, 4 de abril de 2016

Canto XXVII


PURGATÓRIO


Canto XXVII


            O Canto inicia por umas referências astronômicas/astrológicas destinadas a indicar a hora do dia no Purgatório. Era a hora em que o Sol “manda os primeiros raios/ lá onde o seu criador derramou o sangue” (/.../ i primi raggi vibra/ là dove il suo fattor lo sangue sparse-  v.1-2), quer dizer, o dia nascia em Jerusalém. Logo, no ponto extremo do globo que lhe é oposto, no Purgatório, o dia findava. No ponto mais ocidental, indicado pelo rio Ebro (Espanha) (v.3), sob o signo de Libra, era meia-noite enquanto no ponto mais oriental, indicado pelo Ganges (Índia) (v.4), era meio-dia... (cf. diagrama em Sayers, op. cit., entre p. 350 e 351).  

            Aparece então aos três poetas -- neste terraço dos luxuriosos em que ainda estão -- um “alegre anjo de Deus” (l’angel di Dio lieto- v.6), o anjo da Castidade, que fora das chamas está a cantar uma das bem-aventuranças (“Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus”), conforme o evangelho de S. Mateus, 5:8, cujas primeiras palavras o v.8 cita em latim (1).  A citação dessa bem-aventurança é bem adequada à situação dos poetas, que estão prestes a deixar o sétimo (e último) terraço do Purgatório. Na sequência, o Anjo se dirige aos três nestes termos:  

/.../ “Più non si va, se pria non morde,
anime sante, il foco: intrate in esso,
e al cantar di là non siate sorde”     (XXVII, 10-12)

/.../ “Não se vai adiante, ó almas santas,/ sem antes passar pelo fogo: entrai nele,/ e ao canto de lá não sejais surdos 


William Blake- O muro de fogo
            Ao ouvir isso, Dante, aterrorizado, fica “como aquele que é posto na cova” (qual è colui che ne la fossa è messo- v. 15), i.e. como um cadáver, “imaginando intensamente/ os corpos humanos que já vira queimar” (/.../ imaginando forte/ umani corpi già veduti accesi- v. 17-18), certamente dos condenados à morte na fogueira, uma punição legal adotada em sua época. Aliás, ele próprio estava sujeito a essa pena, caso voltasse a Florença, da qual fôra banido, quando caiu no ostracismo político... Virgílio o encoraja a entrar no fogo, afirmando que  aqui pode haver tormento mas não morte” (qui può esser tormento, ma non morte- v. 21) e fazendo-o lembrar-se do episódio de Gerión (Inf., XVII),  quando ele guiou o inseguro Dante a salvo no Inferno, ambos transportados pelo espaço na garupa desse monstro e vendo lá em baixo os que ali sofriam suas penas eternas. Mas o florentino fica imobilizado e rígido pelo medo. Só atende ao pedido de Virgílio após este dizer: “Agora vê, filho:/ entre Beatriz e ti, só há este muro  (/.../ “Or vedi, figlio:/ tra Bëatrice e te è questo muro”- v. 35-36). Nos versos seguintes (v.37-39)  Dante se compara a Píramo que, agonizante, abriu os olhos ao ouvir o nome da amada Tisbe. Imaginando que esta fora devorada por um leão, comete suicídio. Depois, ela também acaba se matando, próximo de uma amoreira, cujos frutos, desde então, passaram a ter a cor de seu sangue... Essa história dos dois infelizes amantes da Babilônia foi narrada por Ovídio nas “Metamorfoses”. É mais uma das muitas extraídas da mitologia clássica que servem de apoio às comparações formuladas por Dante-autor ao longo do poema  (2).   

            Dante-personagem sente a intensidade do seu tormento, mas é assim confortado por Virgílio:

Sì com’ fui dentro, in un bogliente vetro
gittato mi sarei per rinfrescarmi,
tant’ era ivi lo ‘ncendio sanza metro.

Lo dolce padre mio, per confortarmi,
pur di Beatrice ragionando andava,
dicendo: “Li occhi suoi già veder parmi.”    (XXVII,  49-54)

Logo que estava dentro, em vidro derretido/ me jogaria para refrescar-me, tanto era ali desmesurado o incêndio 
Meu doce pai, para confortar-me,/ só falava de Beatriz ao caminhar,/ dizendo: “Parece-me já ver os olhos seus”.  

            O fogo em questão servia tanto para a purgação dos luxuriosos como para barrar o acesso ao Paraíso Terrestre. Enquanto para Dante tem o sentido de purgação, pois a luxúria é um dos três pecados capitais de que ele se sente culpado  -- os outros dois são o orgulho e a ira, conforme se constata  ao longo do poema --, para Estácio não tem o mesmo significado, uma vez que este já cumpriu o seu período no Purgatório (3). Representa assim apenas a barreira para o Paraíso Terrestre...   

Amos Nattini

            Os três poetas avançam guiados por uma voz que cantava do outro lado do fogo, afinal transposto por eles. Emergem ao pé de uma escada para o nível superior. Ouvem então uma voz -- que é de um outro anjo, o anjo guardião do Paraíso Terrestre -- pronunciar, no v. 58, em latim, as palavras iniciais que Cristo proferirá, dando as boas-vindas aos justos, no Dia do Juízo Final (“Venite, benedicti Patris mei”), conforme o evangelho de S.Mateus (25, 34) (4). Essas palavras soam dentro de uma luz intensa, a do Anjo, que ofusca Dante.  O Anjo prossegue dizendo para eles se apressarem pois logo vai escurecer (à noite, como vimos, não é possível avançar na jornada). E de fato, após subirem alguns degraus, Dante e os seus “sábios guias” (miei saggi- v. 69) percebem, pela sombra dele, que se extinguia (v. 68), que o Sol já se punha. Então,

ciascun di noi d’un grado fece letto;
ché la natura del monte ci affranse
la possa del salir più e ‘l diletto.    (XXVII, 73-75)

cada um de nós de um degrau fez leito;/ porque a natureza do monte nos retira/ o poder de subir mais, e o deleite.

            Dante, na sequência, introduz a imagem de cabras ruminando, “silenciosas na sombra” (tacite a l’ombra- v.79) após pastarem, enquanto o pastor guarda o rebanho, “olhando para que as feras não o ataquem” (guardando perché fiera non lo sperga- v. 84). E faz essa comparação:

tali eravamo tutti e tre allota,
io come capra, ed ei come pastori,
fasciati quinci e quindi d’alta grotta.    (XXVII,  85-87)

assim éramos todos os três então,/ eu como cabra, eles como pastores,/ circundados de um lado e de outro por alta rocha.


G.Doré- Lia
            Dante é tomado pelo sono, “o sono que frequentemente,/ antes que o fato ocorra, sabe dele” (/.../ il sonno che sovente,/ anzi che ‘l fatto sia, sa le novelle- v. 92-93), reiterando-se aqui, mais uma vez, a crendice no seu caráter premonitório quando acontece pouco antes da alvorada.  Assim, na hora em que do oriente Citereia (a deusa Vênus, que tem esse nome por ter surgido das águas do mar próximo à ilha de Citera, consagrada por isso ao seu culto), vale dizer, o planeta Vênus (ou a Estrela da Manhã) lança seus primeiros raios (v.94-95) (5), Dante sonha com Lia e sua irmã Raquel, personagens bíblicas, que segundo a tradição cristã, representam respectivamente a vida ativa e contemplativa do religioso (sua função aqui é prenunciar, segundo os comentaristas, o aparecimento de Matilda, no próximo canto, e o de Beatriz,  mais adiante). A jovem Lia, que no sonho de Dante colhia flores, também afirma dentro desse sonho:  

“Sappia qualunque il mio nome dimanda
ch’i’ mi son Lia, e vo movendo intorno
le belle mani a farmi una ghirlanda.

Per piacermi a lo specchio, qui m’addorno;
ma mia suora Rachel mai non si smaga
dal suo miraglio, e siede tutto giorno.

Ell’ è d’i suoi belli occhi veder vaga
com’ io de l’addornarmi con le mani;
lei lo vedere, e me l’ovrare appaga.”    (XXVII,  100-108)

Saiba quem quer que pergunte meu nome/ que eu sou Lia, e vou movendo em torno/ as belas mãos para fazer-me uma guirlanda.
Para me agradar ao espelho, aqui me adorno;/ mas minha irmã Raquel nunca se afasta/ do seu, e senta ao espelho o dia todo.
Ela gosta de ver seus belos olhos/ como eu de adornar-me com as mãos;/ ela é contente em ver, e eu em fazer.   

            Nessa alegoria, a ativa Lia faz uma guirlanda com as flores que colheu, e qualifica de belas suas mãos, símbolo da operosidade. Raquel por sua vez não age, está sempre sentada, observando-se no espelho com seus belos olhos, símbolo da contemplação. O espelho, por sua vez é interpretado como um símbolo de Deus ou como uma imagem da própria consciência, conforme os comentadores. Em Mandelbaum, op cit, menciona-se ainda uma passagem do “Banquete”, outra obra de Dante, em que este diz que a filosofia não é só a contemplação da verdade mas também a contemplação dessa contemplação (6).

            Na Bíblia, Lia e Raquel são as filhas de Labão. Jacó amava Raquel e para casar com ela serviu a Labão durante sete anos. Mas na noite de núpcias  o pai substituiu Raquel por Lia, a filha mais velha. Assim Jacó teve de servir outros sete anos para poder enfim  casar com sua amada (essa história é tema de um soneto famoso de Camões).

            Quando Dante acordou, os seus “grandes mestres” (gran maestri- v. 114) já estavam em pé. Virgílio então lhe diz que

“Quel doce pome che per tanti rami
cercando va la cura de’ mortali,
oggi porrà in pace le tue fami.”      (XXVII, 115-117)

Aquele doce fruto, que por tantos ramos/ buscando vai o cuidado dos mortais,/ hoje aplacará a tua fome”.

            Nesses versos metafóricos, “doce fruto” é entendido como a felicidade que os seres humanos buscam permanentemente. No caso de Dante, o encontro com Beatriz (7). Essas palavras de Virgílio causam em Dante um grande contentamento. São para ele um presente. E declara: “nunca houve presente/ que me desse um prazer igual a este(/.../ e mai non furo strenne/ che fosser di piacere a queste iguali- v. 119-120).


S.Dalí-  Últimas palavras de Virgílio
             Após subirem a escada, quando estavam em seu degrau mais alto, Virgílio fala a Dante, de novo, agora mais longamente (v. 127-142) (essas são suas últimas palavras no poema). É essa manifestação sua que encerra o Canto.  Ele lembra que seu “filho” já viu o fogo temporário (Purgatório) e o eterno (Inferno) (/.../ “Il temporal foco e l’etterno/ veduto hai, figlio; /.../- v. 127-128) e afirma que Dante chegou agora a um lugar “onde eu, por mim, mais longe não discerno” (dov’io per me più oltre non discerno- v. 129). Virgílio, como sabemos, representa a Razão no poema. Aquilo que a Razão poderia lhe orientar já o fez. Logo adiante, Dante vai ser guiado pela Fé, simbolizada por Beatriz. Mas agora, Dante já pode tomar o seu prazer por guia (lo tuo piacere omai prendi per duce- v. 131), pois ele está livre de toda mancha do pecado. É agora  senhor de sua vontade, que livremente escolherá o bem, tanto na dimensão temporal como na espiritual. Por isso Dante, no último verso do Canto, recebe de Virgílio a coroa (do rei) e a mitra (do bispo)... 

            Nos versos finais, Virgílio diz, implicitamente, que já cumpriu sua missão (a destacar a aliteração no v. 141):  

Non aspettar mio dir più né mio cenno;
libero, dritto e sano è tuo arbítrio,
e fallo fora non fare a suo senno:

per ch’io te sovra te corono e mitrio”.   (XXVII,  139- 142)

Não esperes mais por minha palavra ou sinal;/ livre, reto e são é teu arbítrio/ e seria um erro não segui-lo;/ por isso, sobre ti, coloco coroa e mitra”.   

           

NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-p. 386

(2) Id., ib., p. 386-387.

(3) SINCLAIR, John D.-- “The Divine Comedy of Dante Alighieri” with translation and comment by John D. Sinclair- II. Purgatorio-  New York: Oxford University Press, 1961- p. 359-361

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.387.

(5) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 287.  Cf. também CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.280.

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.387.  Cf. também CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p.280.

(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 299.   


William Blake- Descanso noturno












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