quinta-feira, 14 de abril de 2016

Canto XXXI


PURGATÓRIO


Canto XXXI
           

            Prosseguindo em sua manifestação, Beatriz, induzindo Dante a confessar-se, indaga diretamente a ele -- que está na outra margem do rio Letes, o rio do esquecimento -- se é verdade o que ela disse sobre a vida pecaminosa que ele levou após a sua morte. Beatriz com essa atitude está agora “voltando a ponta de sua fala para mim,/ cujo gume já me parecera afiado” (volgendo suo parlare a me per punta,/ che pur per taglio m’era paruto acro- v.2-3), vale dizer, o poeta tacitamente está comparando a fala dela a uma espada, imagem que será explorada de novo mais adiante.  

            Beatriz reitera o pedido para que ele se manifeste, já que “as memórias tristes em ti/ não foram ainda eliminadas pela água(/.../ le memorie triste/ in te non sono ancor da l’acqua offense- v.11-12) do Letes.  Mas ele está tão emocionado (pela “confusão e medo”: Confusione e paura- v. 13) que mal consegue pronunciar um “sim”, “que para ouvi-lo foi mister a vista” (al quale intender fuor mestier le viste- v. 15), embaralhando-se aqui os sentidos da audição e da visão, o que é típico do recurso poético chamado sinestesia.  Dante faz a seguir outra comparação: a dele com um arma antiga, a besta ou balestra. Como o arco e a corda desta, quando muito tensos, quebram ao disparar, e a seta lançada atinge o alvo com menos força, assim ele rebenta, de emoção; nele irromperam “lágrimas e suspiros” (lagrime e sospiri- v.20) “e a voz enfraqueceu pelo seu caminho” (e la voce allentò per lo suo varco- v. 21), referindo-se neste verso ao “sim” apagado há pouco emitido, em que reconhece a verdade do que Beatriz dissera, e que consiste na sua confissão, necessária para o perdão dos pecados e o prosseguimento da jornada.

            Beatriz depois, afastando-se de seu caráter alegórico, fala como a jovem florentina, a amada do poeta, cujo amor o levava “a amar o bem/ além do qual nada há a que se aspire” (/.../ ad amar lo bene/ di là dal qual non è a che s’aspiri- v.23-24) (esse bem assim é identificado com Deus, vale dizer, o amor de Dante por Beatriz o elevava espiritualmente, levando-o a amar a Deus). Ela quer saber que obstáculos ele encontrou que o fizeram “perder a esperança” (spogliar la spene- v.27) na elevação de seu espírito. Expressa-se então como uma jovem enciumada:

E quali agevolezze o quali avanzi
ne la fronte de li altri si mostraro,
per che dovessi lor passeggiare anzi?”   (XXXI,  28-30)

E que satisfações ou que vantagens/ na fronte de outrem se mostraram/ pelo que devesses lhes cortejar?”

            Dante, chorando, lhe responde:

/.../ “Le presenti cose
col falso lor piacer volser miei passi,
tosto che ‘l vostro viso si nascose”.    (XXXI,  34-36)

/.../ “As coisas terrenas/ com o seu falso prazer dirigiram meus passos/ logo que o vosso rosto se escondeu”.  

            Ou seja, Dante desviou-se do bom caminho depois que ela morreu (em 1290), há dez anos da época em que transcorre a ação do poema.    

            Mesmo que Dante não confessasse seus pecados, como faz agora, diz Beatriz, um certo Juiz saberia tudo... Mas quando o pecador confessa, isso o favorece, “em nossa corte” (in nostra corte- v. 41) (i.e. na corte celestial, a que Beatriz agora pertence) pois “a roda do amolador se volta contra o gume” (rivolge sé contra ‘l taglio la rota- v. 42), vale dizer, cega o gume da espada da Justiça, a imagem implícita.

            Em seguida, Beatriz pede a Dante que escute com atenção ao que ela vai lhe dizer, não só para que se envergonhe de sua culpa mas também  para que, outra vez, / ouvindo as sereias, sejas mais forte” (/.../ e perché altra volta,/ udendo le serene, sie più forte- v.44-45), uma recomendação para quando Dante retornar ao mundo dos vivos e não se tornar novamente presa de ilusões. A “carne sepulta” (carne sepolta- v.48) dela recomenda que ele se conduza “em direção contrária” (in contraria parte- v.47) àquela que ele adotou após a sua morte. Em suma, os vivos devem se comportar guiados pelo bem, tendo presente a condição precária da existência humana, sua “breve duração” (v.60,  transcrito mais abaixo).   

            Seu belo corpo agora está debaixo da terra:

Mai non t’appresentò natura o arte
piacer, quanto le belle membra in ch’io
rinchiusa fui, e che so’ ‘n terra sparte;     (XXXI, 49-51)

Jamais natureza ou arte te apresentaram/ tanto prazer quanto os belos membros em que eu/ fui encerrada, e que estão na terra dispersos; 

            Dante devia ter aprendido com a morte dela:

Ben ti dovevi, per lo primo strale
de le cose fallaci, levar suso
di retro a me che non era più tale.

Non ti dovea gravar le penne in giuso,
ad aspettar più colpo, o pargoletta
o altra novità con sì breve uso.    (XXXI,  55-60)

Bem devias, por esse primeiro dardo/ das coisas falazes, alçar-te/ atrás de mim, que não era mais como elas.
Não deviam te pressionar para baixo as asas,/ esperando um golpe maior, ou mocinha/ ou outra novidade de breve duração.

            Estes versos trazem implícita a imagem do pássaro, sugerida pela menção às “asas” no v. 58. Dante, no passado, ao invés de alçá-las, alçar voo,  continuando sua ligação afetiva com Beatriz, ainda que morta, o que lhe traria  elevação espiritual, rebaixou-as em busca das “novidades”  efêmeras, terrenas, nas quais se incluem jovens mulheres. Os versos que vêm depois dos citados acima referem-se explicitamente aos pássaros, mencionando os “bem emplumados” (pennuti- v.62) (numa alusão irônica ao maduro Dante) e os novos, recém-emplumados (Novo augelletto- v.61), estes mais suscetíveis às “coisas falazes” (v.56), ou golpes da vida, do que aqueles.

            Dante depois, em nova comparação, afirma que estava ali “como crianças envergonhadas” (Quali fanciulli, vergognando,/.../- v.64) e arrependidas, “com os olhos voltados para a terra” (con li occhi a terra stannosi,/.../- v.65). Beatriz então lhe diz para erguer a barba (v.68) e contemplar o que lhe fará sofrer mais. Sua resistência (pela vergonha) em obedecer-lhe é comparada à do robusto carvalho a se desenraizar pelo vento europeu ou africano (ele diz da “terra de Iarba” (v.72); Iarba é um rei do Norte da África, citado na “Eneida”) (1). Mas ele acaba por obedecer a Beatriz, afirmando que “quando ela disse ‘barba’ em vez de ‘rosto’/ bem conheci o veneno do argumento” (e quando per la barba il viso chiese,/ ben conobbi il velen de l’argomento- v.74-75), uma vez que a amada o faz lembrar da sua condição de adulto e não de criança... 

Amos Nattini
            Erguendo os olhos, Dante vê não mais anjos (“aquelas primeiras criaturas”: /.../ quelle prime creature- v. 77) espalhando flores mas Beatriz, de véu,  para além do rio, voltada para a fera (misto de águia e leão) “que é uma pessoa só em duas naturezas” (ch’è sola una persona in due nature- v.81), ou seja, voltada para o grifo, alegoria de Cristo, com sua dupla natureza, humana e divina.  Beatriz era então mais bela do que antes, quando vivia em nosso mundo, mais bela do que quando aqui vencia as outras em beleza. Dante ao ver isso sofre mais ainda, pungido pela “urtiga do arrependimento” (Di penter sì mi punse ivi l’ortica- v.85), uma metáfora.

G. Doré- Submersão no Letes

            A emoção do arrependimento é tanta que Dante cai desmaiado. Quando volta a si, “a dama que eu tinha encontrado sozinha” (la donna ch’io avea trovata sola- v. 92) -- e que sabemos tratar-se de Matilda – puxa-o atrás dela na água do rio Letes, onde Dante está imerso até a garganta, enquanto ela avançava “sobre a água, leve como um barquinho” (sovresso l’acqua lieve come scola- v.96).  Ao aproximar-se da “margem abençoada” (beata riva- v. 97) Dante ouve mais um salmo, entoado pelos anjos, que começa com as palavras latinas “Asperges me” (v.98). Trata-se, segundo os comentadores, do salmo 51:7, cantado na Igreja quando o sacerdote asperge água benta sobre os fiéis, “simbolicamente lavando seus pecados” conforme Mandelbaum (2). Matilda então solta os braços fazendo Dante submergir para engolir a água do rio (e assim apagar toda a memória do pecado). Depois puxa-o para fora e, “banhado” (bagnato- v. 103), leva-o para dentro da “dança das quatro belas jovens” (/.../ danza de le quatro belle- v. 104), que representam as quatro virtudes cardeais, aquelas praticadas pelos pagãos justos, que viveram antes da vinda de Cristo. São elas, como se sabe, a Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza. Cada uma dessas jovens estende o braço para cobrir sua cabeça (e assim protegê-lo, quando voltar ao mundo dos vivos, contra os vícios contrários àquelas virtudes).

            Elas lhe dizem que são ninfas ali, no Paraíso Terrestre, mas no céu são  estrelas (é assim que apareceram no canto I do “Purgatório” e foram vistas por Adão e Eva; depois de sua expulsão do Paraíso, não foram vistas por mais ninguém, pois os homens passaram a habitar o hemisfério Norte (3) (a montanha do Purgatório, como vimos, localiza-se no hemisfério Sul).  As jovens dizem também que são servas de Beatriz (ou seja, as virtudes cardeais são servas da Revelação ou Sabedoria Divina, que Beatriz simboliza) e que levarão Dante até onde ela está. Elas o colocarão diante dos olhos dela, mas não irão além disso, pois serão outras três jovens “que veem mais profundamente(/.../ che miran più profondo- v. 111) que aguçarão os  olhos de Dante, farão ele ver mais. Essas jovens representam as virtudes teologais-- Fé, Esperança e Caridade – e estas se situam, para o poeta, em um nível superior na hierarquia das virtudes.

            Assim, as quatro jovens, cantando, conduzem Dante ao “peito do grifo” (petto del grifon- v.113), “onde estava Beatriz voltada para nós” (ove Beatrice stava volta a noi- v.114).  Elas o colocam “diante das esmeraldas(/.../ dinanzi a li smeraldi- v. 116) -- assim referidos os olhos de Beatriz, associando-os ao brilho e à cor da pedra -- “de onde Amor já te lançou suas setas” (ond’ Amor già ti trasse le sue armi- v.117), uma referência à vida pregressa de ambos, ao primeiro encontro de Dante com Beatriz, aos 9 anos, quando se enamorou dela, conforme seu relato na “Vita Nuova”. Note-se, en passant, a maiúscula personificadora de Amor.

            Os anseios ardentes de Dante o levam a contemplar os olhos de Beatriz, que por sua vez mantêm os seus fixos no grifo. E nos olhos dela ele vê,  Como o sol no espelho” (Come in lo specchio il sol,/ .../- v. 121) (mais uma comparação), brilhando, a criatura de dupla natureza ora sob uma forma, ora sob outra, o que o deixa admirado:

Pensa, lettor, s’io mi maravigliava,
quando vedea la cosa in sé star queta,
e ne l’idolo suo si trasmutava.    (XXXI,  124-126)

Pensa, leitor, se eu me maravilhava,/ quando via a coisa em si imóvel/ mas sua imagem refletida se alterando.   

Sasseta- As virtudes teologais
            Enquanto Dante se admira e se rejubila com o que vê – metaforicamente, um alimento degustado “que, saciando de si, de si causa apetite” (che, saziando di sé, di sé asseta- v. 129) -- as três damas (as três virtudes teologais) avançam, dançando e cantando.  Seu canto traz este apelo a Beatriz em favor de Dante:

“Volgi, Beatrice, volgi li occhi santi,”
era la sua canzone, “al tuo fedele
che, per vederti, ha mossi passi tanti!

Per grazia fa noi grazia che disvele
a lui la bocca tua, sì che discerna
la seconda bellezza che tu cele.”     (XXXI,  133- 138)

Volve, Beatriz, volve os olhos santos”,/ era a sua canção, “ao teu fiel/ que, para ver-te, tem dado tantos passos!
Por tua graça faz-nos a graça que desvele/ a ele a boca tua, para que veja/ a segunda beleza que tu escondes.”

            As virtudes cardeais levaram Dante aos olhos de Beatriz, à esperança de salvação (os olhos são sua primeira beleza). As virtudes teologais, agora, apelam para que Dante veja a “segunda beleza” dela, sua boca, ou melhor seu sorriso, o que está aí subentendido, conforme os comentaristas, associando-a à própria salvação (4).  

            Beatriz atende tal apelo e retira o véu, simbolizando a  Revelação (5), que possibilita a salvação. Nos versos finais do Canto, Dante chama tal visão de “esplendor da viva luz eterna” (O isplendor di viva luce etterna- v. 139) que deixaria qualquer poeta com a mente confusa ao tentar descrevê-la então.  “Poeta” é aqui referido por meio desta perífrase:  quem pálido se fez sob a sombra/ do Parnaso, ou bebeu em sua fonte” (chi palido si fece sotto l’ombra/ sì di Parnaso, o bevve in sua cisterna- v. 140-141).  


NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.399. 

(2) Id., ib., p. 399

(3) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.78-79.

(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 341-342.

(5) Id. ib, p. 341.
   

J. Flaxman- Beatriz se desvela


Salvador Dalí 

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