PURGATÓRIO
Canto XXXI
Prosseguindo em
sua manifestação, Beatriz, induzindo Dante a confessar-se, indaga diretamente a
ele -- que está na outra margem do rio Letes, o rio do esquecimento -- se é
verdade o que ela disse sobre a vida pecaminosa que ele levou após a sua morte.
Beatriz com essa atitude está agora “voltando
a ponta de sua fala para mim,/ cujo gume já me parecera afiado” (volgendo
suo parlare a me per punta,/ che pur per taglio m’era paruto acro- v.2-3), vale dizer, o poeta
tacitamente está comparando a fala dela a uma espada, imagem que será explorada
de novo mais adiante.
Beatriz reitera
o pedido para que ele se manifeste, já que “as
memórias tristes em ti/ não foram ainda eliminadas pela água” (/.../
le memorie triste/ in te non sono ancor da l’acqua offense- v.11-12) do Letes. Mas ele está tão emocionado (pela “confusão e medo”: Confusione
e paura- v. 13)
que mal consegue pronunciar um “sim”, “que
para ouvi-lo foi mister a vista” (al quale intender fuor mestier
le viste- v. 15),
embaralhando-se aqui os sentidos da audição e da visão, o que é típico do
recurso poético chamado sinestesia. Dante
faz a seguir outra comparação: a dele com um arma antiga, a besta ou balestra. Como
o arco e a corda desta, quando muito tensos, quebram ao disparar, e a seta
lançada atinge o alvo com menos força, assim ele rebenta, de emoção; nele irromperam
“lágrimas e suspiros” (lagrime
e sospiri- v.20)
“e a voz enfraqueceu pelo seu caminho”
(e la voce allentò per lo suo varco- v. 21), referindo-se neste
verso ao “sim” apagado há pouco
emitido, em que reconhece a verdade do que Beatriz dissera, e que consiste na
sua confissão, necessária para o perdão dos pecados e o prosseguimento da
jornada.
Beatriz depois,
afastando-se de seu caráter alegórico, fala como a jovem florentina, a amada do
poeta, cujo amor o levava “a amar o bem/
além do qual nada há a que se aspire”
(/.../ ad amar lo bene/ di là dal qual non è a che s’aspiri- v.23-24) (esse bem assim é
identificado com Deus, vale dizer, o amor de Dante por Beatriz o elevava
espiritualmente, levando-o a amar a Deus). Ela quer saber que obstáculos ele encontrou
que o fizeram “perder a esperança” (spogliar
la spene- v.27)
na elevação de seu espírito. Expressa-se então como uma jovem enciumada:
E quali agevolezze o quali avanzi
ne la
fronte de li altri si mostraro,
per che dovessi lor passeggiare anzi?” (XXXI, 28-30)
E que satisfações
ou que vantagens/ na fronte de outrem se mostraram/ pelo que devesses lhes
cortejar?”
Dante,
chorando, lhe responde:
/.../ “Le presenti cose
col falso lor piacer volser miei passi,
tosto che ‘l vostro viso si nascose”. (XXXI,
34-36)
/.../
“As coisas terrenas/ com o seu falso prazer dirigiram meus passos/ logo que o
vosso rosto se escondeu”.
Ou seja, Dante
desviou-se do bom caminho depois que ela morreu (em 1290), há dez anos da época
em que transcorre a ação do poema.
Mesmo que Dante
não confessasse seus pecados, como faz agora, diz Beatriz, um certo Juiz saberia
tudo... Mas quando o pecador confessa, isso o favorece, “em nossa corte” (in nostra corte- v. 41) (i.e. na corte
celestial, a que Beatriz agora pertence) pois “a roda do amolador se volta contra o gume” (rivolge
sé contra ‘l taglio la rota- v. 42), vale dizer, cega o gume da espada da Justiça, a imagem implícita.
Em seguida, Beatriz
pede a Dante que escute com atenção ao que ela vai lhe dizer, não só para que
se envergonhe de sua culpa mas também “para que, outra vez, / ouvindo as sereias,
sejas mais forte” (/.../ e perché altra volta,/ udendo le serene, sie più forte-
v.44-45),
uma recomendação para quando Dante retornar ao mundo dos vivos e não se tornar
novamente presa de ilusões. A “carne
sepulta” (carne sepolta- v.48) dela recomenda que ele se conduza “em direção contrária” (in contraria parte- v.47) àquela que ele adotou
após a sua morte. Em suma, os vivos devem se comportar guiados pelo bem, tendo
presente a condição precária da existência humana, sua “breve duração” (v.60, transcrito mais abaixo).
Seu belo corpo
agora está debaixo da terra:
Mai non t’appresentò natura o arte
piacer,
quanto le belle membra in ch’io
rinchiusa fui, e che so’ ‘n terra
sparte; (XXXI, 49-51)
Jamais
natureza ou arte te apresentaram/ tanto prazer quanto os belos membros em que
eu/ fui encerrada, e que estão na terra dispersos;
Dante devia ter
aprendido com a morte dela:
Ben ti dovevi, per lo primo strale
de le
cose fallaci, levar suso
di
retro a me che non era più tale.
Non ti
dovea gravar le penne in giuso,
ad aspettar più colpo, o pargoletta
ad aspettar più colpo, o pargoletta
o altra novità con sì breve uso. (XXXI,
55-60)
Bem
devias, por esse primeiro dardo/ das coisas falazes, alçar-te/ atrás de mim,
que não era mais como elas.
Não
deviam te pressionar para baixo as asas,/ esperando um golpe maior, ou mocinha/
ou outra novidade de breve duração.
Estes versos
trazem implícita a imagem do pássaro, sugerida pela menção às “asas” no v. 58. Dante, no passado, ao
invés de alçá-las, alçar voo, continuando
sua ligação afetiva com Beatriz, ainda que morta, o que lhe traria elevação espiritual, rebaixou-as em busca das
“novidades” efêmeras, terrenas, nas
quais se incluem jovens mulheres. Os versos que vêm depois dos citados acima referem-se
explicitamente aos pássaros, mencionando os “bem emplumados” (pennuti- v.62) (numa alusão irônica ao maduro Dante) e
os novos, recém-emplumados (Novo augelletto- v.61), estes mais
suscetíveis às “coisas falazes”
(v.56), ou golpes da vida, do que aqueles.
Dante depois,
em nova comparação, afirma que estava ali “como
crianças envergonhadas” (Quali fanciulli, vergognando,/.../- v.64) e arrependidas, “com os olhos voltados para a terra” (con li
occhi a terra stannosi,/.../- v.65). Beatriz então lhe diz para erguer a barba (v.68) e contemplar
o que lhe fará sofrer mais. Sua resistência (pela vergonha) em obedecer-lhe é
comparada à do robusto carvalho a se desenraizar pelo vento europeu ou africano
(ele diz da “terra de Iarba” (v.72); Iarba
é um rei do Norte da África, citado na “Eneida”) (1). Mas ele acaba por obedecer
a Beatriz, afirmando que “quando ela
disse ‘barba’ em vez de ‘rosto’/ bem conheci o veneno do argumento” (e
quando per la barba il viso chiese,/ ben conobbi il velen de l’argomento- v.74-75), uma vez que a amada o
faz lembrar da sua condição de adulto e não de criança...
Amos Nattini |
Erguendo os
olhos, Dante vê não mais anjos (“aquelas
primeiras criaturas”: /.../ quelle prime creature- v. 77) espalhando flores mas
Beatriz, de véu, para além do rio, voltada
para a fera (misto de águia e leão) “que
é uma pessoa só em duas naturezas” (ch’è sola una persona in due
nature- v.81),
ou seja, voltada para o grifo, alegoria de Cristo, com sua dupla natureza,
humana e divina. Beatriz era então mais
bela do que antes, quando vivia em nosso mundo, mais bela do que quando aqui
vencia as outras em beleza. Dante ao ver isso sofre mais ainda, pungido pela “urtiga do arrependimento” (Di
penter sì mi punse ivi l’ortica- v.85), uma metáfora.
G. Doré- Submersão no Letes |
A emoção do arrependimento
é tanta que Dante cai desmaiado. Quando volta a si, “a dama que eu tinha encontrado sozinha” (la
donna ch’io avea trovata sola- v. 92) -- e que sabemos tratar-se de Matilda – puxa-o atrás dela na
água do rio Letes, onde Dante está imerso até a garganta, enquanto ela avançava
“sobre a água, leve como um barquinho”
(sovresso l’acqua lieve come scola- v.96). Ao aproximar-se da “margem abençoada” (beata riva- v. 97) Dante ouve mais um
salmo, entoado pelos anjos, que começa com as palavras latinas “Asperges me” (v.98). Trata-se, segundo
os comentadores, do salmo 51:7, cantado na Igreja quando o sacerdote asperge
água benta sobre os fiéis, “simbolicamente lavando seus pecados” conforme
Mandelbaum (2). Matilda então solta os braços fazendo Dante submergir para
engolir a água do rio (e assim apagar toda a memória do pecado). Depois puxa-o
para fora e, “banhado” (bagnato-
v. 103),
leva-o para dentro da “dança das quatro belas
jovens” (/.../ danza de le quatro belle- v. 104), que representam as
quatro virtudes cardeais, aquelas praticadas pelos pagãos justos, que viveram
antes da vinda de Cristo. São elas, como se sabe, a Prudência, Justiça,
Temperança e Fortaleza. Cada uma dessas jovens estende o braço para cobrir sua
cabeça (e assim protegê-lo, quando voltar ao mundo dos vivos, contra os vícios
contrários àquelas virtudes).
Elas lhe dizem
que são ninfas ali, no Paraíso Terrestre, mas no céu são estrelas (é assim que apareceram no canto I do
“Purgatório” e foram vistas por Adão
e Eva; depois de sua expulsão do Paraíso, não foram vistas por mais ninguém,
pois os homens passaram a habitar o hemisfério Norte (3) (a montanha do
Purgatório, como vimos, localiza-se no hemisfério Sul). As jovens dizem também que são servas de
Beatriz (ou seja, as virtudes cardeais são servas da Revelação ou Sabedoria
Divina, que Beatriz simboliza) e que levarão Dante até onde ela está. Elas o
colocarão diante dos olhos dela, mas não irão além disso, pois serão outras
três jovens “que veem mais profundamente”
(/.../ che miran più profondo- v. 111) que aguçarão os olhos de Dante, farão ele ver mais. Essas jovens representam as virtudes
teologais-- Fé, Esperança e Caridade – e estas se situam, para o poeta, em um
nível superior na hierarquia das virtudes.
Assim, as
quatro jovens, cantando, conduzem Dante ao “peito
do grifo” (petto del grifon- v.113), “onde estava Beatriz
voltada para nós” (ove Beatrice stava volta a noi- v.114). Elas o colocam “diante das esmeraldas” (/.../ dinanzi a li smeraldi-
v. 116) -- assim
referidos os olhos de Beatriz, associando-os ao brilho e à cor da pedra -- “de onde Amor já te lançou suas setas” (ond’
Amor già ti trasse le sue armi- v.117), uma referência à vida pregressa de ambos, ao primeiro encontro
de Dante com Beatriz, aos 9 anos, quando se enamorou dela, conforme seu relato na
“Vita Nuova”. Note-se, en passant, a maiúscula personificadora
de Amor.
Os anseios
ardentes de Dante o levam a contemplar os olhos de Beatriz, que por sua vez
mantêm os seus fixos no grifo. E nos olhos dela ele vê, “Como o
sol no espelho” (Come in lo specchio il sol,/ .../- v. 121) (mais uma comparação),
brilhando, a criatura de dupla natureza ora sob uma forma, ora sob outra, o que
o deixa admirado:
Pensa,
lettor, s’io mi maravigliava,
quando
vedea la cosa in sé star queta,
e ne
l’idolo suo si trasmutava. (XXXI, 124-126)
Pensa,
leitor, se eu me maravilhava,/ quando via a coisa em si imóvel/ mas sua imagem
refletida se alterando.
Sasseta- As virtudes teologais |
Enquanto Dante
se admira e se rejubila com o que vê – metaforicamente, um alimento degustado “que, saciando de si, de si causa apetite”
(che, saziando di sé, di sé asseta- v. 129) -- as três damas (as
três virtudes teologais) avançam, dançando e cantando. Seu canto traz este apelo a Beatriz em favor
de Dante:
“Volgi, Beatrice, volgi li occhi santi,”
era la
sua canzone, “al tuo fedele
che, per vederti, ha mossi passi tanti!
Per grazia fa noi grazia che disvele
a lui la bocca tua, sì che discerna
la seconda bellezza che tu cele.” (XXXI, 133- 138)
“Volve,
Beatriz, volve os olhos santos”,/ era a sua canção, “ao teu fiel/ que, para
ver-te, tem dado tantos passos!
Por tua
graça faz-nos a graça que desvele/ a ele a boca tua, para que veja/ a segunda
beleza que tu escondes.”
As virtudes
cardeais levaram Dante aos olhos de Beatriz, à esperança de salvação (os olhos
são sua primeira beleza). As virtudes teologais, agora, apelam para que Dante veja
a “segunda beleza” dela, sua boca, ou
melhor seu sorriso, o que está aí subentendido, conforme os comentaristas,
associando-a à própria salvação (4).
Beatriz atende
tal apelo e retira o véu, simbolizando a Revelação (5), que possibilita a salvação. Nos
versos finais do Canto, Dante chama tal visão de “esplendor da viva luz eterna” (O isplendor di viva luce
etterna- v. 139)
que deixaria qualquer poeta com a mente confusa ao tentar descrevê-la então. “Poeta” é aqui referido por meio desta perífrase: “quem
pálido se fez sob a sombra/ do Parnaso, ou bebeu em sua fonte” (chi
palido si fece sotto l’ombra/ sì di Parnaso, o bevve in sua cisterna- v.
140-141).
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p.399.
(2)
Id., ib., p. 399
(3) SAYERS,
Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p.78-79.
(4) MUSA, Mark--
“Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an
Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 341-342.
(5) Id. ib, p. 341.
J. Flaxman- Beatriz se desvela |
Salvador Dalí |
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