segunda-feira, 25 de abril de 2016

Canto XXXIII


PURGATÓRIO

Aqui se trata do último canto do Purgatório. Para iniciar uma leitura sequencial, o visitante é convidado a ir até o Canto I, postagem feita em 25 de novembro de 2015:
http://curtindoopurgatorio.blogspot.com.br/2015/11/purgatorio-canto-i-segunda-parteda.html

OBS- um volume contendo todo o conteúdo deste site poderá ser adquirido em https://agbook.com.br/book/212479--SOBRE_A_DIVINA_COMEDIA_PURGATORIO

Os interessados no "Inferno" poderão consultar http://curtindoacomedia.blogspot.com/  e no "Paraíso" http://curtindoacomedia-paraiso.blogspot.com/
   


Canto XXXIII


            Após o sucedido no final do Canto anterior, a saber, o sequestro do carro da Igreja pelo gigante (identificado como o rei de França), que se interna na floresta junto com a sua amante (a Cúria romana), este Canto XXXIII inicia com um lamento das sete damas (“ora três, ora quatro”: or ter or quattro- v.2), ou seja, das  três virtudes teologais e quatro cardinais. Seu lamento, depreende-se, é pelo desvirtuamento da Igreja, pois tal é em essência o significado daquela alegoria. As damas, não por acaso, entoam o salmo 79, cujas primeiras palavras, em latim, iniciam o v.1, e o Canto (o salmo fala da invasão dos pagãos que macularam o templo do Senhor e reduziram Jerusalém a montes de pedras) (1).  Beatriz,

/.../  sospirosa e pia,
quelle ascoltava sì fatta, che poco
più a la croce  si cambiò Maria.    (XXXIII, 4-6)

/.../ suspirando e piedosa,/ isso escutava tão alterada, que só pouco/ mais, junto à cruz, ficou Maria.

            Essa é mais uma comparação, dentre as muitas do poema,  inspirada nos personagens e fatos mencionados na Bíblia... Na sequência, Beatriz ergue-se (ela estava sentada sobre a raiz da árvore) e pronuncia,  corada como fogo” (colorata come foco- v.9), palavras em latim que tomam quase todo o terceto e foram extraídas do evangelho de S.João (16:16), conforme o comentarista, que traduzidas afirmam: “Um pouco, e não me vereis mais, e um pouco ainda e me vereis”, palavras essas pronunciadas por Cristo, quando se referiu à sua morte iminente e à ressurreição. No contexto, são interpretadas como uma indicação da restauração da Igreja, superando a sua baixa condição atual (2).        
       
            Beatriz se põe em marcha, dentro do Paraíso, colocando em sua frente as sete virtudes, e fazendo Dante andar, juntamente com a dama (Matilda) e Estácio, os três seguindo atrás dela. Depois, manda que ele avance um pouco mais, de modo a ficar ao seu lado, pois ela se dispõe a responder às suas perguntas. Dante então assim se manifesta, incluindo esta comparação curiosa, fruto de observação da vida cotidiana:

Come a color che troppo reverenti
dinanzi a suo maggior parlando sono,
che non traggon la voce viva ai denti,

avvenne a me, che sanza intero suono
incominciai: “Madonna, mia bisogna
voi conoscete, e ciò ch’ad essa è buono.”    (XXXIII,  25-30)

Como a aqueles que, muito reverentes,/ diante de seus superiores, falam,/ e não levam voz clara aos dentes,
a mim sucedeu que sem inteiro som/ comecei:  “Senhora, minha necessidade/ vós conheceis, e o que é bom para ela”.

            Beatriz em seguida manifesta-se longamente (até o v.78) sobre essa alegoria, numa linguagem profética e obscura. Começa afirmando que “o carro que a serpente rompeu/ foi, e não é mais” (/.../ ‘l vaso che ‘l serpente ruppe,/ fu e non è; /.../ - v.34-35), uma citação indireta do Apocalipse e uma referência ao sequestro do carro da Igreja que a serpente (ou melhor, o dragão antes referido, ou ainda satanás) danificou, e que não é mais a Igreja de Deus pela sua situação atual corrompida (3).  Mas os culpados por isso (o papa Clemente e Filipe IV, rei de França, também chamado Filipe, o Belo) (4) sofrerão a “vingança de Deus” (vendetta di Dio- v.36). Na sequência, refere-se ao herdeiro da “águia que deixou plumas no carro” (l’aguglia che lasciò le penne al carro- v.38), uma menção, como vimos no Canto anterior, ao Império Romano. Beatriz vê aproximar-se o tempo

nel quale un cinquecento diece e cinque,
messo di Dio, anciderà la fuia
con quel gigante che con lei delinqüe    (XXXIII, 43-45)

no qual um quinhentos dez e cinco,/ enviado por Deus, matará a rameira/ e o gigante que com ela peca.  

            Esse DXV, em algarismos romanos, foi entendido como anagrama da  palavra latina DVX, ou DUX, que significa “líder”, “guia”, e por isso sua identidade foi atribuída a muitas pessoas, uma delas Henrique VII, herdeiro do Império Romano, que todavia morreu cedo, em 1313. Dante depositara nele suas  esperanças de ver a Itália tumultuada de seu tempo em ordem e o poder temporal nas mãos certas, liberando a Igreja para dedicar-se exclusivamente ao campo espiritual, retornando assim às suas origens. Mas essa é apenas uma das interpretações, e pouco convincente segundo Dorothy Sayers, que acha mais adequado considerá-lo num sentido geral, pois a quem ele de fato se refere provavelmente nunca saberemos (5). O que vale salientar é que representa a esperança de Dante em alguém, “enviado por Deus”, que colocará a sua Igreja novamente no bom caminho...

            Beatriz reconhece a sua “narração obscura,/ como a de Temis e a da Esfinge” (/.../ la mia narrazion buia,/ qual Temi e Sfinge /.../- v.46-47) mas afirma que logo os fatos se encarregarão de esclarecê-la, da mesma forma que Édipo esclareceu o enigma da Esfinge, fato que fez esta suicidar-se, provocando a ira da deusa Temis, que por causa disso puniu Tebas matando os seus rebanhos e colheitas (o v. 51 faz alusão indireta a isso, afirmando que não haverá esse inconveniente quando os fatos esclarecerem o que é hoje obscuro) (6).  

            Na sequência, Beatriz incumbe Dante de uma missão quando retornar ao nosso mundo:

Tu nota; e sì come da me son porte,
così queste parole segna a‘ vivi
del viver ch’é un correre a la morte.    (XXXIII,  52-54)

Toma nota; e do modo como digo/ estas palavras, assim as mostra a quem vive/ o viver que é uma corrida para a morte.

            Ele deverá relatar como é que viu “a planta” (a árvore da Ciência do Bem e do Mal) “que aqui, agora, foi despojada duas vezes” (ch’è or due volte dirubata quivi- v.57), uma pela desobediência de Adão e outra pelos desvios históricos da Igreja, que culminaram na situação precária dela na época de Dante. Beatriz adverte: “Quem quer que a despoje ou a danifique/ com uma blasfêmia de fato ofende a Deus” (Qualunque ruba quella o quella schianta,/ con bestemmia di fatto offende a Dio- v.58-59).  E prosseguindo afirma:

Per morder quella, in pena e in disio
cinquemilia anni e più l’anima prima
bramò colui che ‘l morso in sé punio.    (XXXIII, 61-63)

Por morder dela, em penas e em desejo,/ cinco mil anos, e mais, a alma primeira/ ansiou por aquele que em si a mordida puniu.  

            Os versos falam de Adão. Segundo a Bíblia, ele viveu 930 anos, permanecendo no Limbo 4.302 anos, de acordo com o Paraíso (XXVI, 118), do que resulta os mais de 5 mil anos referidos pelo poeta em que “a alma primeira”, por morder do fruto daquela árvore, ansiou pela vinda de Cristo, o qual puniria em si a falta dele... (7)  Em sua fala, Beatriz  refere-se ainda à altura e à forma invertida da árvore em questão, com uma copa que se amplia à medida que sobe, imagem assim da inacessibilidade de seus frutos ao ser humano, pela proibição da lei divina (8). Dante perceberia isso, diz ela,  se não tivesse seu intelecto “feito de pedra e, petrificado, tinto” (fatto di pietra e, impetrato, tinto- v. 74), como se tivesse sido mergulhado nas águas do rio Elsa (um afluente do Arno rico em cal, ou óxido de cálcio, que petrificava os  objetos nele lançados) (v.67) ou estivesse tinto, ou obscurecido, como as amoras, originalmente brancas, que conforme a mitologia adquiriu a cor que apresentam pelo sangue de Píramo, o qual se suicidou junto a uma amoreira (v.69). (9)  Apesar disso, ela quer que Dante retenha suas palavras e as leve dentro de si, ao retornar ao nosso mundo, assim como aquele (o romeiro retornando da Terra Santa, subentende-se) que “traz o bordão ornado de palmas” (che si reca il bordon di palma cinto- v. 78). 

            Dante então responde que, como o sinete marca a cera, “marcado está por vós agora o meu cérebro” (segnato è or da voi lo mio cervello- v. 81). E pergunta por que razão as palavras dela estão tão acima de seu entendimento. Na resposta de Beatriz está contida implicitamente uma crítica à filosofia, à qual Dante dedicou muito tempo de sua vida, indicando que ela é insuficiente para a compreensão das verdades reveladas:

“Perché conoschi,” disse, “quella scuola
c’hai seguitata, e veggi sua dottrina
come può seguitar la mia parola;

e veggi vostra via de la divina
distar cotanto, quanto si discorda
da terra il ciel che più alto festina.”   (XXXIII, 85-90)

“Para que conheças”, disse, “aquela escola/ que seguiste, e vejas como pode sua doutrina/ seguir a minha palavra;
e vejas vossa via da divina/ distar tanto quanto dista/ da terra o céu que mais alto e rápido gira”.  

            Este céu é identificado como o Primum Mobile, a mais afastada das nove esferas celestes que, na concepção de Dante, giram acima do nosso mundo (cujo ponto extremo é o topo da montanha do Purgatório, onde está situado o Paraíso Terrestre).   

            Mais adiante, Beatriz afirma que a partir de agora suas palavras “serão desnudas” (saranno nude- v.100), quer dizer não serão mais obscuras, “/.../ quanto convirá/ tal desvelamento para a tua vista rude” (/.../ quanto converrassi/ quelle scovrire a la tua vista rude- v. 101-102) 

            Era meio-dia no Purgatório, com o sol “mais fulgurante” (più corusco- v.103), quando as sete damas se detêm, numa região de sombra pálida “qual a que, sob folhas verdes e ramos negros,/ a montanha lança sobre os seus frios riachos” (qual sotto foglie verdi e rami nigri/ sovra suoi freddi rivi l’alpe porta- v.110-111).  Ali Dante vê dois rios saírem de uma mesma nascente, e depois se afastarem entre si.  Eles os chama de Eufrates e Tigre, mas na realidade trata-se do Letes (o rio que apaga a memória do pecado) e Eunoe (o que reaviva a memória do bem praticado). Dante pergunta sobre eles a Beatriz, assim invocada: “Ó luz, ó glória da humana gente” (O luce, o gloria de la gente umana-  v. 115). Esta designa Matilda (v. 119; pela primeira e única vez citada pelo nome) para lhe responder,  a qual afirma que já lhe tinha explicado sobre esses rios. Ela está segura “que a água do Letes não esconde isso dele” (che l’acqua di Letè non gliel nascose- v. 123), pois, já que não era pecado, sua lembrança do fato não teria sido apagada pelo rio (ao contrário da culpa de Dante por ter se apartado de Beatriz, da qual ele não recorda:  esse esquecimento demonstra claramente/ culpa em tua vontade voltada a outras coisas (cotesta oblivïon chiaro conchiude/ colpa ne la tua voglia altrove attenta- v.98-99. Note-se a presença da aliteração nesses versos).  


G.Doré- O Eunoe

            Beatriz então lhe diz que talvez uma outra preocupação “tenha obscurecido os olhos de sua mente” (fatt’ ha la mente sua ne li occhi oscura- v. 126) (na realidade, a atenção de Dante devia estar voltada para a própria Beatriz).    E dá esta incumbência a Matilda:

Ma vedi Eünoè che là diriva:
menalo ad esso, e come tu se’ usa,
la tramortita sua virtù ravviva.    (XXXIII, 127-129)

Mas vê o Eunoe que por lá flui:/ leva-o até ele, e como estás acostumada a fazer/ a sua memória amortecida reaviva 

            Essa última afirmação indica que Matilda desempenha esse papel habitualmente no topo da montanha do Purgatório, preparando as almas para a sua ascensão ao Paraíso celeste. Dante então é levado por ela até o Eunoe. Estácio o acompanha, atendendo ao chamado que Matilda lhe faz.

            Tendo já ocupado o espaço que reservara a este “cântico segundo” (cantica seconda- v.140), o narrador interrompe-se aqui, sem cantar “aquela doce bebida que jamais me teria saciado” (lo dolce ber che mai non m’avria sazio-  v.138), pois “não me deixa ir além o freio da arte” (non mi lascia più ir lo fren de l’arte- v.141).  E assim conclui o Canto XXXIII, e o cântico do Purgatório, enfatizando a sua renovação cristã (10) e referindo-se às estrelas no último verso, o que ocorre ao fim dos três cânticos da “Divina Comédia”:  

Io ritornai da la santissima onda
rifatto sì come piante novelle
rinovellate di novella fronda,

puro e disposto a salire a le stelle.   (XXXIII,  142-145)

Retornei daquela santíssima água/ refeito como plantas jovens/ renovadas pelas folhas novas
puro e disposto a subir às estrelas.


Amos Nattini
 NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.404.

(2) Id., ib., p. 404.

(3) Id. ib., p. 405; 

(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 364.  Cf também SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 377.

(5) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op. cit., p. 336.

(6) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 342.  

(7) Id., ib., p. 342. 

(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 407.

(9) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 343.  

(10) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 409.. 

J. Flaxman- Aproximação do Eunoe

S.Dalí- Dante purificado 

W.Blake- O gigante e a meretriz

terça-feira, 19 de abril de 2016

Canto XXXII


PURGATÓRIO


Canto XXXII


            Dante fica totalmente absorto na contemplação de Beatriz, “a saciar a sede de um decênio” (a disbramarsi la decenne sete- v.2), pois esse é o lapso de tempo transcorrido desde sua morte. Seu “santo sorriso” (santo riso- v.5) puxava os olhos dele “com a antiga rede” (l’antica rete- v.6), imagem que remete à juventude do poeta enamorado por ela.  Mas ele desvia o olhar para a esquerda, ao ouvir o comentário que lhe faz uma das virtudes teologais (chamadas de “deusas”: dee- v. 8), repreendendo-o por olhar tanto Beatriz: “Olhas muito fixamente!” (“Troppo fiso!”- v.9). Sente o imenso contraste entre a visão dela – no seu papel de símbolo da Revelação dos mistérios (1) -- que o deixa como se ofuscado pelo Sol, e a pouca luz do momento posterior, em que fica “sem a vista por um tempo” (sanza la vista alquanto esser mi fée- v.12). Quando  enfim se adapta à nova situação, Dante vê “o glorioso exército” (lo glorïoso essercito- v.17), quer dizer, o cortejo alegórico, pôr-se em marcha, voltando-se para a direita, para o Sol e as “sete chamas” (sete fiamme- v.18), ou os sete candelabros, que vão na vanguarda do cortejo e representam os Sete Dons do Espírito Santo, como vimos.    

            A “milícia do celeste reino” (/.../ milizia del celeste regno- v.22), antes do restante, passa então diante deles, i.e. de Dante, Matilda e Estácio (os comentaristas notam o uso de linguagem militar nesses versos—“exército”, “milícia” etc – para indicar que eles se referirão à Igreja Militante, em sua evolução histórica) (2). As damas (as virtudes cardeais e teologais) retornam às suas posições sobre as rodas, no carro, que é movido pelo grifo, “sem agitar nenhuma de suas penas” (sì, che però nulla penna crollonne- v.27), pois, diferentemente da Igreja, a Divindade permanece inalterada, esta uma das interpretações possíveis desse verso (3). Os dois poetas e Matilda seguem a roda direita do carro. 

            Avançam então na mata --  deserta” (vòta- v.31) por “culpa daquela que creu na serpente” (colpa di quella ch’al serpente crese- v. 32) -- enquanto ouvem “um canto angélico” (angelica nota- v.33). Depois, Beatriz desce do carro e os outros rodeiam uma árvore despojada de folhagem, e murmuram “Adão”. Essas referências a Eva e Adão, que um dia habitaram o Paraíso Terrestre, servem para indicar que a árvore em questão é a do Conhecimento do Bem e do Mal, referida na Bíblia, aquela cujo fruto era proibido comer. Ela representa a justiça divina (4) ou a lei divina, que o casal desobedeceu, e motivou sua expulsão do Paraíso. Os que circundam tal árvore dizem para o grifo, aquela figura mitológica com cabeça e asas de ave e corpo de leão:

“Beato se’, grifon, che non discindi
col becco d’esto legno dolce al gusto,
poscia che mal si torce il ventre quindi”.    (XXXII,  43-45)

 Bendito sejas, grifo, que não colhes/ com o bico o doce gosto deste lenho,/ visto que depois o ventre se torce de dor

ao que este responde: “Assim se conserva a semente de toda justiça” (“Sì si conserva il seme d’ogne giusto”- v. 48), ou seja, a semente da justiça é preservada pela obediência à lei de Deus (5).  

            Em seguida, o grifo puxa o carro para junto da árvore, unindo-o a ela pelo seu timão, ou, como diz o verso, “e com seu ramo o deixou ligado a ela” (e quel di lei a lei lasciò legato- v.51) (segundo uma lenda antiga, a cruz de Cristo foi feita com madeira da árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Assim, seu timão, identificada com tal cruz, provinha dessa mesma árvore, é um “ramo” dela) (6). 

            A união do carro à arvore transforma esta de imediato. Ela adquire cor (“menos que a da rosa e mais que a da violeta”: men che di rose e più che di vïole- v. 58), a cor púrpura do  sangue de Cristo, ou da flor da macieira (7). Essa árvore, “que antes tinha os ramos tão despidos” (che prima avea le ramora sì sole- v. 60), se renova, “Como as nossas plantas” (Come le nostre piante /.../- v.52) na primavera (esta é indicada por Dante astrologicamente, pois se refere à constelação “que raia atrás dos celestes Peixes” (che raggia dietro a la celeste lasca- v.54), ou seja Áries, signo que compreende um período entre Março e Abril, início da primavera na Europa). À vista disso, aquela gente canta um hino. Mas Dante não consegue ouvi-lo por inteiro pois adormece.

            É acordado por estas palavras: “Levanta-te, que fazes?” (“Surgi: che fai?”- v.72). Ele se compara então aos apóstolos Pedro, João e Tiago, que, após presenciarem a transfiguração de Cristo no monte Tabor, e verem Moisés e Elias ao lado do Senhor, adormecem. Quando voltam a si estes dois profetas  do Velho Testamento não mais estão presentes. Dante refere-se à transfiguração de forma indireta. Ele diz que os apóstolos foram  conduzidos “a ver as flores da macieira” (/.../ a veder de’ fioretti del melo- v.73), quer dizer, o poeta usa a mesma metáfora da Bíblia, que associa a macieira a Cristo. Assim, ver as “flores da macieira” significará ver “Cristo em sua glória”, ou seja, transfigurado.  Por outro lado, como os apóstolos, Dante é acordado pela mesma palavra (“Levanta-te!”), aquela “pela qual foram interrompidos sonos maiores” (da la qual furon maggior sonni rotti- v.78), a saber, o dos mortos que Cristo ressuscitou  (Lázaro; o filho da viúva e a filha de Jairo, conforme os evangelhos de S.João, 11:43, e de S. Lucas, 7:14 e 8:54, respectivamente) (8).  

            Quem acorda Dante é “aquela dama pia” (quella pia- v. 82) que sabemos ser Matilda. Dante, inseguro, lhe pergunta por Beatriz. Ela lhe informa, e ele vê,  que ela está ali, debaixo da copa da árvore, sentada sobre a raiz (v.87), circundada pelas sete virtudes (referidas, no v. 98, como “sete ninfas”: sette ninfe), com os candelabros nas mãos, “que não podem ser apagados por Aquilão e Austro” (che son sicuri d’ Aquilone e d’ Austro- v.99), os ventos Norte e Sul. Mas os outros integrantes do cortejo (os anciãos, após o grifo) já deixaram o local, pois “subiram ao céu” (sen vanno suso- v. 89). Beatriz está sentada sobre a raiz da árvore (do Conhecimento do Bem e do Mal) à qual está atado o carro. Ela foi “ali deixada como guardiã do carro” (come guardia lasciata lì del plaustro- v.95, verso antecedido por outro, com forte aliteração: Sola sedeasi in su la terra mera- v.94: “Ela sentava-se só sobre a terra nua). Assim, a Sabedoria Divina (Beatriz) está associada à sua Lei (representada pela árvore), que a expressa, e à sua Igreja (o carro), zelada por ela.     

            Beatriz depois adverte Dante para prestar atenção ao que ocorrerá na sequência, incumbindo-o de registrar por escrito o que verá, em proveito do nosso mundo:

“Qui sarai tu poco tempo silvano;
e sarai meco sanza fine cive
di quella Roma onde Cristo è romano.

Però, in pro del mondo che mal vive,
al carro tiene or li occhi, e quel che vedi,
ritornato di là, fa che tu scrive.”      (XXXII, 100-105)

Aqui serás por pouco tempo silvano (= habitante da selva, da mata que constitui o Paraíso Terrestre)/ mas serás comigo, eternamente, cidadão/ daquela Roma onde Cristo é romano.
Por isso, em prol do mundo que mal vive,/ no carro mantém os olhos, e o que vês,/ após retornares de lá, escreve.”    

            Segue-se uma sucessão de sete quadros vivos -- ainda dentro da mesma alegoria geral explorada neste Canto, e nos anteriores -- que resumem a história e as vicissitudes da Igreja Católica desde os seus primórdios até os tempos de Dante. São os seguintes, em resumo, com a sua interpretação tradicional dada pelos comentaristas:            

1) um pássaro, o “pássaro de Jove” (l’uccel di Giove- v.112), cai sobre a árvore violentamente, “rompendo a casca/ assim como as flores e as folhas novas” (/.../ rompendo de la scorza,/ non che d’i fiori e de le foglie nove- v.113-114) e fere o carro (comparado a uma nau na tempestade) com  toda a sua força. O pássaro é interpretado como a águia de Roma, símbolo do Império, e sua investida, contrária à Lei divina, representa as perseguições contra os cristãos, no período de 64 a 314 da nossa era, desde Nero até Diocleciano (9);

2) uma raposa magra, de “ossos descarnados” (l’ossa sanza polpe- v. 123) (“que parecia jejuna de bom pasto”: che d’ogne pasto buon parea digiuna- v.120) lança-se para dentro do carro; mas Beatriz, que está vigilante, a põe em fuga, impedindo que o carro a acolha. A raposa representa as heresias sofridas pela Igreja primitiva. Ela entra ali em busca de “bom pasto” (da boa doutrina, para distorcê-la). Beatriz a escorraça, “repreendendo-a por hediondas culpas(/.../ riprendendo lei di laide colpe- v. 121);

3) a águia retorna, “pela via de onde viera anteriormente” (/.../ per indi ond’era pria venuta- v. 124), i.e., através da árvore (sem danificá-la agora, refletindo a boa intenção de Constantino), e deixa suas plumas no fundo do carro. Ouve-se então uma voz (“tal como saísse de coração amargurado”: e qual esce di cuor che si rammarca- v. 127), vinda do céu, que diz: “Ó barca minha, como estás mal carregada!” (“O navicella mia, com’ mal se’ carca!”- v. 129). A águia representa, como vimos, o Império Romano, e as plumas deixadas sobre o carro referem-se ao poder temporal sobre o Ocidente atribuído à Igreja pelo imperador Constantino no século IV, que para Dante é a origem dos seus males, afastando a Igreja de sua pureza primitiva. O lamento que se ouve é de S.Pedro, e sua barca é naturalmente a Igreja;

4) depois a terra se abre entre ambas as rodas do carro e dali emerge um  dragão que após cravar neste sua cauda venenosa, recolhe-a  (“como vespa que retira o ferrão”: e come vespa che ritragge l’ago- v.133) e se vai,  levando consigo parte do fundo do carro.  O dragão é representação tradicional de Satanás, e a passagem é interpretada como sendo relativa aos cismas sofridos pela Igreja, por exemplo o de Maomé, que desfalcou a Igreja de parte de seus fieis, o que é  ilustrado pela imagem do dragão levando parte do carro com ele;  

5) todo o restante do carro se recobriu, rapidamente, de plumas “como de grama/ a terra fértil(/.../ come da gramigna/ vivace terra /.../- v. 136-137), “ofertas talvez com intenção sã e benigna” (/.../ oferta/ forse con intenzion sana e benigna- v.137-138). A Igreja cresce em riqueza e poder, mediante outras doações, além da de Constantino, reforçando seu aspecto terreno em detrimento do lado espiritual; 

G.Doré- A prostituta e o gigante


6) em consequência disso, o carro vira um monstro, pois brotam cabeças de suas partes, “três no timão e uma em cada canto“ (tre sovra ‘l temo e una in ciascun canto-  v. 144): 

Le prime eran cornute come bue,
ma le quattro un sol corno avean per fronte:
simile mostro visto ancor non fue.    (XXXII, 145-147)

As primeiras eram cornudas como bois,/ mas as quatro outras só tinham um corno na fronte:/ monstro semelhante nunca foi visto  

As sete cabeças representam os sete pecados capitais; as cabeças de dois cornos, como as dos bois, representam os pecados considerados mais graves, a saber o orgulho, a inveja e a ira, pois além de ofender a Deus, ofendem também o próximo. Os outros quatro prejudicam só o próprio pecador: luxúria,  gula,  preguiça e avareza. O monstro de sete cabeças e dez chifres é inspirado naquele que emerge do mar, referido no livro do Apocalipse (13:1) (10).  

 7) finalmente, Dante vê, sentada sobre o carro, “uma prostituta descomposta” (una puttana sciolta- v.149), também inspirada no Apocalipse (17:1-3) (11), tendo ao seu lado um gigante; e os dois se beijavam com frequência.  Mas como a mulher dirigiu ao poeta seu “olhar cobiçoso e vagante” (/.../ l’occhio cupido e vagante- v.154), esse seu “feroz amante” (feroce drudo- v. 155)  a flagelou da cabeça aos pés” (la flagellò dal capo infin le piante- v. 156).  
Segundo os comentaristas, a prostituta representa a Igreja corrompida da época de Dante e o gigante, o aliado político do Papado, a saber o monarca da França, “o poder hegemônico na Europa no final do século XIII e começo do século XIV”, segundo Mandelbaum. Se a Igreja tenta afastar-se desse aliado e voltar-se para seus fieis ou o povo italiano, é castigada pelo amante francês. Isso seria uma ilustração de fatos ocorridos historicamente, especialmente a derrota do Papa na batalha de Anagni, quando foi humilhado pelo rei de França, Filipe, o Belo  (12).    

Na sequência, o gigante, irado, desatou o monstro (o carro da Igreja) da árvore, e o levou para dentro da floresta, de modo que esta impediu Dante de ver mais.  Esses versos são interpretados como relativos à “profecia” do poeta quanto à transferência da sede do papado, de Roma para Avignon, feita pelo rei francês, ocorrida em 1309.   



NOTAS


(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 348.

(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.400. 

(3) Id., ib., p. 400.

(4) Id., ib, p. 401

(5) Id., ib., p. 401.

(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”, op cit,, p. 350.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 401.

(8) Id., ib., p. 402

(9) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.329.

(10) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 403.

(11) Id., ib, p. 403

(12) Id., ib., p. 403 e 367.

Amos Nattini

A.Vellutello- Alegoria do carro

Salvador Dalí 

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Canto XXXI


PURGATÓRIO


Canto XXXI
           

            Prosseguindo em sua manifestação, Beatriz, induzindo Dante a confessar-se, indaga diretamente a ele -- que está na outra margem do rio Letes, o rio do esquecimento -- se é verdade o que ela disse sobre a vida pecaminosa que ele levou após a sua morte. Beatriz com essa atitude está agora “voltando a ponta de sua fala para mim,/ cujo gume já me parecera afiado” (volgendo suo parlare a me per punta,/ che pur per taglio m’era paruto acro- v.2-3), vale dizer, o poeta tacitamente está comparando a fala dela a uma espada, imagem que será explorada de novo mais adiante.  

            Beatriz reitera o pedido para que ele se manifeste, já que “as memórias tristes em ti/ não foram ainda eliminadas pela água(/.../ le memorie triste/ in te non sono ancor da l’acqua offense- v.11-12) do Letes.  Mas ele está tão emocionado (pela “confusão e medo”: Confusione e paura- v. 13) que mal consegue pronunciar um “sim”, “que para ouvi-lo foi mister a vista” (al quale intender fuor mestier le viste- v. 15), embaralhando-se aqui os sentidos da audição e da visão, o que é típico do recurso poético chamado sinestesia.  Dante faz a seguir outra comparação: a dele com um arma antiga, a besta ou balestra. Como o arco e a corda desta, quando muito tensos, quebram ao disparar, e a seta lançada atinge o alvo com menos força, assim ele rebenta, de emoção; nele irromperam “lágrimas e suspiros” (lagrime e sospiri- v.20) “e a voz enfraqueceu pelo seu caminho” (e la voce allentò per lo suo varco- v. 21), referindo-se neste verso ao “sim” apagado há pouco emitido, em que reconhece a verdade do que Beatriz dissera, e que consiste na sua confissão, necessária para o perdão dos pecados e o prosseguimento da jornada.

            Beatriz depois, afastando-se de seu caráter alegórico, fala como a jovem florentina, a amada do poeta, cujo amor o levava “a amar o bem/ além do qual nada há a que se aspire” (/.../ ad amar lo bene/ di là dal qual non è a che s’aspiri- v.23-24) (esse bem assim é identificado com Deus, vale dizer, o amor de Dante por Beatriz o elevava espiritualmente, levando-o a amar a Deus). Ela quer saber que obstáculos ele encontrou que o fizeram “perder a esperança” (spogliar la spene- v.27) na elevação de seu espírito. Expressa-se então como uma jovem enciumada:

E quali agevolezze o quali avanzi
ne la fronte de li altri si mostraro,
per che dovessi lor passeggiare anzi?”   (XXXI,  28-30)

E que satisfações ou que vantagens/ na fronte de outrem se mostraram/ pelo que devesses lhes cortejar?”

            Dante, chorando, lhe responde:

/.../ “Le presenti cose
col falso lor piacer volser miei passi,
tosto che ‘l vostro viso si nascose”.    (XXXI,  34-36)

/.../ “As coisas terrenas/ com o seu falso prazer dirigiram meus passos/ logo que o vosso rosto se escondeu”.  

            Ou seja, Dante desviou-se do bom caminho depois que ela morreu (em 1290), há dez anos da época em que transcorre a ação do poema.    

            Mesmo que Dante não confessasse seus pecados, como faz agora, diz Beatriz, um certo Juiz saberia tudo... Mas quando o pecador confessa, isso o favorece, “em nossa corte” (in nostra corte- v. 41) (i.e. na corte celestial, a que Beatriz agora pertence) pois “a roda do amolador se volta contra o gume” (rivolge sé contra ‘l taglio la rota- v. 42), vale dizer, cega o gume da espada da Justiça, a imagem implícita.

            Em seguida, Beatriz pede a Dante que escute com atenção ao que ela vai lhe dizer, não só para que se envergonhe de sua culpa mas também  para que, outra vez, / ouvindo as sereias, sejas mais forte” (/.../ e perché altra volta,/ udendo le serene, sie più forte- v.44-45), uma recomendação para quando Dante retornar ao mundo dos vivos e não se tornar novamente presa de ilusões. A “carne sepulta” (carne sepolta- v.48) dela recomenda que ele se conduza “em direção contrária” (in contraria parte- v.47) àquela que ele adotou após a sua morte. Em suma, os vivos devem se comportar guiados pelo bem, tendo presente a condição precária da existência humana, sua “breve duração” (v.60,  transcrito mais abaixo).   

            Seu belo corpo agora está debaixo da terra:

Mai non t’appresentò natura o arte
piacer, quanto le belle membra in ch’io
rinchiusa fui, e che so’ ‘n terra sparte;     (XXXI, 49-51)

Jamais natureza ou arte te apresentaram/ tanto prazer quanto os belos membros em que eu/ fui encerrada, e que estão na terra dispersos; 

            Dante devia ter aprendido com a morte dela:

Ben ti dovevi, per lo primo strale
de le cose fallaci, levar suso
di retro a me che non era più tale.

Non ti dovea gravar le penne in giuso,
ad aspettar più colpo, o pargoletta
o altra novità con sì breve uso.    (XXXI,  55-60)

Bem devias, por esse primeiro dardo/ das coisas falazes, alçar-te/ atrás de mim, que não era mais como elas.
Não deviam te pressionar para baixo as asas,/ esperando um golpe maior, ou mocinha/ ou outra novidade de breve duração.

            Estes versos trazem implícita a imagem do pássaro, sugerida pela menção às “asas” no v. 58. Dante, no passado, ao invés de alçá-las, alçar voo,  continuando sua ligação afetiva com Beatriz, ainda que morta, o que lhe traria  elevação espiritual, rebaixou-as em busca das “novidades”  efêmeras, terrenas, nas quais se incluem jovens mulheres. Os versos que vêm depois dos citados acima referem-se explicitamente aos pássaros, mencionando os “bem emplumados” (pennuti- v.62) (numa alusão irônica ao maduro Dante) e os novos, recém-emplumados (Novo augelletto- v.61), estes mais suscetíveis às “coisas falazes” (v.56), ou golpes da vida, do que aqueles.

            Dante depois, em nova comparação, afirma que estava ali “como crianças envergonhadas” (Quali fanciulli, vergognando,/.../- v.64) e arrependidas, “com os olhos voltados para a terra” (con li occhi a terra stannosi,/.../- v.65). Beatriz então lhe diz para erguer a barba (v.68) e contemplar o que lhe fará sofrer mais. Sua resistência (pela vergonha) em obedecer-lhe é comparada à do robusto carvalho a se desenraizar pelo vento europeu ou africano (ele diz da “terra de Iarba” (v.72); Iarba é um rei do Norte da África, citado na “Eneida”) (1). Mas ele acaba por obedecer a Beatriz, afirmando que “quando ela disse ‘barba’ em vez de ‘rosto’/ bem conheci o veneno do argumento” (e quando per la barba il viso chiese,/ ben conobbi il velen de l’argomento- v.74-75), uma vez que a amada o faz lembrar da sua condição de adulto e não de criança... 

Amos Nattini
            Erguendo os olhos, Dante vê não mais anjos (“aquelas primeiras criaturas”: /.../ quelle prime creature- v. 77) espalhando flores mas Beatriz, de véu,  para além do rio, voltada para a fera (misto de águia e leão) “que é uma pessoa só em duas naturezas” (ch’è sola una persona in due nature- v.81), ou seja, voltada para o grifo, alegoria de Cristo, com sua dupla natureza, humana e divina.  Beatriz era então mais bela do que antes, quando vivia em nosso mundo, mais bela do que quando aqui vencia as outras em beleza. Dante ao ver isso sofre mais ainda, pungido pela “urtiga do arrependimento” (Di penter sì mi punse ivi l’ortica- v.85), uma metáfora.

G. Doré- Submersão no Letes

            A emoção do arrependimento é tanta que Dante cai desmaiado. Quando volta a si, “a dama que eu tinha encontrado sozinha” (la donna ch’io avea trovata sola- v. 92) -- e que sabemos tratar-se de Matilda – puxa-o atrás dela na água do rio Letes, onde Dante está imerso até a garganta, enquanto ela avançava “sobre a água, leve como um barquinho” (sovresso l’acqua lieve come scola- v.96).  Ao aproximar-se da “margem abençoada” (beata riva- v. 97) Dante ouve mais um salmo, entoado pelos anjos, que começa com as palavras latinas “Asperges me” (v.98). Trata-se, segundo os comentadores, do salmo 51:7, cantado na Igreja quando o sacerdote asperge água benta sobre os fiéis, “simbolicamente lavando seus pecados” conforme Mandelbaum (2). Matilda então solta os braços fazendo Dante submergir para engolir a água do rio (e assim apagar toda a memória do pecado). Depois puxa-o para fora e, “banhado” (bagnato- v. 103), leva-o para dentro da “dança das quatro belas jovens” (/.../ danza de le quatro belle- v. 104), que representam as quatro virtudes cardeais, aquelas praticadas pelos pagãos justos, que viveram antes da vinda de Cristo. São elas, como se sabe, a Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza. Cada uma dessas jovens estende o braço para cobrir sua cabeça (e assim protegê-lo, quando voltar ao mundo dos vivos, contra os vícios contrários àquelas virtudes).

            Elas lhe dizem que são ninfas ali, no Paraíso Terrestre, mas no céu são  estrelas (é assim que apareceram no canto I do “Purgatório” e foram vistas por Adão e Eva; depois de sua expulsão do Paraíso, não foram vistas por mais ninguém, pois os homens passaram a habitar o hemisfério Norte (3) (a montanha do Purgatório, como vimos, localiza-se no hemisfério Sul).  As jovens dizem também que são servas de Beatriz (ou seja, as virtudes cardeais são servas da Revelação ou Sabedoria Divina, que Beatriz simboliza) e que levarão Dante até onde ela está. Elas o colocarão diante dos olhos dela, mas não irão além disso, pois serão outras três jovens “que veem mais profundamente(/.../ che miran più profondo- v. 111) que aguçarão os  olhos de Dante, farão ele ver mais. Essas jovens representam as virtudes teologais-- Fé, Esperança e Caridade – e estas se situam, para o poeta, em um nível superior na hierarquia das virtudes.

            Assim, as quatro jovens, cantando, conduzem Dante ao “peito do grifo” (petto del grifon- v.113), “onde estava Beatriz voltada para nós” (ove Beatrice stava volta a noi- v.114).  Elas o colocam “diante das esmeraldas(/.../ dinanzi a li smeraldi- v. 116) -- assim referidos os olhos de Beatriz, associando-os ao brilho e à cor da pedra -- “de onde Amor já te lançou suas setas” (ond’ Amor già ti trasse le sue armi- v.117), uma referência à vida pregressa de ambos, ao primeiro encontro de Dante com Beatriz, aos 9 anos, quando se enamorou dela, conforme seu relato na “Vita Nuova”. Note-se, en passant, a maiúscula personificadora de Amor.

            Os anseios ardentes de Dante o levam a contemplar os olhos de Beatriz, que por sua vez mantêm os seus fixos no grifo. E nos olhos dela ele vê,  Como o sol no espelho” (Come in lo specchio il sol,/ .../- v. 121) (mais uma comparação), brilhando, a criatura de dupla natureza ora sob uma forma, ora sob outra, o que o deixa admirado:

Pensa, lettor, s’io mi maravigliava,
quando vedea la cosa in sé star queta,
e ne l’idolo suo si trasmutava.    (XXXI,  124-126)

Pensa, leitor, se eu me maravilhava,/ quando via a coisa em si imóvel/ mas sua imagem refletida se alterando.   

Sasseta- As virtudes teologais
            Enquanto Dante se admira e se rejubila com o que vê – metaforicamente, um alimento degustado “que, saciando de si, de si causa apetite” (che, saziando di sé, di sé asseta- v. 129) -- as três damas (as três virtudes teologais) avançam, dançando e cantando.  Seu canto traz este apelo a Beatriz em favor de Dante:

“Volgi, Beatrice, volgi li occhi santi,”
era la sua canzone, “al tuo fedele
che, per vederti, ha mossi passi tanti!

Per grazia fa noi grazia che disvele
a lui la bocca tua, sì che discerna
la seconda bellezza che tu cele.”     (XXXI,  133- 138)

Volve, Beatriz, volve os olhos santos”,/ era a sua canção, “ao teu fiel/ que, para ver-te, tem dado tantos passos!
Por tua graça faz-nos a graça que desvele/ a ele a boca tua, para que veja/ a segunda beleza que tu escondes.”

            As virtudes cardeais levaram Dante aos olhos de Beatriz, à esperança de salvação (os olhos são sua primeira beleza). As virtudes teologais, agora, apelam para que Dante veja a “segunda beleza” dela, sua boca, ou melhor seu sorriso, o que está aí subentendido, conforme os comentaristas, associando-a à própria salvação (4).  

            Beatriz atende tal apelo e retira o véu, simbolizando a  Revelação (5), que possibilita a salvação. Nos versos finais do Canto, Dante chama tal visão de “esplendor da viva luz eterna” (O isplendor di viva luce etterna- v. 139) que deixaria qualquer poeta com a mente confusa ao tentar descrevê-la então.  “Poeta” é aqui referido por meio desta perífrase:  quem pálido se fez sob a sombra/ do Parnaso, ou bebeu em sua fonte” (chi palido si fece sotto l’ombra/ sì di Parnaso, o bevve in sua cisterna- v. 140-141).  


NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.399. 

(2) Id., ib., p. 399

(3) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.78-79.

(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 341-342.

(5) Id. ib, p. 341.
   

J. Flaxman- Beatriz se desvela


Salvador Dalí