PURGATÓRIO
Canto XXIX
Após as palavras
que dirigiu a Dante, conforme o Canto anterior, Matilda volta a cantar,
afirmando, em latim (v.3), serem bem-aventurados aqueles cujos pecados foram perdoados.
Esse verso consiste no início do Salmo 32 (1). Dante a compara a uma ninfa
andando no bosque, ela que anda rio acima, pela sua margem. O rio, como vimos, é
o Letes, rio do esquecimento (no caso, da memória do pecado). O poeta, na outra
margem, acompanha seus passos pequenos. Não haviam, os dois, avançado muito “quando
as margens paralelas deram a volta/ de
modo que fiquei frente ao levante” de novo (quando le ripe
igualmente dier volta,/ per modo ch’a levante mi rendei- v. 11-12), vale dizer, Dante
ficou do lado em que nasce o Sol (cujo simbolismo relaciona-se a Deus). Isso certamente
é mais apropriado para o que o Canto descreverá na sequência...
A dama o alerta
para o que virá: “Irmão meu, olha e
escuta” (/.../ “Frate mio, guarda e ascolta”- v.15). Segue-se então: “E eis que uma luz súbita atravessou/ a
grande floresta, em todas as partes” (Ed ecco un lustro sùbito
trascorse/ da tutte parti per la gran foresta- v. 16-17). Dante pensa que é um relâmpago.
Mas a luz persiste, aumentando de intensidade, pois “mais e mais brilhava” (più e più splendeva- v.20). Ao mesmo tempo, “uma melodia doce corria/ pelo ar luminoso”
(E una melodia dolce correva/ per l’aere luminoso; /.../- v.22-23).
Dante,
maravilhado com aquilo, censura Eva pela sua ousadia, ela “que
não suportou ficar sob véu algum” (non sofferse di star sotto
alcun velo- v.27) -- i.e. o véu da ignorância -- e desobedeceu ao Senhor,
privando-o -- ou seja, o ser humano -- das “delícias
inefáveis” (v. 29) do Paraíso Terrestre:
sotto ‘l qual se divota fosse stata,
avrei quelle ineffabili delizie
sentite prima e più lunga fïata (XXIX, 28-30)
“debaixo
dele, se devota fosse,/ eu teria experimentado essas delícias inefáveis/ antes
e por mais longo tempo”
Enquanto Dante
se move “entre tantas primícias/ do
prazer eterno” (/.../ tra tante primizie/ de l’etterno piacer
/.../ - v.31-32)
o ar se inflama debaixo das árvores e ele constata que o “doce som” (dolce suon- v. 36) ouvido antes era um canto. O poeta então, antes de prosseguir
o relato do cortejo fantástico que viu – na verdade, uma extensa alegoria -- invoca
as Musas (chamadas de “Virgens
sacrossantas”: sacrosante Vergini- v. 37), em especial Urânia (a da Astronomia ou das coisas celestes),
para que o auxiliem “a pôr em verso
coisas difíceis de conceber” (forti cose a pensar mettere in
versi- v. 42).
De início, ele pensa
ver “sete árvores douradas” (sette
alberi d’oro- v. 43) mas ao se aproximar
delas percebe que, na realidade, eram candelabros,
interpretados pelos comentadores como os sete dons do Espírito Santo
(sabedoria, discernimento, prudência, força, conhecimento, piedade e temor de
Deus). Além disso, distingue “Hosana”
nas vozes do canto que ali se ouvia. Essa é palavra hebraica que expressa uma saudação.
Foi usada pelo povo quando Cristo estava prestes a entrar em Jerusalém (“Hosana
ao filho de Davi”, conforme o evangelho de S. Mateus) (2).
Dante fica tão
admirado com o que vê que se volta para Virgílio em busca de explicação mas este
lhe responde “com olhos não menos
carregados de espanto” (con vista carca di stupor non meno- v.57). Virgílio, ou a Razão
-- neste domínio exclusivo da Fé -- já não pode mais lhe ser útil... As luzes dos candelabros, que avançam muito
lentamente, atraem tanto a atenção de Dante que Matilda lhe adverte para
observar o que vem atrás delas. E o que vê é gente “vestida de branco” (vestite di bianco- v.65), de uma alvura jamais
vista entre nós. Quando essa gente está
defronte dele, na outra margem, Dante detém o passo e vê as chamas das velas
deixarem atrás de si um rastro,
lasciando dietro a sé l’aere dipinto,
e di tratti pennelli avean sembiante;
sì che lì sopra rimanea distinto
di sette liste, tutte in quei colori
onde fa l’arco il Sole e Delia il
cinto (XXIX, 74-78)
deixando atrás de si o ar pintado/ com a aparência de traços de pincel;
de modo
que o ar superior ficava dividido/em sete listras, todas naquelas cores/ com
que o Sol faz o arco e Délia o cinto “
Isso significa
que as cores eram as do arco-íris e as do halo da Lua (a deusa desta, Diana, é
chamada de Délia por ter nascido na ilha de Delos) (3).
G.Doré- O cortejo |
Debaixo desse “tão belo céu” (così
bel ciel- v. 82)
vem aquela gente de branco, identificada
no v. 83 como “vinte e quatro anciãos”, “coroados
de lírio” (coronati venien di fiordaliso- v. 84), símbolo da pureza de
sua fé, que representam, segundo os
comentadores (4), os vinte e quatro livros do Velho Testamento, na contagem de
S.Jerônimo. Eles vêm cantando, e nesse canto bendizem uma “dentre as filhas de Adão” (ne le figlie d’Adamo /.../- v.86) e as suas belezas, com
palavras que lembram a saudação do anjo da Anunciação a Maria, estabelecendo assim
a ponte entre o Velho e o Novo Testamento.
Depois de sua
passagem vieram animais que simbolizam os quatro Evangelhos, conforme uma
representação tradicional da Bíblia. Dante assim se expressa, usando a sua linguagem
peculiar:
Poscia che i fiori e l’altre fresche
erbette
a rimpetto di me da l’altra sponda
libere fuor da quelle genti elette,
sì come luce luce in ciel seconda,
vennero appresso lor quattro animali,
coronati ciascun di verde fronda. (XXIX, 88-93)
Depois
que as flores e as frescas plantas/ defronte a mim na outra margem/ ficaram
livres daquela gente eleita,
assim
como no céu uma luz segue outra,/ vieram em seguida quatro animais,/ coroados
cada um de verdes folhas.
Esses quatro animais, coroados com o verde da
esperança, eram, como diz a seguir, providos de seis asas, e as plumas destas, de
olhos, como os de Argus, “se vivos fossem”
(se fosser vivi- v. 96), mais uma referência mitológica (Argus, de cem olhos, foi
encarregado pela ciumenta Juno de vigiar
Io, amante de Jove, seu marido. Mercúrio matou Argus, mas Juno colocaria
seus olhos na cauda de um pavão) (5).
Nesse ponto, em
vez de prosseguir na descrição dos animais alados, Dante remete o leitor para o
livro de Ezequiel, no Velho Testamento, lembrando
todavia que quanto ao número das asas ele não está de acordo com este, e sim
com João (no Novo Testamento). As referências bíblicas precisas, onde ocorrem
as descrições fantásticas envolvendo aqueles animais são: Ezequiel 1:4-14 e Apocalipse 4:6-8, conforme
Mandelbaum (6).
Dante prossegue
descrevendo o cortejo:
Lo
spazio dentro a lor quattro contenne
un
carro, in su due rotte, trïnfale,
ch’al
collo d’un grifon tirato venne. (XXIX, 106-108)
O
espaço entre os quatro contém/ um carro sobre duas rodas, triunfal,/ que vem
puxado pelo colo de um grifo.
O carro entre os quatro animais alados,
ou dos Evangelhos, representa a Igreja, segundo os comentadores. Ele é puxado
por um grifo, a figura mitológica
com cabeça e asas de águia e corpo de leão.
Tal figura representa Cristo, com sua natureza dual, divina e humana.
Segundo os versos 113-114, a parte de ave era de ouro, enquanto o restante do
corpo do grifo era branco, misturado com vermelho. A primeira se associa então
à natureza divina e a segunda, à natureza humana de Cristo. As asas do grifo se
erguiam a perder de vista e se encaixavam entre as mencionadas sete listras
coloridas de luz produzidas pelas velas dos candelabros no céu, ladeando a do
meio e deixando três para um lado e três para o outro.
Nos versos
seguintes (v.115-120) Dante -- referindo-se agora não só a personagens mitológicos mas também históricos
-- afirma que tal carro triunfal era superior não só àquele que alegrou (Cipião) Africano ou (Otávio) Augusto, após
suas vitórias, mas até mesmo ao carro do Sol, “que, se extraviando, foi incendiado” (/.../ che,
svïando, fu combusto- v. 118) por Jove, uma rápida alusão de Dante à mitologia, que as notas
explicativas nos ajudam a entender: Faetonte certa vez tomou o carro de Apolo,
seu pai, e o conduziu tão mal que colocou a Terra em risco. Jove, atendendo às
preces dos que aqui viviam, o puniu, lançando um raio sobre ele (7).
G.Doré- Caridade, Esperança e Fé |
Junto à roda
direita do carro, três damas
avançavam, dançando. São interpretadas como as virtudes teologais. Dante as
associa a diferentes cores, uma ao vermelho (a Caridade), outra à esmeralda (a
Esperança) e a terceira ao branco, de “neve
recém-caída” (/.../ neve testé mossa- v. 126) (a Fé). Mas o ritmo de dança das outras era determinado pelo canto
da primeira (“/.../ uma tão vermelha/ que
mal seria notada dentro do fogo”: /.../ l’una tanto rossa/ ch’a pena fora dentro al
foco nota- v.122-123), demonstrando assim a primazia do amor frente às outras
virtudes teologais (antes disso menciona-se a alternância entre o branco e o
vermelho, entre a Fé e a Caridade, relacionando-se talvez à alternância na conduta
do cristão entre a vida contemplativa e a vida ativa):
e or parëan da la bianca tratte;
or da la rossa; e dal canto di questa
l’altre toglien l’andare e tarde e
ratte (XXIX, 127-129)
e ora a
de branco parecia conduzi-las,/ ora a de vermelho; e do canto desta/ as outras
tomavam o ritmo da dança, lento ou rápido
Ao lado da roda
esquerda, quatro outras damas
dançavam. São as virtudes cardeais (Prudência, Justiça, Temperança, Fortaleza).
Vestem a púrpura imperial porque representam as virtudes clássicas, segundo
Ciardi (8). Seguem a cadência “de uma delas que tinha três olhos” (d’una di lor ch’ avea
tre occhi in testa- v. 132), interpretada como a
Prudência.
Amos Nattini |
Na sequência,
vêm sete velhos, que representam os livros
restantes do Novo Testamento (além do Evangelhos já citados). Inicialmente, Dante
vê dois deles, de porte “digno e grave” (onesto
e sodo- v.135).
“Um
se mostrava seguidor/ do sumo Hipócrates” (v. 136-137), que se destacou na
medicina da Antiguidade, e por isso é identificado como o livro dos “Atos”,
cujo autor é o médico S.Lucas;
mostrava
l’altro la contraria cura
con una
spada lucida e aguta,
tal che di qua dal rio mi fé paura (XXIX, 139-141)
o outro
mostrava preocupação contrária/ com uma espada reluzente e aguda/ de tal modo
que senti medo, mesmo estando do lado de cá do rio.
Este é
identificado como as “Epístolas” de S.Paulo, o qual brandia a espada do Espírito, i.e. da palavra de Deus. (9)
Depois, Dante
vê quatro velhos “de aparência humilde” (Poi
vidi quattro in umile paruta- v. 142), porque representam as Epístolas menores de Tiago, Pedro, João
e Judas, seguidos de um velho sozinho
que avançava, “como que adormecido, com
expressão arguta” (/.../ dormendo, con la faccia arguta- v. 144). Trata-se do “Apocalipse” do visionário S.João (10).
“Esses sete (anciãos) se vestiam como o primeiro grupo” (E questi
sette col primaio stuolo/ erano abitüati, /.../- v.145-146), quer dizer, de branco, como os vinte e
quatro referidos inicialmente, representantes dos livros do Velho Testamento. Mas
diferentemente deles, esses velhos não estavam coroados de lírios “e sim de rosas e doutras flores vermelhas”
(anzi di rose e d’altri fior vermigli- v. 148). O vermelho é a cor
associada à Caridade (11), como vimos acima. Assim, o que os versos nos dizem é
que o Novo Testamento, embora conserve o branco da Fé associado ao Velho
Testamento, difere dele por dar maior ênfase à Caridade.
Quando o carro
estava em frente a Dante, na outra margem do rio, ouviu-se um trovão e todo o cortejo de
repente parou. “Pareceu ter recebido
proibição de prosseguir” ( parvero aver l’andar più interdetto- v. 153).
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984-p. 391.
(2)
CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 300
(3)
SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p.304.
(4) CIARDI,
John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 301.
(5) Id.
ib., p. 302.
(6) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.393.
(7)
Id., ib., p. 394
(8) CIARDI,
John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 303.
(9) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.394.
(10) Id.,
ib., p. 394
(11) Id.,
ib., p. 395.
W. Blake- O carro triunfal |
Salvador Dalí |
O grifo. |
Até agora o canto mais complicado de se entender. Ainda não li o comentário feito por Domingos, mas acredito ser esplêndido.
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