sexta-feira, 8 de abril de 2016

Canto XXIX


PURGATÓRIO


Canto XXIX


            Após as palavras que dirigiu a Dante, conforme o Canto anterior, Matilda volta a cantar, afirmando, em latim (v.3), serem bem-aventurados aqueles cujos pecados foram perdoados. Esse verso consiste no início do Salmo 32 (1). Dante a compara a uma ninfa andando no bosque, ela que anda rio acima, pela sua margem. O rio, como vimos, é o Letes, rio do esquecimento (no caso, da memória do pecado). O poeta, na outra margem, acompanha seus passos pequenos. Não haviam, os dois, avançado muito “quando as margens paralelas deram a volta/ de modo que fiquei frente ao levante” de novo (quando le ripe igualmente dier volta,/ per modo ch’a levante mi rendei- v. 11-12), vale dizer, Dante ficou do lado em que nasce o Sol (cujo simbolismo relaciona-se a Deus). Isso certamente é mais apropriado para o que o Canto descreverá na sequência...    

            A dama o alerta para o que virá: “Irmão meu, olha e escuta” (/.../ “Frate mio, guarda e ascolta”- v.15). Segue-se então: “E eis que uma luz súbita atravessou/ a grande floresta, em todas as partes” (Ed ecco un lustro sùbito trascorse/ da tutte parti per la gran foresta- v. 16-17). Dante pensa que é um relâmpago. Mas a luz persiste, aumentando de intensidade, pois “mais e mais brilhava” (più e più splendeva- v.20). Ao mesmo tempo, “uma melodia doce corria/ pelo ar luminoso” (E una melodia dolce correva/ per l’aere luminoso; /.../- v.22-23).

            Dante, maravilhado com aquilo, censura Eva pela sua ousadia, ela  que não suportou ficar sob véu algum” (non sofferse di star sotto alcun velo- v.27) -- i.e. o véu da ignorância -- e desobedeceu ao Senhor, privando-o -- ou seja, o ser humano -- das “delícias inefáveis” (v. 29) do Paraíso Terrestre:

sotto ‘l qual se divota fosse stata,
avrei quelle ineffabili delizie
sentite prima e più lunga fïata   (XXIX,  28-30)

debaixo dele, se devota fosse,/ eu teria experimentado essas delícias inefáveis/ antes e por mais longo tempo”   

            Enquanto Dante se move “entre tantas primícias/ do prazer eterno” (/.../ tra tante primizie/ de l’etterno piacer /.../ - v.31-32) o ar se inflama debaixo das árvores e ele constata que o “doce som” (dolce suon- v. 36) ouvido antes era um canto. O poeta então, antes de prosseguir o relato do cortejo fantástico que viu – na verdade, uma extensa alegoria -- invoca as Musas (chamadas de “Virgens sacrossantas”: sacrosante Vergini- v. 37), em especial Urânia (a da Astronomia ou das coisas celestes), para que o auxiliem “a pôr em verso coisas difíceis de conceber” (forti cose a pensar mettere in versi- v. 42). 

            De início, ele pensa ver “sete árvores douradas” (sette alberi d’oro-  v. 43) mas ao se aproximar delas percebe que, na realidade, eram candelabros, interpretados pelos comentadores como os sete dons do Espírito Santo (sabedoria, discernimento, prudência, força, conhecimento, piedade e temor de Deus). Além disso, distingue “Hosana” nas vozes do canto que ali se ouvia. Essa é palavra hebraica que expressa uma saudação. Foi usada pelo povo quando Cristo estava prestes a entrar em Jerusalém (“Hosana ao filho de Davi”, conforme o evangelho de S. Mateus) (2).

            Dante fica tão admirado com o que vê que se volta para Virgílio em busca de explicação mas este lhe responde “com olhos não menos carregados de espanto” (con vista carca di stupor non meno-  v.57). Virgílio, ou a Razão -- neste domínio exclusivo da Fé -- já não pode mais lhe ser útil...  As luzes dos candelabros, que avançam muito lentamente, atraem tanto a atenção de Dante que Matilda lhe adverte para observar o que vem atrás delas. E o que vê é gente “vestida de branco” (vestite di bianco- v.65), de uma alvura jamais vista entre nós.  Quando essa gente está defronte dele, na outra margem, Dante detém o passo e vê as chamas das velas deixarem atrás de si um rastro,

lasciando dietro a sé l’aere dipinto,
e di tratti pennelli avean sembiante;

sì che lì sopra rimanea distinto
di sette liste, tutte in quei colori
onde fa l’arco il Sole e Delia il cinto    (XXIX, 74-78)

deixando atrás de si o ar pintado/ com a aparência de traços de pincel;
de modo que o ar superior ficava dividido/em sete listras, todas naquelas cores/ com que o Sol faz o arco e Délia o cinto “  

            Isso significa que as cores eram as do arco-íris e as do halo da Lua (a deusa desta, Diana, é chamada de Délia por ter nascido na ilha de Delos) (3).    

G.Doré-  O cortejo
    
            Debaixo desse “tão belo céu” (così bel ciel- v. 82) vem aquela gente de branco,  identificada no v. 83 como “vinte e quatro anciãos”, “coroados de lírio” (coronati venien di fiordaliso- v. 84), símbolo da pureza de sua fé, que   representam, segundo os comentadores (4), os vinte e quatro livros do Velho Testamento, na contagem de S.Jerônimo. Eles vêm cantando, e nesse canto bendizem uma “dentre as filhas de Adão” (ne le figlie d’Adamo /.../- v.86) e as suas belezas, com palavras que lembram a saudação do anjo da Anunciação a Maria, estabelecendo assim a ponte entre o Velho e o Novo Testamento.  

            Depois de sua passagem vieram animais que simbolizam os quatro Evangelhos, conforme uma representação tradicional da Bíblia. Dante assim se expressa, usando a sua linguagem peculiar:

Poscia che i fiori e l’altre fresche erbette
a rimpetto di me da l’altra sponda
libere fuor da quelle genti elette,

sì come luce luce in ciel seconda,
vennero appresso lor quattro animali,
coronati ciascun di verde fronda.     (XXIX, 88-93)

Depois que as flores e as frescas plantas/ defronte a mim na outra margem/ ficaram livres daquela gente eleita,
assim como no céu uma luz segue outra,/ vieram em seguida quatro animais,/ coroados cada um de verdes folhas.     

            Esses quatro animais, coroados com o verde da esperança, eram, como diz a seguir, providos de seis asas, e as plumas destas, de olhos, como os de Argus, “se vivos fossem” (se fosser vivi- v. 96), mais uma referência mitológica (Argus, de cem olhos, foi encarregado pela ciumenta Juno de vigiar  Io, amante de Jove, seu marido. Mercúrio matou Argus, mas Juno colocaria seus olhos na cauda de um pavão) (5). 

            Nesse ponto, em vez de prosseguir na descrição dos animais alados, Dante remete o leitor para o livro de Ezequiel, no Velho Testamento,  lembrando todavia que quanto ao número das asas ele não está de acordo com este, e sim com João (no Novo Testamento). As referências bíblicas precisas, onde ocorrem as descrições fantásticas envolvendo aqueles animais são:  Ezequiel 1:4-14 e Apocalipse 4:6-8, conforme Mandelbaum (6). 

            Dante prossegue descrevendo o cortejo:

Lo spazio dentro a lor quattro contenne
un carro, in su due rotte, trïnfale,
ch’al collo d’un grifon tirato venne.    (XXIX, 106-108)

O espaço entre os quatro contém/ um carro sobre duas rodas, triunfal,/ que vem puxado pelo colo de um grifo.  

            O carro entre os quatro animais alados, ou dos Evangelhos, representa a Igreja, segundo os comentadores. Ele é puxado por um grifo, a figura mitológica com cabeça e asas de águia e corpo de leão.  Tal figura representa Cristo, com sua natureza dual, divina e humana. Segundo os versos 113-114, a parte de ave era de ouro, enquanto o restante do corpo do grifo era branco, misturado com vermelho. A primeira se associa então à natureza divina e a segunda, à natureza humana de Cristo. As asas do grifo se erguiam a perder de vista e se encaixavam entre as mencionadas sete listras coloridas de luz produzidas pelas velas dos candelabros no céu, ladeando a do meio e deixando três para um lado e três para o outro. 

            Nos versos seguintes (v.115-120) Dante -- referindo-se agora não só a  personagens mitológicos mas também históricos -- afirma que tal carro triunfal era superior não só àquele que alegrou  (Cipião) Africano ou (Otávio) Augusto, após suas vitórias, mas até mesmo ao carro do Sol, “que, se extraviando, foi incendiado” (/.../ che, svïando, fu combusto- v. 118) por Jove, uma rápida alusão de Dante à mitologia, que as notas explicativas nos ajudam a entender: Faetonte certa vez tomou o carro de Apolo, seu pai, e o conduziu tão mal que colocou a Terra em risco. Jove, atendendo às preces dos que aqui viviam, o puniu, lançando um raio sobre ele (7).   

G.Doré- Caridade, Esperança e Fé 

            Junto à roda direita do carro, três damas avançavam, dançando. São interpretadas como as virtudes teologais. Dante as associa a diferentes cores, uma ao vermelho (a Caridade), outra à esmeralda (a Esperança) e a terceira ao branco, de “neve recém-caída” (/.../ neve testé mossa- v. 126) (a Fé). Mas o ritmo de dança das outras era determinado pelo canto da primeira (“/.../ uma tão vermelha/ que mal seria notada dentro do fogo”: /.../  l’una tanto rossa/ ch’a pena fora dentro al foco nota- v.122-123), demonstrando assim a primazia do amor frente às outras virtudes teologais (antes disso menciona-se a alternância entre o branco e o vermelho, entre a Fé e a Caridade, relacionando-se talvez à alternância na conduta do cristão entre a vida contemplativa e a vida ativa): 

e or parëan da la bianca tratte;
or da la rossa; e dal canto di questa
l’altre toglien l’andare e tarde e ratte     (XXIX, 127-129)

e ora a de branco parecia conduzi-las,/ ora a de vermelho; e do canto desta/ as outras tomavam o ritmo da dança, lento ou rápido

            Ao lado da roda esquerda, quatro outras damas dançavam. São as virtudes cardeais (Prudência, Justiça, Temperança, Fortaleza). Vestem a púrpura imperial porque representam as virtudes clássicas, segundo Ciardi    (8). Seguem a cadência “de uma delas que tinha três olhos” (d’una di lor ch’ avea tre occhi  in testa- v. 132), interpretada como a Prudência.  

Amos Nattini

            Na sequência, vêm sete velhos, que representam os livros restantes do Novo Testamento (além do Evangelhos já citados). Inicialmente, Dante vê dois deles, de porte “digno e grave” (onesto e sodo- v.135).  Um se mostrava seguidor/ do sumo Hipócrates” (v. 136-137), que se destacou na medicina da Antiguidade, e por isso é identificado como o livro dos “Atos”, cujo autor é o médico S.Lucas;  

mostrava l’altro la contraria cura
con una spada lucida e aguta,
tal che di qua dal rio mi fé paura     (XXIX, 139-141)

o outro mostrava preocupação contrária/ com uma espada reluzente e aguda/ de tal modo que senti medo, mesmo estando do lado de cá do rio.

            Este é identificado como as “Epístolas” de S.Paulo, o qual brandia a  espada do Espírito, i.e. da palavra de Deus. (9)  

            Depois, Dante vê quatro velhosde aparência humilde” (Poi vidi quattro in umile paruta- v. 142), porque representam as Epístolas menores de Tiago, Pedro, João e Judas, seguidos de um velho sozinho que avançava, “como que adormecido, com expressão arguta” (/.../ dormendo, con la faccia arguta- v. 144).  Trata-se do “Apocalipse” do visionário S.João (10).  

            Esses sete (anciãos) se vestiam como o primeiro grupo” (E questi sette col primaio stuolo/ erano abitüati, /.../-  v.145-146), quer dizer, de branco, como os vinte e quatro referidos inicialmente, representantes dos livros do Velho Testamento. Mas diferentemente deles, esses velhos não estavam coroados de lírios “e sim de rosas e doutras flores vermelhas” (anzi di rose e d’altri fior vermigli- v. 148). O vermelho é a cor associada à Caridade (11), como vimos acima. Assim, o que os versos nos dizem é que o Novo Testamento, embora conserve o branco da Fé associado ao Velho Testamento, difere dele por dar maior ênfase à Caridade. 

            Quando o carro estava em frente a Dante, na outra margem do rio,  ouviu-se um trovão e todo o cortejo de repente parou. “Pareceu ter recebido proibição de prosseguir” ( parvero aver l’andar più interdetto- v. 153).    



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-p. 391.

(2) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 300 

(3) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.304.

(4) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 301.

(5) Id. ib., p. 302.

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.393.

(7) Id., ib., p. 394

(8) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 303.

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.394.

(10) Id., ib., p. 394

(11) Id., ib., p. 395.  

W. Blake- O carro triunfal
Salvador Dalí 
O grifo. 

Um comentário:

  1. Até agora o canto mais complicado de se entender. Ainda não li o comentário feito por Domingos, mas acredito ser esplêndido.

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