terça-feira, 12 de abril de 2016

Canto XXX


PURGATÓRIO


Canto XXX


            O primeiro verso do Canto inclui mais uma referência astronômica, pois Dante chama, metaforicamente, os sete candelabros que vão na vanguarda do cortejo alegórico que observa à distância de “setentrião do primeiro céu (/.../ il settentrïon del primo cielo- v.1 ). Segundo os comentaristas, “setentrião” implica uma alusão às sete estrelas da Ursa Menor, vistas pelos antigos latinos como sete (septem) bois (triones) arando o céu...(1). Por outro lado, o “primeiro céu” é o Empíreo, a região celeste mais afastada, onde habitam os bem-aventurados junto de Deus (2).  Seu papel frente ao cortejo é comparado ao setentrião de baixo, a Ursa Maior, que orienta o timoneiro em busca do porto (v. 6).

            Quando os sete candelabros param,  os 24 anciãos que representam os livros do Velho Testamento (“a gente veraz”: la gente verace- v. 7) se detêm e voltam-se para o carro que os segue (símbolo da Igreja), e um deles diz, em latim, “Veni, sponsa, de Libano” (v.11), (“Vem, esposa, do Líbano”). Como essas palavras foram extraídas do “Cântico dos Cânticos” (IV, 8), supõe-se que o ancião que as profere, por três vezes, e é repetido pelos outros, representa tal livro bíblico. Ao dizê-las, ele está convocando Beatriz, símbolo da fé ou da revelação (3). Na sequência, cem “ministros e mensageiros da vida eterna” (ministri e messaggier di vita etterna- v.18), vale dizer, cem anjos, alçam voo sobre o “divino carro” (divina basterna- v.16) – comparados aos bem-aventurados erguendo-se de seus túmulos no dia do Juízo Final --  e bendizem a vinda dela, jogando flores para cima e em torno do carro. 

G.Doré-  Beatriz
            Dentre “uma nuvem de flores” (una nuvola di fiori- v.28), que subiam e caíam dentro e fora do carro, Dante então a vê:

sovra candido vel cinta d’uliva
donna m’apparve, sotto verde manto
vestita di color di fiamma viva    (XXX,  31-33)

acima de véu branco, coroada de oliva,/ uma dama me apareceu, em verde manto,/ vestida com a cor da chama viva

            A menção à coroa de oliva, ou oliveira, é uma referência indireta a Minerva, deusa da sabedoria, citada explicitamente mais adiante, no v. 68. Por outro lado, as cores envolvidas nas vestes de Beatriz são o branco, o verde e o vermelho. Como vimos, essas são as cores, respectivamente, da Fé, Esperança e Caridade, as  virtudes teologais, o que salienta o seu papel alegórico  (embora a figura de Beatriz, como se verá a seguir, seja mais do que uma mera ideia, despojada de sua vinculação terrena).

Amos Nattini
            Dante, que há muito não a via (ela falecera em 1290, dez anos antes daquele em que transcorre a ação do poema), diz que seu espírito,

per occulta virtù che da lei mosse,
d’antico amor sentì la gran potenza   (XXX,  38-39).

por oculta virtude que dela provinha/ de antigo amor sentiu o poderio.

            Essa “alta virtude” (alta virtù- v.41) já lhe tinha transpassado “antes que eu saísse da infância” (prima ch’io fuor di püerizia fosse- v.42), uma referência ao primeiro encontro do poeta com Beatriz, ocorrido quando tinha 9 anos, conforme relatou em “Vita Nuova” (4).  Quando ele se volta para a esquerda, para expressar sua emoção a Virgílio, comparando-se a uma criancinha (fantolin- v. 44) que corre para a mãe, citando inclusive um verso do autor da “Eneida” mas traduzido do latim original (conosco i segni de l’antica fiamma: reconheço os sinais da antiga chama”- v.48), o poeta já não está mais ali, o que ele informa assim, repetindo, cabalisticamente, seu nome três vezes (também são três as convocações do v. 11 e as ocorrências do verbo piangere, nos v.56-57):

Ma Virgilio n’avea lasciati scemi
di sé, Virgilio dolcissimo patre,
Virgílio a cui per mia salute die’mi;    (XXX,  49-51)

Mas Virgílio nos havia privado/ de si, Virgílio dulcíssimo pai,/ Virgílio a quem me confiei pela minha salvação

            Então, nem o encanto do Paraíso Terrestre, de que ele estava desfrutando, o impediu de chorar:

né quantunque perdeo l’antica matre,
valse a le guance nette di rugiada
che, lagrimando, non tornasser atre.    (XXX,  52-54)

nem tudo o que perdeu a antiga mãe/ impediu que as faces limpas pelo orvalho/ se tornassem escuras pelas lágrimas.

            Na sequência, Dante se surpreende ao ouvir a voz de Beatriz, chamando-o pelo nome no v. 55 (“que só por necessidade aqui se registra”- che di necessità qui si registra- v. 63, a única vez em que é mencionado na “Comédia”) (5) e dizendo-lhe para não chorar, “pois chorar te convém por outra espada” (ché pianger ti conven per altra spada- v.57). Ela, que estava sobre o lado esquerdo do carro, no outro lado do rio, o censura implicitamente pelos seus pecados, que não o tornavam digno de estar ali:    

“Guardaci ben! Ben son, ben son Beatrice.
Come degnasti d’accedere al monte?
non sapei tu che qui è l’uom felice?”     (XXX, 73-75)

Olha-me bem! Sou eu, sou a própria Beatriz./ Como te dignaste subir o monte?/ Não sabias que aqui o homem é feliz?      

            Dante então é tomado de vergonha, e não suporta nem mesmo ver sua imagem refletida no rio, uma metáfora implícita da imagem de sua vida  pregressa pecaminosa:

Li occhi miei cadder giù nel chiaro fonte;
ma veggendomi in esso, i trassi a l’erba,
tanta vergogna mi gravò la fronte.     (XXX, 76-78)

Meus olhos se abaixaram à clara fonte;/ mas vendo-me nela, desviei-os para a relva,/ tanta era a vergonha que me pesou na fronte.  

            Depois disso, os anjos passaram a cantar os primeiros versos de um salmo, que inicia por “In te, Domine, speravi” (v. 83) e afirma a esperança do pecador na misericórdia de Deus (trata-se do Salmo 31, 1-8, segundo o comentarista) (6).

            Segue-se uma longa comparação de seu estado emocional com a neve dos cumes das montanhas do “dorso da Itália” (lo dosso d’Italia- v.86), a cadeia dos Apeninos (7). Essa neve, primeiro “se congela,/ atingida e adensada pelos ventos eslavos” (/.../ si congela,/ soffiata e stretta da li venti schiavi- v.86-87) e depois é “derretida, escorrendo por si mesma” (poi,liquefatta, in sé stessa trapela- v.88) pelo vento (quente) da “terra sem sombra” (/.../ la terra che perde ombra /.../- v.89), i.e da África, “que parece fogo a derreter uma vela” (sì che par foco fonder la candela- v.90). Assim estava Dante na primeira situação, “sem lágrimas e suspiros(/.../ sanza lagrime e sospiri- v. 91), mas ao ouvir o canto dos anjos e entender que se compadeciam dele, derreteu-se o seu gelo interior e ele não pode conter as lágrimas e suspiros:

ma poi che ‘ntesi ne le dolci tempre
lor compartire a me, par che se detto
avesser: “Donna, perché sì lo stempre?”

lo gel che m’era intorno al cor ristretto,
spirito e acqua fessi, e con angoscia
de la bocca e de li occhi uscì del petto.    (XXX,  94- 99)

mas quando entendi nos doces acordes/ sua compaixão por mim, como se tivessem dito/ “Senhora, por que assim  o deprimes?”,
o gelo que me envolvia o coração/ se fez água e suspiro, e em angústia/ saiu do peito pela boca e pelos olhos.

            Beatriz então dirige-se às “substâncias pias” (sustanze pie- v.101), i.e. os anjos, e sua manifestação estende-se até o último verso do Canto. Mas como os anjos velam “nos eternos dias” (ne l’etterno die- v.103), e não há noite nem sono para eles, vale dizer acompanham tudo o que ocorre “no século” (il secol- v.105), ela dirige-se, na realidade, para Dante, deseja  que “seja compreendida por aquele que do lado de lá chora” (che m’intenda colui che di là piagne- v.107) pelos seus pecados, ele que está lá quitando, com o sofrimento, sua culpa, a fim de que a dor seja proporcional à culpa (v. 108). Ele só poderá avançar em sua jornada se remover toda mácula do pecado em si, o que é alcançado pelo arrependimento...

            Beatriz afirma que “Não só por obra das esferas magnas” (Non pur per ovra de le rote magne- v. 109), mas também pela graça divina, qualquer “pendor correto” (abito destro- v. 116) no jovem Dante (“na sua idade nova”:  ne la sua vita nova- v. 115) poderia ter produzido efeitos maravilhosos (Dante admite aqui, conforme as  crenças medievais, que os astros influenciavam as pessoas). Mas  depois que ela “mudou de vida” (quer dizer, faleceu), “este se afastou de mim, e se entregou a outrem” (questi si tolse a me, e diessi altrui- v. 126), diz Beatriz.   

Quando di carne a spirto era salita,
e bellezza e virtù cresciuta m’era,
fu’io a lui men cara e men gradita;

e volse i passi suoi per via non vera   (XXX,  127-130)

Quando me elevei de carne a espírito,/ e minha beleza e virtude cresceram,/ fui-lhe menos cara e bem-vinda;
ele voltou seus passos para via não verdadeira

            Para Beatriz, todos os recursos para fazer Dante voltar para o caminho da salvação foram insuficientes, “exceto mostrar-lhe a gente condenada” (fuor che mostrarli le perdute genti- v. 138). Foi por isso que ela desceu ao reino dos mortos para pedir a ajuda de Virgílio. 

            O Canto é concluído salientando a importância do arrependimento:

Alto fato di Dio sarebbe rotto,
se Letè si passasse e tal vivanda
fosse gustata sanza alcuno scotto

di pentimento che lagrime spanda.   (v.142-145)

Alto desígnio de Deus seria rompido/ se o Letes se passasse e tal refeição/ fosse provada sem algum pagamento
de arrependimento que faça verter lágrimas.  



NOTAS


(1) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri- “La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini,  2013- p. 677. Cf também o verbete “setentrião” no “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, 2ª ed., revista e ampliada. Ed. Nova Fronteira, p. 1579.

(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.395.

(3) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 310  

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.397.

(5) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.313

(6) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 311.

(7) MARTINS, Cristiano-  “A Divina Comédia- Dante Alighieri”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins-  5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v. 2, p.269.  

S.Dalí-  Arrependimento de Dante 

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