PURGATÓRIO
Canto XXX
O primeiro verso do Canto inclui mais uma referência astronômica,
pois Dante chama, metaforicamente, os sete candelabros que vão na vanguarda do
cortejo alegórico que observa à distância de “setentrião do primeiro céu” (/.../
il settentrïon del primo cielo- v.1 ). Segundo os comentaristas, “setentrião” implica uma alusão às sete estrelas da Ursa Menor,
vistas pelos antigos latinos como sete (septem)
bois (triones) arando o céu...(1).
Por outro lado, o “primeiro céu” é o
Empíreo, a região celeste mais afastada, onde habitam os bem-aventurados junto de
Deus (2). Seu papel frente ao cortejo é
comparado ao setentrião de baixo, a Ursa Maior, que orienta o timoneiro em
busca do porto (v. 6).
Quando os sete
candelabros param, os 24 anciãos que
representam os livros do Velho Testamento (“a
gente veraz”: la gente verace- v. 7) se detêm e voltam-se para o carro que os segue (símbolo da
Igreja), e um deles diz, em latim, “Veni,
sponsa, de Libano” (v.11), (“Vem, esposa, do Líbano”). Como essas palavras foram
extraídas do “Cântico dos Cânticos” (IV, 8), supõe-se que o ancião que as
profere, por três vezes, e é repetido pelos outros, representa tal livro
bíblico. Ao dizê-las, ele está convocando Beatriz, símbolo da fé ou da
revelação (3). Na sequência, cem “ministros
e mensageiros da vida eterna” (ministri e messaggier di vita
etterna- v.18),
vale dizer, cem anjos, alçam voo sobre o “divino
carro” (divina basterna- v.16) – comparados aos bem-aventurados erguendo-se de seus túmulos
no dia do Juízo Final -- e bendizem a
vinda dela, jogando flores para cima e em torno do carro.
G.Doré- Beatriz |
Dentre “uma nuvem de flores” (una
nuvola di fiori- v.28), que subiam e caíam dentro e fora do carro, Dante então a vê:
sovra candido vel cinta d’uliva
donna m’apparve, sotto verde manto
vestita di color di fiamma viva (XXX,
31-33)
acima
de véu branco, coroada de oliva,/ uma dama me apareceu, em verde manto,/
vestida com a cor da chama viva
A menção à
coroa de oliva, ou oliveira, é uma referência indireta a Minerva, deusa da
sabedoria, citada explicitamente mais adiante, no v. 68. Por outro lado, as cores
envolvidas nas vestes de Beatriz são o branco, o verde e o vermelho. Como
vimos, essas são as cores, respectivamente, da Fé, Esperança e Caridade, as virtudes teologais, o que salienta o seu papel
alegórico (embora a figura de Beatriz,
como se verá a seguir, seja mais do que uma mera ideia, despojada de sua
vinculação terrena).
Amos Nattini |
Dante, que há
muito não a via (ela falecera em 1290, dez anos antes daquele em que transcorre
a ação do poema), diz que seu espírito,
per occulta virtù che da lei mosse,
d’antico
amor sentì la gran potenza (XXX, 38-39).
por
oculta virtude que dela provinha/ de antigo amor sentiu o poderio.
Essa “alta virtude” (alta
virtù- v.41)
já lhe tinha transpassado “antes que eu
saísse da infância” (prima ch’io fuor di püerizia fosse- v.42), uma referência ao primeiro
encontro do poeta com Beatriz, ocorrido quando tinha 9 anos, conforme relatou
em “Vita Nuova” (4). Quando ele se volta para a esquerda, para
expressar sua emoção a Virgílio, comparando-se a uma criancinha (fantolin-
v. 44) que
corre para a mãe, citando inclusive um verso do autor da “Eneida” mas traduzido
do latim original (conosco i segni de l’antica fiamma: reconheço os sinais da antiga chama”- v.48), o poeta já não está
mais ali, o que ele informa assim, repetindo, cabalisticamente, seu nome três
vezes (também são três as convocações do v. 11 e as ocorrências do verbo piangere, nos v.56-57):
Ma Virgilio n’avea lasciati scemi
di sé, Virgilio dolcissimo patre,
Virgílio a cui per mia salute die’mi; (XXX,
49-51)
Mas
Virgílio nos havia privado/ de si, Virgílio dulcíssimo pai,/ Virgílio a quem me
confiei pela minha salvação
Então, nem o
encanto do Paraíso Terrestre, de que ele estava desfrutando, o impediu de
chorar:
né quantunque perdeo l’antica matre,
valse a le guance nette di rugiada
che, lagrimando, non tornasser atre. (XXX,
52-54)
nem
tudo o que perdeu a antiga mãe/ impediu que as faces limpas pelo orvalho/ se
tornassem escuras pelas lágrimas.
Na sequência, Dante
se surpreende ao ouvir a voz de Beatriz, chamando-o pelo nome no v. 55 (“que só por necessidade aqui se registra”-
che di necessità qui si registra- v. 63, a única vez em que é
mencionado na “Comédia”) (5) e dizendo-lhe
para não chorar, “pois chorar te convém
por outra espada” (ché pianger ti conven per altra spada- v.57). Ela, que estava sobre
o lado esquerdo do carro, no outro lado do rio, o censura implicitamente pelos
seus pecados, que não o tornavam digno de estar ali:
“Guardaci
ben! Ben son, ben son Beatrice.
Come degnasti d’accedere al monte?
non sapei tu che qui è l’uom felice?” (XXX, 73-75)
“Olha-me
bem! Sou eu, sou a própria Beatriz./ Como te dignaste subir o monte?/ Não
sabias que aqui o homem é feliz?”
Dante então é
tomado de vergonha, e não suporta nem mesmo ver sua imagem refletida no rio,
uma metáfora implícita da imagem de sua vida
pregressa pecaminosa:
Li occhi miei cadder giù nel chiaro fonte;
ma veggendomi in esso, i trassi a l’erba,
tanta
vergogna mi gravò la fronte. (XXX, 76-78)
Meus
olhos se abaixaram à clara fonte;/ mas vendo-me nela, desviei-os para a relva,/
tanta era a vergonha que me pesou na fronte.
Depois disso,
os anjos passaram a cantar os primeiros versos de um salmo, que inicia por “In te, Domine, speravi” (v. 83) e afirma
a esperança do pecador na misericórdia de Deus (trata-se do Salmo 31, 1-8,
segundo o comentarista) (6).
Segue-se uma
longa comparação de seu estado emocional com a neve dos cumes das montanhas do
“dorso da Itália” (lo
dosso d’Italia- v.86), a cadeia dos Apeninos (7). Essa neve, primeiro “se congela,/ atingida e adensada pelos ventos eslavos”
(/.../ si congela,/ soffiata e stretta da li venti schiavi- v.86-87) e depois é “derretida, escorrendo por si mesma” (poi,liquefatta,
in sé stessa trapela- v.88) pelo vento (quente) da “terra
sem sombra” (/.../ la terra che perde ombra /.../- v.89), i.e da África, “que parece fogo a derreter uma vela” (sì che
par foco fonder la candela- v.90). Assim estava Dante na primeira situação, “sem lágrimas e suspiros” (/.../ sanza lagrime e sospiri-
v. 91), mas
ao ouvir o canto dos anjos e entender que se compadeciam dele, derreteu-se o
seu gelo interior e ele não pode conter as lágrimas e suspiros:
ma poi che ‘ntesi ne le dolci tempre
lor compartire a me, par che se detto
avesser: “Donna, perché sì lo stempre?”
lo gel
che m’era intorno al cor ristretto,
spirito e acqua fessi, e con angoscia
de la
bocca e de li occhi uscì del petto. (XXX, 94- 99)
mas
quando entendi nos doces acordes/ sua compaixão por mim, como se tivessem dito/
“Senhora, por que assim o deprimes?”,
o gelo
que me envolvia o coração/ se fez água e suspiro, e em angústia/ saiu do peito
pela boca e pelos olhos.
Beatriz então
dirige-se às “substâncias pias” (sustanze
pie- v.101),
i.e. os anjos, e sua manifestação estende-se até o último verso do Canto. Mas
como os anjos velam “nos eternos dias”
(ne l’etterno die- v.103), e não há noite nem sono para eles, vale dizer acompanham tudo
o que ocorre “no século” (il
secol- v.105),
ela dirige-se, na realidade, para Dante, deseja
que “seja compreendida por aquele
que do lado de lá chora” (che m’intenda colui che di là piagne- v.107) pelos seus pecados,
ele que está lá quitando, com o sofrimento, sua culpa, a fim de que a dor seja
proporcional à culpa (v. 108). Ele só poderá avançar em sua jornada se remover
toda mácula do pecado em si, o que é alcançado pelo arrependimento...
Beatriz afirma que
“Não só por obra das esferas magnas” (Non pur
per ovra de le rote magne- v. 109), mas também pela graça divina, qualquer “pendor correto” (abito destro- v. 116) no jovem Dante (“na sua idade nova”: ne la sua vita nova- v. 115) poderia ter produzido
efeitos maravilhosos (Dante admite aqui, conforme as crenças medievais, que os astros
influenciavam as pessoas). Mas depois
que ela “mudou de vida” (quer dizer, faleceu), “este se afastou de mim, e se entregou a outrem” (questi
si tolse a me, e diessi altrui- v. 126), diz Beatriz.
Quando di carne a spirto era salita,
e bellezza e virtù cresciuta m’era,
fu’io a lui men cara e men gradita;
e volse i passi suoi per via non vera (XXX, 127-130)
Quando
me elevei de carne a espírito,/ e minha beleza e virtude cresceram,/ fui-lhe
menos cara e bem-vinda;
ele
voltou seus passos para via não verdadeira
Para Beatriz,
todos os recursos para fazer Dante voltar para o caminho da salvação foram insuficientes,
“exceto mostrar-lhe a gente condenada”
(fuor che mostrarli le perdute genti- v. 138). Foi por isso que ela
desceu ao reino dos mortos para pedir a ajuda de Virgílio.
O Canto é
concluído salientando a importância do arrependimento:
Alto fato di Dio sarebbe rotto,
se Letè si passasse e tal vivanda
fosse gustata sanza alcuno scotto
di pentimento che lagrime spanda. (v.142-145)
Alto
desígnio de Deus seria rompido/ se o Letes se passasse e tal refeição/ fosse
provada sem algum pagamento
de
arrependimento que faça verter lágrimas.
NOTAS
(1) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri-
“La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini, 2013- p. 677. Cf também o verbete
“setentrião” no “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, 2ª ed., revista
e ampliada. Ed. Nova Fronteira, p. 1579.
(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.395.
(3) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 310
(4) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.397.
(5)
SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p.313
(6) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”,
op cit, p. 311.
(7) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia- Dante Alighieri”. Tradução,
introdução e notas de Cristiano Martins-
5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v. 2, p.269.
S.Dalí- Arrependimento de Dante |
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