PURGATÓRIO
Aqui se trata do último canto do Purgatório. Para iniciar uma leitura sequencial, o visitante é convidado a ir até o Canto I, postagem feita em 25 de novembro de 2015:
http://curtindoopurgatorio.blogspot.com.br/2015/11/purgatorio-canto-i-segunda-parteda.html
OBS- um volume contendo todo o conteúdo deste site poderá ser adquirido em https://agbook.com.br/book/212479--SOBRE_A_DIVINA_COMEDIA_PURGATORIO
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Os interessados no "Inferno" poderão consultar http://curtindoacomedia.blogspot.com/ e no "Paraíso" http://curtindoacomedia-paraiso.blogspot.com/
Canto XXXIII
Após o sucedido no final do Canto anterior, a saber, o sequestro
do carro da Igreja pelo gigante (identificado como o rei de França), que se
interna na floresta junto com a sua amante (a Cúria romana), este Canto XXXIII inicia
com um lamento das sete damas (“ora três,
ora quatro”: or ter or quattro- v.2), ou seja, das três virtudes
teologais e quatro cardinais. Seu lamento, depreende-se, é pelo desvirtuamento
da Igreja, pois tal é em essência o significado daquela alegoria. As damas, não
por acaso, entoam o salmo 79, cujas primeiras palavras, em latim, iniciam o
v.1, e o Canto (o salmo fala da invasão dos pagãos que macularam o templo do
Senhor e reduziram Jerusalém a montes de pedras) (1). Beatriz,
/.../ sospirosa e pia,
quelle ascoltava sì fatta, che poco
più a la croce si cambiò Maria. (XXXIII, 4-6)
/.../
suspirando e piedosa,/ isso escutava tão alterada, que só pouco/ mais, junto à
cruz, ficou Maria.
Essa é mais uma
comparação, dentre as muitas do poema, inspirada
nos personagens e fatos mencionados na Bíblia... Na sequência, Beatriz ergue-se
(ela estava sentada sobre a raiz da árvore) e pronuncia, “corada
como fogo” (colorata come foco- v.9), palavras em latim que tomam quase todo o terceto e foram extraídas
do evangelho de S.João (16:16), conforme o comentarista, que traduzidas
afirmam: “Um pouco, e não me vereis mais,
e um pouco ainda e me vereis”, palavras essas pronunciadas por Cristo,
quando se referiu à sua morte iminente e à ressurreição. No contexto, são
interpretadas como uma indicação da restauração da Igreja, superando a sua baixa
condição atual (2).
Beatriz se põe
em marcha, dentro do Paraíso, colocando em sua frente as sete virtudes, e fazendo
Dante andar, juntamente com a dama (Matilda) e Estácio, os três seguindo atrás
dela. Depois, manda que ele avance um pouco mais, de modo a ficar ao seu lado,
pois ela se dispõe a responder às suas perguntas. Dante então assim se
manifesta, incluindo esta comparação curiosa, fruto de observação da vida
cotidiana:
Come a
color che troppo reverenti
dinanzi a suo maggior parlando sono,
che non
traggon la voce viva ai denti,
avvenne a me, che sanza intero suono
incominciai: “Madonna, mia bisogna
voi conoscete, e ciò ch’ad essa è buono.” (XXXIII, 25-30)
Como a
aqueles que, muito reverentes,/ diante de seus superiores, falam,/ e não levam
voz clara aos dentes,
a mim
sucedeu que sem inteiro som/ comecei:
“Senhora, minha necessidade/ vós conheceis, e o que é bom para ela”.
Beatriz em seguida manifesta-se longamente (até o v.78)
sobre essa alegoria, numa linguagem profética e obscura. Começa afirmando que “o carro que a serpente rompeu/ foi, e não é
mais” (/.../ ‘l vaso che ‘l serpente ruppe,/ fu e non è; /.../ - v.34-35), uma citação indireta
do Apocalipse e uma referência ao sequestro do carro da Igreja que a serpente
(ou melhor, o dragão antes referido, ou ainda satanás) danificou, e que não é
mais a Igreja de Deus pela sua situação atual corrompida (3). Mas os culpados por isso (o papa Clemente e
Filipe IV, rei de França, também chamado Filipe, o Belo) (4) sofrerão a “vingança de Deus” (vendetta
di Dio- v.36).
Na sequência, refere-se ao herdeiro da “águia
que deixou plumas no carro” (l’aguglia che lasciò le penne
al carro- v.38),
uma menção, como vimos no Canto anterior, ao Império Romano. Beatriz vê aproximar-se
o tempo
nel quale un cinquecento diece e cinque,
messo di Dio, anciderà la fuia
con quel gigante che con lei delinqüe (XXXIII, 43-45)
no qual
um quinhentos dez e cinco,/ enviado por Deus, matará a rameira/ e o gigante que
com ela peca.
Esse DXV, em algarismos romanos, foi entendido como
anagrama da palavra latina DVX, ou DUX,
que significa “líder”, “guia”, e por isso sua identidade foi atribuída a muitas
pessoas, uma delas Henrique VII, herdeiro do Império Romano, que todavia morreu
cedo, em 1313. Dante depositara nele suas esperanças de ver a Itália tumultuada de seu
tempo em ordem e o poder temporal nas mãos certas, liberando a Igreja para dedicar-se
exclusivamente ao campo espiritual, retornando assim às suas origens. Mas essa
é apenas uma das interpretações, e pouco convincente segundo Dorothy Sayers,
que acha mais adequado considerá-lo num sentido geral, pois a quem ele de fato
se refere provavelmente nunca saberemos (5). O que vale salientar é que
representa a esperança de Dante em alguém, “enviado por Deus”, que colocará a
sua Igreja novamente no bom caminho...
Beatriz
reconhece a sua “narração obscura,/ como
a de Temis e a da Esfinge” (/.../ la mia narrazion buia,/
qual Temi e Sfinge /.../- v.46-47) mas afirma que logo os fatos se encarregarão de esclarecê-la, da
mesma forma que Édipo esclareceu o enigma da Esfinge, fato que fez esta suicidar-se,
provocando a ira da deusa Temis, que por causa disso puniu Tebas matando os seus
rebanhos e colheitas (o v. 51 faz alusão indireta a isso, afirmando que não
haverá esse inconveniente quando os fatos esclarecerem o que é hoje obscuro)
(6).
Na sequência, Beatriz
incumbe Dante de uma missão quando retornar ao nosso mundo:
Tu nota; e sì come da me son porte,
così queste parole segna a‘ vivi
del
viver ch’é un correre a la morte. (XXXIII,
52-54)
Toma
nota; e do modo como digo/ estas palavras, assim as mostra a quem vive/ o viver
que é uma corrida para a morte.
Ele deverá
relatar como é que viu “a planta” (a árvore da Ciência do Bem e do Mal) “que aqui, agora, foi despojada duas vezes”
(ch’è or due volte dirubata quivi- v.57), uma pela
desobediência de Adão e outra pelos desvios históricos da Igreja, que
culminaram na situação precária dela na época de Dante. Beatriz adverte: “Quem quer que a despoje ou a danifique/ com
uma blasfêmia de fato ofende a Deus” (Qualunque ruba quella o quella
schianta,/ con bestemmia di fatto offende a Dio- v.58-59). E prosseguindo afirma:
Per morder quella, in pena e in disio
cinquemilia anni e più l’anima prima
bramò colui che ‘l morso in sé punio. (XXXIII, 61-63)
Por
morder dela, em penas e em desejo,/ cinco mil anos, e mais, a alma primeira/ ansiou
por aquele que em si a mordida puniu.
Os versos falam
de Adão. Segundo a Bíblia, ele viveu 930 anos, permanecendo no Limbo 4.302
anos, de acordo com o Paraíso (XXVI, 118), do que resulta os mais de 5 mil anos
referidos pelo poeta em que “a alma
primeira”, por morder do fruto daquela árvore, ansiou pela vinda de Cristo,
o qual puniria em si a falta dele... (7) Em sua fala, Beatriz refere-se ainda à altura e à forma invertida da
árvore em questão, com uma copa que se amplia à medida que sobe, imagem assim
da inacessibilidade de seus frutos ao ser humano, pela proibição da lei divina
(8). Dante perceberia isso, diz ela, se
não tivesse seu intelecto “feito de pedra
e, petrificado, tinto” (fatto di pietra e, impetrato, tinto- v. 74), como se tivesse sido mergulhado
nas águas do rio Elsa (um afluente do Arno rico em cal, ou óxido de cálcio, que
petrificava os objetos nele lançados) (v.67)
ou estivesse tinto, ou obscurecido, como as amoras, originalmente brancas, que
conforme a mitologia adquiriu a cor que apresentam pelo sangue de Píramo, o
qual se suicidou junto a uma amoreira (v.69). (9) Apesar disso, ela quer que Dante retenha suas
palavras e as leve dentro de si, ao retornar ao nosso mundo, assim como aquele
(o romeiro retornando da Terra Santa, subentende-se) que “traz o bordão ornado de palmas” (che si reca il bordon di
palma cinto- v. 78).
Dante então
responde que, como o sinete marca a cera, “marcado
está por vós agora o meu cérebro” (segnato è or da voi lo mio
cervello- v. 81).
E pergunta por que razão as palavras dela estão tão acima de seu entendimento.
Na resposta de Beatriz está contida implicitamente uma crítica à filosofia, à
qual Dante dedicou muito tempo de sua vida, indicando que ela é insuficiente
para a compreensão das verdades reveladas:
“Perché conoschi,” disse, “quella scuola
c’hai seguitata, e veggi sua dottrina
come
può seguitar la mia parola;
e veggi vostra via de la divina
distar cotanto, quanto si discorda
da terra il ciel che più alto
festina.” (XXXIII, 85-90)
“Para
que conheças”, disse, “aquela escola/ que seguiste, e vejas como pode sua
doutrina/ seguir a minha palavra;
e vejas
vossa via da divina/ distar tanto quanto dista/ da terra o céu que mais alto e
rápido gira”.
Este céu é
identificado como o Primum Mobile, a mais afastada das nove esferas celestes
que, na concepção de Dante, giram acima do nosso mundo (cujo ponto extremo é o
topo da montanha do Purgatório, onde está situado o Paraíso Terrestre).
Mais adiante, Beatriz
afirma que a partir de agora suas palavras “serão
desnudas” (saranno nude- v.100), quer dizer não serão mais obscuras, “/.../ quanto convirá/ tal desvelamento para a tua vista rude” (/.../
quanto converrassi/ quelle scovrire a la tua vista rude- v. 101-102)
Era meio-dia no
Purgatório, com o sol “mais fulgurante”
(più corusco- v.103), quando as sete damas se detêm, numa região de sombra pálida “qual a que, sob folhas verdes e ramos
negros,/ a montanha lança sobre os seus frios riachos” (qual
sotto foglie verdi e rami nigri/ sovra suoi freddi rivi l’alpe porta- v.110-111). Ali Dante vê dois rios saírem de uma mesma
nascente, e depois se afastarem entre si.
Eles os chama de Eufrates e Tigre, mas na realidade trata-se do Letes (o
rio que apaga a memória do pecado) e Eunoe (o que reaviva a memória do bem
praticado). Dante pergunta sobre eles a Beatriz, assim invocada: “Ó luz, ó glória da humana gente” (O luce,
o gloria de la gente umana- v. 115). Esta designa Matilda
(v. 119; pela primeira e única vez citada pelo nome) para lhe responder, a qual afirma que já lhe tinha explicado sobre
esses rios. Ela está segura “que a água
do Letes não esconde isso dele” (che l’acqua
di Letè non gliel nascose- v. 123), pois, já que não era pecado, sua lembrança do fato não teria sido
apagada pelo rio (ao contrário da culpa de Dante por ter se apartado de
Beatriz, da qual ele não recorda: “esse esquecimento demonstra claramente/
culpa em tua vontade voltada a outras coisas” (cotesta oblivïon chiaro
conchiude/ colpa ne la tua voglia altrove attenta- v.98-99. Note-se a presença da
aliteração nesses versos).
G.Doré- O Eunoe
|
Beatriz então lhe
diz que talvez uma outra preocupação “tenha
obscurecido os olhos de sua mente” (fatt’ ha la mente sua ne li
occhi oscura- v. 126) (na realidade, a atenção de Dante devia estar voltada para a própria
Beatriz). E dá esta incumbência a Matilda:
Ma vedi Eünoè che là diriva:
menalo ad esso, e come tu se’ usa,
la tramortita sua virtù ravviva. (XXXIII, 127-129)
Mas vê
o Eunoe que por lá flui:/ leva-o até ele, e como estás acostumada a fazer/ a
sua memória amortecida reaviva.
Essa última
afirmação indica que Matilda desempenha esse papel habitualmente no topo da
montanha do Purgatório, preparando as almas para a sua ascensão ao Paraíso
celeste. Dante então é levado por ela até o Eunoe. Estácio o acompanha, atendendo
ao chamado que Matilda lhe faz.
Tendo já
ocupado o espaço que reservara a este “cântico segundo” (cantica
seconda- v.140),
o narrador interrompe-se aqui, sem cantar “aquela
doce bebida que jamais me teria saciado” (lo dolce ber che mai non
m’avria sazio- v.138), pois “não me deixa ir além o freio da arte” (non mi
lascia più ir lo fren de l’arte- v.141). E assim conclui o
Canto XXXIII, e o cântico do Purgatório, enfatizando a sua renovação cristã (10)
e referindo-se às estrelas no último verso, o que ocorre ao fim dos três
cânticos da “Divina Comédia”:
Io ritornai da la santissima onda
rifatto sì come piante novelle
rinovellate di novella fronda,
puro e disposto a salire a le stelle. (XXXIII, 142-145)
Retornei
daquela santíssima água/ refeito como plantas jovens/ renovadas pelas folhas
novas
puro e
disposto a subir às estrelas.
Amos Nattini |
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p.404.
(2)
Id., ib., p. 404.
(3) Id.
ib., p. 405;
(4) MUSA, Mark--
“Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an
Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 364. Cf também SAYERS,
Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p. 377.
(5) SAYERS,
Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”, op. cit., p. 336.
(6)
CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 342.
(7) Id.,
ib., p. 342.
(8) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 407.
(9)
CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 343.
(10) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 409..
J. Flaxman- Aproximação do Eunoe |
S.Dalí- Dante purificado |
W.Blake- O gigante e a meretriz |
Comentário de Mônica Mariano (em 31 de julho de 2023):
ResponderExcluirUm espetáculo.
Que obra maravilhosa. Ajuda demais a entender esse primor que é A divina comédia de Dante. Amei!