segunda-feira, 25 de abril de 2016

Canto XXXIII


PURGATÓRIO

Aqui se trata do último canto do Purgatório. Para iniciar uma leitura sequencial, o visitante é convidado a ir até o Canto I, postagem feita em 25 de novembro de 2015:
http://curtindoopurgatorio.blogspot.com.br/2015/11/purgatorio-canto-i-segunda-parteda.html

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Os interessados no "Inferno" poderão consultar http://curtindoacomedia.blogspot.com/  e no "Paraíso" http://curtindoacomedia-paraiso.blogspot.com/
   


Canto XXXIII


            Após o sucedido no final do Canto anterior, a saber, o sequestro do carro da Igreja pelo gigante (identificado como o rei de França), que se interna na floresta junto com a sua amante (a Cúria romana), este Canto XXXIII inicia com um lamento das sete damas (“ora três, ora quatro”: or ter or quattro- v.2), ou seja, das  três virtudes teologais e quatro cardinais. Seu lamento, depreende-se, é pelo desvirtuamento da Igreja, pois tal é em essência o significado daquela alegoria. As damas, não por acaso, entoam o salmo 79, cujas primeiras palavras, em latim, iniciam o v.1, e o Canto (o salmo fala da invasão dos pagãos que macularam o templo do Senhor e reduziram Jerusalém a montes de pedras) (1).  Beatriz,

/.../  sospirosa e pia,
quelle ascoltava sì fatta, che poco
più a la croce  si cambiò Maria.    (XXXIII, 4-6)

/.../ suspirando e piedosa,/ isso escutava tão alterada, que só pouco/ mais, junto à cruz, ficou Maria.

            Essa é mais uma comparação, dentre as muitas do poema,  inspirada nos personagens e fatos mencionados na Bíblia... Na sequência, Beatriz ergue-se (ela estava sentada sobre a raiz da árvore) e pronuncia,  corada como fogo” (colorata come foco- v.9), palavras em latim que tomam quase todo o terceto e foram extraídas do evangelho de S.João (16:16), conforme o comentarista, que traduzidas afirmam: “Um pouco, e não me vereis mais, e um pouco ainda e me vereis”, palavras essas pronunciadas por Cristo, quando se referiu à sua morte iminente e à ressurreição. No contexto, são interpretadas como uma indicação da restauração da Igreja, superando a sua baixa condição atual (2).        
       
            Beatriz se põe em marcha, dentro do Paraíso, colocando em sua frente as sete virtudes, e fazendo Dante andar, juntamente com a dama (Matilda) e Estácio, os três seguindo atrás dela. Depois, manda que ele avance um pouco mais, de modo a ficar ao seu lado, pois ela se dispõe a responder às suas perguntas. Dante então assim se manifesta, incluindo esta comparação curiosa, fruto de observação da vida cotidiana:

Come a color che troppo reverenti
dinanzi a suo maggior parlando sono,
che non traggon la voce viva ai denti,

avvenne a me, che sanza intero suono
incominciai: “Madonna, mia bisogna
voi conoscete, e ciò ch’ad essa è buono.”    (XXXIII,  25-30)

Como a aqueles que, muito reverentes,/ diante de seus superiores, falam,/ e não levam voz clara aos dentes,
a mim sucedeu que sem inteiro som/ comecei:  “Senhora, minha necessidade/ vós conheceis, e o que é bom para ela”.

            Beatriz em seguida manifesta-se longamente (até o v.78) sobre essa alegoria, numa linguagem profética e obscura. Começa afirmando que “o carro que a serpente rompeu/ foi, e não é mais” (/.../ ‘l vaso che ‘l serpente ruppe,/ fu e non è; /.../ - v.34-35), uma citação indireta do Apocalipse e uma referência ao sequestro do carro da Igreja que a serpente (ou melhor, o dragão antes referido, ou ainda satanás) danificou, e que não é mais a Igreja de Deus pela sua situação atual corrompida (3).  Mas os culpados por isso (o papa Clemente e Filipe IV, rei de França, também chamado Filipe, o Belo) (4) sofrerão a “vingança de Deus” (vendetta di Dio- v.36). Na sequência, refere-se ao herdeiro da “águia que deixou plumas no carro” (l’aguglia che lasciò le penne al carro- v.38), uma menção, como vimos no Canto anterior, ao Império Romano. Beatriz vê aproximar-se o tempo

nel quale un cinquecento diece e cinque,
messo di Dio, anciderà la fuia
con quel gigante che con lei delinqüe    (XXXIII, 43-45)

no qual um quinhentos dez e cinco,/ enviado por Deus, matará a rameira/ e o gigante que com ela peca.  

            Esse DXV, em algarismos romanos, foi entendido como anagrama da  palavra latina DVX, ou DUX, que significa “líder”, “guia”, e por isso sua identidade foi atribuída a muitas pessoas, uma delas Henrique VII, herdeiro do Império Romano, que todavia morreu cedo, em 1313. Dante depositara nele suas  esperanças de ver a Itália tumultuada de seu tempo em ordem e o poder temporal nas mãos certas, liberando a Igreja para dedicar-se exclusivamente ao campo espiritual, retornando assim às suas origens. Mas essa é apenas uma das interpretações, e pouco convincente segundo Dorothy Sayers, que acha mais adequado considerá-lo num sentido geral, pois a quem ele de fato se refere provavelmente nunca saberemos (5). O que vale salientar é que representa a esperança de Dante em alguém, “enviado por Deus”, que colocará a sua Igreja novamente no bom caminho...

            Beatriz reconhece a sua “narração obscura,/ como a de Temis e a da Esfinge” (/.../ la mia narrazion buia,/ qual Temi e Sfinge /.../- v.46-47) mas afirma que logo os fatos se encarregarão de esclarecê-la, da mesma forma que Édipo esclareceu o enigma da Esfinge, fato que fez esta suicidar-se, provocando a ira da deusa Temis, que por causa disso puniu Tebas matando os seus rebanhos e colheitas (o v. 51 faz alusão indireta a isso, afirmando que não haverá esse inconveniente quando os fatos esclarecerem o que é hoje obscuro) (6).  

            Na sequência, Beatriz incumbe Dante de uma missão quando retornar ao nosso mundo:

Tu nota; e sì come da me son porte,
così queste parole segna a‘ vivi
del viver ch’é un correre a la morte.    (XXXIII,  52-54)

Toma nota; e do modo como digo/ estas palavras, assim as mostra a quem vive/ o viver que é uma corrida para a morte.

            Ele deverá relatar como é que viu “a planta” (a árvore da Ciência do Bem e do Mal) “que aqui, agora, foi despojada duas vezes” (ch’è or due volte dirubata quivi- v.57), uma pela desobediência de Adão e outra pelos desvios históricos da Igreja, que culminaram na situação precária dela na época de Dante. Beatriz adverte: “Quem quer que a despoje ou a danifique/ com uma blasfêmia de fato ofende a Deus” (Qualunque ruba quella o quella schianta,/ con bestemmia di fatto offende a Dio- v.58-59).  E prosseguindo afirma:

Per morder quella, in pena e in disio
cinquemilia anni e più l’anima prima
bramò colui che ‘l morso in sé punio.    (XXXIII, 61-63)

Por morder dela, em penas e em desejo,/ cinco mil anos, e mais, a alma primeira/ ansiou por aquele que em si a mordida puniu.  

            Os versos falam de Adão. Segundo a Bíblia, ele viveu 930 anos, permanecendo no Limbo 4.302 anos, de acordo com o Paraíso (XXVI, 118), do que resulta os mais de 5 mil anos referidos pelo poeta em que “a alma primeira”, por morder do fruto daquela árvore, ansiou pela vinda de Cristo, o qual puniria em si a falta dele... (7)  Em sua fala, Beatriz  refere-se ainda à altura e à forma invertida da árvore em questão, com uma copa que se amplia à medida que sobe, imagem assim da inacessibilidade de seus frutos ao ser humano, pela proibição da lei divina (8). Dante perceberia isso, diz ela,  se não tivesse seu intelecto “feito de pedra e, petrificado, tinto” (fatto di pietra e, impetrato, tinto- v. 74), como se tivesse sido mergulhado nas águas do rio Elsa (um afluente do Arno rico em cal, ou óxido de cálcio, que petrificava os  objetos nele lançados) (v.67) ou estivesse tinto, ou obscurecido, como as amoras, originalmente brancas, que conforme a mitologia adquiriu a cor que apresentam pelo sangue de Píramo, o qual se suicidou junto a uma amoreira (v.69). (9)  Apesar disso, ela quer que Dante retenha suas palavras e as leve dentro de si, ao retornar ao nosso mundo, assim como aquele (o romeiro retornando da Terra Santa, subentende-se) que “traz o bordão ornado de palmas” (che si reca il bordon di palma cinto- v. 78). 

            Dante então responde que, como o sinete marca a cera, “marcado está por vós agora o meu cérebro” (segnato è or da voi lo mio cervello- v. 81). E pergunta por que razão as palavras dela estão tão acima de seu entendimento. Na resposta de Beatriz está contida implicitamente uma crítica à filosofia, à qual Dante dedicou muito tempo de sua vida, indicando que ela é insuficiente para a compreensão das verdades reveladas:

“Perché conoschi,” disse, “quella scuola
c’hai seguitata, e veggi sua dottrina
come può seguitar la mia parola;

e veggi vostra via de la divina
distar cotanto, quanto si discorda
da terra il ciel che più alto festina.”   (XXXIII, 85-90)

“Para que conheças”, disse, “aquela escola/ que seguiste, e vejas como pode sua doutrina/ seguir a minha palavra;
e vejas vossa via da divina/ distar tanto quanto dista/ da terra o céu que mais alto e rápido gira”.  

            Este céu é identificado como o Primum Mobile, a mais afastada das nove esferas celestes que, na concepção de Dante, giram acima do nosso mundo (cujo ponto extremo é o topo da montanha do Purgatório, onde está situado o Paraíso Terrestre).   

            Mais adiante, Beatriz afirma que a partir de agora suas palavras “serão desnudas” (saranno nude- v.100), quer dizer não serão mais obscuras, “/.../ quanto convirá/ tal desvelamento para a tua vista rude” (/.../ quanto converrassi/ quelle scovrire a la tua vista rude- v. 101-102) 

            Era meio-dia no Purgatório, com o sol “mais fulgurante” (più corusco- v.103), quando as sete damas se detêm, numa região de sombra pálida “qual a que, sob folhas verdes e ramos negros,/ a montanha lança sobre os seus frios riachos” (qual sotto foglie verdi e rami nigri/ sovra suoi freddi rivi l’alpe porta- v.110-111).  Ali Dante vê dois rios saírem de uma mesma nascente, e depois se afastarem entre si.  Eles os chama de Eufrates e Tigre, mas na realidade trata-se do Letes (o rio que apaga a memória do pecado) e Eunoe (o que reaviva a memória do bem praticado). Dante pergunta sobre eles a Beatriz, assim invocada: “Ó luz, ó glória da humana gente” (O luce, o gloria de la gente umana-  v. 115). Esta designa Matilda (v. 119; pela primeira e única vez citada pelo nome) para lhe responder,  a qual afirma que já lhe tinha explicado sobre esses rios. Ela está segura “que a água do Letes não esconde isso dele” (che l’acqua di Letè non gliel nascose- v. 123), pois, já que não era pecado, sua lembrança do fato não teria sido apagada pelo rio (ao contrário da culpa de Dante por ter se apartado de Beatriz, da qual ele não recorda:  esse esquecimento demonstra claramente/ culpa em tua vontade voltada a outras coisas (cotesta oblivïon chiaro conchiude/ colpa ne la tua voglia altrove attenta- v.98-99. Note-se a presença da aliteração nesses versos).  


G.Doré- O Eunoe

            Beatriz então lhe diz que talvez uma outra preocupação “tenha obscurecido os olhos de sua mente” (fatt’ ha la mente sua ne li occhi oscura- v. 126) (na realidade, a atenção de Dante devia estar voltada para a própria Beatriz).    E dá esta incumbência a Matilda:

Ma vedi Eünoè che là diriva:
menalo ad esso, e come tu se’ usa,
la tramortita sua virtù ravviva.    (XXXIII, 127-129)

Mas vê o Eunoe que por lá flui:/ leva-o até ele, e como estás acostumada a fazer/ a sua memória amortecida reaviva 

            Essa última afirmação indica que Matilda desempenha esse papel habitualmente no topo da montanha do Purgatório, preparando as almas para a sua ascensão ao Paraíso celeste. Dante então é levado por ela até o Eunoe. Estácio o acompanha, atendendo ao chamado que Matilda lhe faz.

            Tendo já ocupado o espaço que reservara a este “cântico segundo” (cantica seconda- v.140), o narrador interrompe-se aqui, sem cantar “aquela doce bebida que jamais me teria saciado” (lo dolce ber che mai non m’avria sazio-  v.138), pois “não me deixa ir além o freio da arte” (non mi lascia più ir lo fren de l’arte- v.141).  E assim conclui o Canto XXXIII, e o cântico do Purgatório, enfatizando a sua renovação cristã (10) e referindo-se às estrelas no último verso, o que ocorre ao fim dos três cânticos da “Divina Comédia”:  

Io ritornai da la santissima onda
rifatto sì come piante novelle
rinovellate di novella fronda,

puro e disposto a salire a le stelle.   (XXXIII,  142-145)

Retornei daquela santíssima água/ refeito como plantas jovens/ renovadas pelas folhas novas
puro e disposto a subir às estrelas.


Amos Nattini
 NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.404.

(2) Id., ib., p. 404.

(3) Id. ib., p. 405; 

(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 364.  Cf também SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 377.

(5) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op. cit., p. 336.

(6) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 342.  

(7) Id., ib., p. 342. 

(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 407.

(9) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 343.  

(10) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 409.. 

J. Flaxman- Aproximação do Eunoe

S.Dalí- Dante purificado 

W.Blake- O gigante e a meretriz

Um comentário:

  1. Comentário de Mônica Mariano (em 31 de julho de 2023):

    Um espetáculo.
    Que obra maravilhosa. Ajuda demais a entender esse primor que é A divina comédia de Dante. Amei!

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