quarta-feira, 6 de abril de 2016

Canto XXVIII


PURGATÓRIO


Canto XXVIII
           

            O Canto inicia pela descrição de uma bela região, logo identificada como a do Paraíso Terrestre, que se situa no topo da montanha do Purgatório. Dante toma a iniciativa (adiantando-se aos seus guias) de entrar nessa “divina floresta” (divina foresta- v.2) no amanhecer daquele dia, uma floresta “que o novo dia temperava aos olhos” (ch’a li occhi temperava il novo giorno- v.3) (ressalte-se a sinestesia desse verso). O poeta diz que pisa num solo perfumado em toda parte, forma indireta de se referir às flores presentes nessa região, onde sopra “Uma brisa doce, sempre igual/ a si mesma” (Un’aura dolce, sanza mutamento/ avere in sé, /.../- v.7-8) (mais adiante, entenderemos porque é assim) que fazia inclinar a copa das árvores para o ocidente, não porém tanto “que os passarinhos, pelos cimos,/ deixassem todos de exercer a sua arte(/.../ che li augelletti per le cime/ lasciasser d’operare ogne lor arte- v.14-15), enquanto as folhas (ou o rumor delas)  faziam bordão às suas rimas” (che tenevan bordone a le sue rime- v.18) (i.e. às rimas do canto dos pássaros). Essa situação no Paraíso é objeto de uma comparação (v. 19-21) a uma bela região familiar ao poeta, em que é lembrada uma praia do Adriático, perto de Ravenna (onde Dante residiu), e são referidos o deus mitológico dos ventos Eolo (que os mantinha presos em uma caverna) e Siroco, o vento quente e seco vindo da África... (1)   

G. Doré- O Paraíso Terrestre
            Avançando para dentro da “selva antiga” (v. 24), eis que Dante se depara com

/.../ un rio,
che ‘nver’ sinistra con sue picciole onde
piegava l’erba che ‘n sua ripa uscìo.     (XXVIII,  25-27)

/.../ um rio,/ que para a esquerda, com suas pequenas ondas,/ inclinava a erva crescida em sua margem.

            Reitera-se aqui o sentido do “suave vento” (soave vento- v.9) pois a erva se inclinava para a esquerda, no sentido leste-oeste...

            Na sequência, os versos mencionam a água desse rio, que mais adiante, no v.130, será identificado como o rio Letes (do esquecimento, na mitologia clássica). A essa, a nossa mais límpida água não se iguala. Todavia, quando ele corre subterraneamente suas águas são escuras:

avvegna che si mova bruna bruna
sotto l’ombra perpetüa, che mai
raggiar non lascia sole ivi né luna   (XXVIII,  31-33)

embora corra escura, escura/ sob a sombra perpétua, que jamais/ recebe raio de sol ou lua 


Amos Nattini

            Dante contempla a outra margem do riacho, variadamente florida -- com “a grande variação de fresco maio” (la gran varïazion d’i freschi mai- v. 36) (pois o Paraíso Terrestre é uma primavera permanente, conforme o v. 143) – e, de repente, sua atenção é atraída por

una donna soletta che si gia
e cantando e scegliendo fior da fiore
ond’era pinta tutta la sua via       (XXVIII,  40-42)

uma dama sozinha que caminhava/ cantando e escolhendo flor dentre as flores/ que coloriam toda a sua via

            Ele então pede para ela se aproximar pois deseja entender o que diz em seu canto. E afirma que ela o faz recordar de Proserpina

Tu mi fai rimembrar dove e qual era
Proserpina nel tempo che perdette
la madre lei, ed ella primavera.     (XXVIII,  49-51)

Tu me fazes recordar onde estava e como era/ Proserpina no tempo em que a mãe/ a perdera, e ela, a primavera”.

            Segundo a mitologia, Proserpina, filha da deusa da Terra, Ceres, foi levada à força ao Hades pelo seu rei enquanto colhia flores (i.e. na primavera). Depois de libertada, foi obrigada a descer ao mundo subterrâneo e lá passar um terço de todo ano, por ter comido parte de uma romã. Para Sayers, “esse mito é usado por Dante como uma imagem da Queda do Homem e da perda do Eden” (2)

            A dama atende ao seu pedido, e aproxima-se. Quando ela levanta seus olhos, Dante compara seu olhar amoroso ao de Vênus, afirmando que ele não crê “que brilhasse tanta luz” (Non credo che splendesse tanto lume-  v.64) sob os cílios desta, após ser transpassada por uma seta (Vênus, após ser flechada, acidentalmente, por seu filho Cupido, apaixonou-se por Adonis) (3).  

Ella ridea da l’altra riva dritta,
trattando più color con le sue mani,
che l’alta terra sanza seme gitta.      (XXVIII, 67-69)

Ela sorria, em pé, da outra margem,/ entretecendo com suas mãos diversas cores/ que esta alta terra, sem semente, produz.

            Note-se o uso metonímico da palavra “cores” em vez de “flores” no v. 68 e a produção “sem semente” delas, que são mera decorrência da vontade divina.

            A seguir Dante manifesta seu ódio por aquele rio que o separa da dama sorridente, comparando-o ao ódio que sentiu Leandro (um jovem de Abidos, na Ásia Menor, apaixonado por Hero, sacerdotisa de Afrodite, em Sestos, na Grécia) certamente no dia em que pereceu no Helesponto, que ele cruzava habitualmente a nado para ver sua amada. O Helesponto é o atual estreito de Dardanelos, que separa a Europa da Ásia. O poeta também faz aí rápida menção a Xerxes. Esse rei persa, em guerra com os gregos em 485 a.C., cruzou o estreito na ponte formada pelos seus barcos unidos e voltou por ali humilhado, após sua derrota.  Por isso Dante diz que o Helesponto é “ainda freio a todo orgulho humano” (ancora freno a tutti orgogli umani-  v.72). (4)

            Então a dama -- que só saberemos chamar-se Matilda pela única menção  ao seu nome no v. 119 do último canto do Purgatório e sobre quem não há consenso, entre os comentadores, sobre a figura histórica a que se refere – então essa dama, repito, explica a Dante a razão de seu sorriso, indicando-lhe o salmo “Delectasti”, ou seja, o salmo 92, de onde se infere que ela se rejubila pelas obras divinas (5).  Antes ela define o lugar em que está, o Paraíso Terrestre, assim: “neste lugar escolhido/ para ser o ninho da natureza humana” (/.../ in questo luogo eletto/ a l’umana natura per suo nido- v. 77-78). E se dispõe a responder às questões que Dante quiser lhe formular.

            O vate florentino está intrigado com o que vê ali, a água e o rumor das copas das árvores resultante do vento que sopra, pois isso está em desacordo com o que Estácio lhe havia dito antes (cf canto XXI, 43-54), de que no Purgatório não há alterações atmosféricas (6).

            A partir do v. 88, até o v. 144 (o Canto tem 148 versos), é Matilda quem fala. Ela explica a Dante que de fato ali não há tais fenômenos como em nosso mundo. O sumo Bem  colocou o Éden no topo da montanha do Purgatório para que o ser humano ali vivesse livre de todas as perturbações, inclusive dessas, atmosféricas. Esse terraço está mais próximo das esferas celestes, a primeira das quais, a do Primo Mobile (7), é responsável pelo movimento cósmico e assim pelo vento suave e constante que ali sopra, sempre no sentido leste-oeste. 

            Quanto à agua que Dante vê, ela não resulta dos vapores terrestres, que causam a chuva, como se verá adiante.

            Antes Matilda assim se refere ao Paraíso Terrestre (é Dante que fala por sua boca, refletindo a doutrina católica do pecado original):

Lo sommo Ben, che solo esso a sé piace,
fé l’uom buono e a bene, e questo loco
diede per arr’ a lui d’etterna pace.

Per sua difalta qui dimorò poco;
per sua difalta in pianto e in affanno
cambiò onesto riso e dolce gioco.       (XXVIII,  91-96)

O sumo Bem, que só em si mesmo se compraz,/ fez o homem bom e para o bem, e este lugar/ lhe deu como garantia de eterna paz.
Por sua falta, aqui demorou pouco;/ por sua falta, mudou em pranto e em canseira/ o riso honesto e o doce jogo.   

            O sumo Bem (Deus), sendo perfeito, só se satisfaz com a perfeição (v. 91). Ele fez o homem à sua imagem e semelhança, dotando-o de livre-arbítrio. Mas este escolheu desobedecê-lo... Por isso, foi expulso do Paraíso.      

            O ar movido pela “primeira esfera” (la prima volta- v.104) possui uma virtude generativa de modo que as plantas, atingidas pelo vento, dissemina-as aí, e também na “outra terra” (l’altra terra- v.112), quer dizer, na nossa (ou no hemisfério Norte, oposto ao Sul, desabitado, em que se situa o monte do Purgatório):

Non parrebbe di là poi maraviglia,
udito questo, quando alcuna pianta
sanza seme palese vi s’appiglia.

E saper dei che la campagna santa
dove tu se’, d’ogne semenza è piena,
e frutto ha in sé che di là non si schianta.     (XXVIII, 115-120)

Não deveria pois lá causar admiração,/ ouvido isto, quando alguma planta / ali cresça sem semente manifesta.
E deves saber que o santo campo/ em que estás tem todas as sementes,/ e há aqui frutos que lá não se colhem  

            Matilda prossegue nessa caracterização do Paraíso Terrestre referindo-se em seguida à água desse lugar que, diferentemente do que ocorre em nosso mundo, não se origina da evaporação e depois da sua condensação, 

ma esce di fontana salda e certa,
che tanto dal voler di Dio riprende,
quant’ ella versa da due parti aperta.   (XXVIII, 124-126)

mas brota de uma fonte firme e certa/ que tanto recupera pela vontade de Deus/ quanto verte em duas direções.

            Dessa fonte originam-se os dois rios que banham o terraço. O Letes, presente nesta parte em que os três poetas estão, que apaga a memória do pecado, e o Eunoe, “do outro lado” (da l’altro lato- v.130), que restaura a memória de todo o bem feito:

Da questa parte con virtù discende
che toglie altrui memoria del peccato;
da l’altra d’ogne ben fatto la rende.       (XXVIII, 127-129)

Desta parte, desce com a virtude/ de apagar a memória do pecado;/ da outra, restaura a de todo o bem feito

            Enquanto o Letes pertence à tradição mitológica, o Eunoe é invenção de Dante. Nada impuro entra no Paraíso, nem mesmo a memória do pecado. Por isso, os versos 131-132 dizem que as duas águas devem ser provadas, não só a do Eunoe mas também a do Letes.

            Na conclusão do Canto, Matilda acrescenta um “corolário” (v.136) ao que acabou de expor.  Ela diz que os poetas antigos -- que cantaram  a idade de ouro e seu estado feliz” (l’età de l’oro e suo stato felice- v. 140) -- talvez tenham colocado este lugar no Parnaso. Então, Dante se volta para os “seus” poetas, Virgílio e Estácio, e os vê, sorridentes, pois haviam ouvido o que dissera essa “bela dama” (bella donna- vv. 43 e 148). Nessa ocasião, ela adiciona mais esta observação sobre o Paraíso Terrestre, onde é “sempre primavera”:

Qui fu innocente l’umana radice;
qui primavera sempre e ogne frutto;
nettare è questo di che ciascun dice.   (XXVIII, 142-144)

Aqui foi inocente a humana raiz;/ aqui é sempre primavera e há todo fruto;/ este é o néctar de que todos falam.

            Uma observação final: o livro “Dante’s Divine Comedy- Purgatorio”, de Kathryn Lindskoog (Mercer University Press, 1997), é antecedido por um interessante ensaio a respeito do quadro “Primavera” de Botticelli, de caráter alegórico. Para além da interpretação usual desse quadro, que o relaciona à mitologia clássica pagã, a autora o interpreta também de acordo com o mito judaico-cristão do Jardim do Éden, considerando-o como uma ilustração dos  cantos 28 a 31 do “Purgatório”.      



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-p. 388

(2) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 294-295.

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.389. 

(4) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 290.   

(5) Id., ib., p. 290.  

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.390. 

(7) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri- “La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini,  2013-  p. 659.

Salvador Dalí

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