PURGATÓRIO
Canto XXVIII
O Canto inicia
pela descrição de uma bela região, logo identificada como a do Paraíso
Terrestre, que se situa no topo da montanha do Purgatório. Dante toma a iniciativa
(adiantando-se aos seus guias) de entrar nessa “divina floresta” (divina foresta- v.2) no amanhecer daquele
dia, uma floresta “que o novo dia
temperava aos olhos” (ch’a li occhi temperava il novo giorno- v.3) (ressalte-se a
sinestesia desse verso). O poeta diz que pisa num solo perfumado em toda parte,
forma indireta de se referir às flores presentes nessa região, onde sopra “Uma brisa doce, sempre igual/ a si mesma”
(Un’aura dolce, sanza mutamento/ avere in sé, /.../- v.7-8) (mais adiante,
entenderemos porque é assim) que fazia inclinar a copa das árvores para o
ocidente, não porém tanto “que os
passarinhos, pelos cimos,/ deixassem todos de exercer a sua arte” (/.../
che li augelletti per le cime/ lasciasser d’operare ogne lor arte- v.14-15), enquanto as folhas (ou
o rumor delas) “faziam bordão às suas rimas” (che tenevan bordone a le sue
rime- v.18)
(i.e. às rimas do canto dos pássaros). Essa situação no Paraíso é objeto de uma
comparação (v. 19-21) a uma bela região familiar ao poeta, em que é lembrada
uma praia do Adriático, perto de Ravenna (onde Dante residiu), e são referidos o
deus mitológico dos ventos Eolo (que os mantinha presos em uma caverna) e Siroco,
o vento quente e seco vindo da África... (1)
G. Doré- O Paraíso Terrestre |
Avançando para
dentro da “selva antiga” (v. 24), eis
que Dante se depara com
/.../
un rio,
che
‘nver’ sinistra con sue picciole onde
piegava l’erba che ‘n sua ripa uscìo. (XXVIII,
25-27)
/.../
um rio,/ que para a esquerda, com suas pequenas ondas,/ inclinava a erva
crescida em sua margem.
Reitera-se aqui
o sentido do “suave vento” (soave
vento- v.9)
pois a erva se inclinava para a esquerda, no sentido leste-oeste...
Na sequência,
os versos mencionam a água desse rio, que mais adiante, no v.130, será
identificado como o rio Letes (do esquecimento, na mitologia clássica). A essa,
a nossa mais límpida água não se iguala. Todavia, quando ele corre subterraneamente
suas águas são escuras:
avvegna che si mova bruna bruna
sotto l’ombra perpetüa, che mai
raggiar non lascia sole ivi né luna (XXVIII, 31-33)
embora
corra escura, escura/ sob a sombra perpétua, que jamais/ recebe raio de sol ou
lua
Amos Nattini |
Dante contempla
a outra margem do riacho, variadamente florida -- com “a grande variação de fresco maio” (la gran varïazion d’i
freschi mai- v. 36) (pois o Paraíso Terrestre é uma primavera permanente, conforme
o v. 143) – e, de repente, sua atenção é atraída por
una
donna soletta che si gia
e cantando e scegliendo fior da fiore
ond’era pinta tutta la sua via (XXVIII,
40-42)
uma
dama sozinha que caminhava/ cantando e escolhendo flor dentre as flores/ que
coloriam toda a sua via
Ele então pede
para ela se aproximar pois deseja entender o que diz em seu canto. E afirma que
ela o faz recordar de Proserpina
Tu mi fai rimembrar dove e qual era
Proserpina nel tempo che perdette
la madre lei, ed ella primavera. (XXVIII, 49-51)
Tu me fazes recordar onde estava e como
era/ Proserpina no tempo em que a mãe/ a
perdera, e ela, a primavera”.
Segundo a
mitologia, Proserpina, filha da deusa da Terra, Ceres, foi levada à força ao
Hades pelo seu rei enquanto colhia flores (i.e. na primavera). Depois de
libertada, foi obrigada a descer ao mundo subterrâneo e lá passar um terço de
todo ano, por ter comido parte de uma romã. Para Sayers, “esse mito é usado por
Dante como uma imagem da Queda do Homem e da perda do Eden” (2)
A dama atende
ao seu pedido, e aproxima-se. Quando ela levanta seus olhos, Dante compara seu
olhar amoroso ao de Vênus, afirmando que ele não crê “que brilhasse tanta luz” (Non credo che splendesse tanto
lume- v.64) sob os cílios desta, após ser
transpassada por uma seta (Vênus, após ser flechada, acidentalmente, por seu
filho Cupido, apaixonou-se por Adonis) (3).
Ella
ridea da l’altra riva dritta,
trattando
più color con le sue mani,
che
l’alta terra sanza seme gitta. (XXVIII,
67-69)
Ela
sorria, em pé, da outra margem,/ entretecendo com suas mãos diversas cores/ que
esta alta terra, sem semente, produz.
Note-se o uso metonímico
da palavra “cores” em vez de “flores” no v. 68 e a produção “sem semente” delas, que são mera
decorrência da vontade divina.
A seguir Dante
manifesta seu ódio por aquele rio que o separa da dama sorridente, comparando-o
ao ódio que sentiu Leandro (um jovem de Abidos, na Ásia Menor, apaixonado por
Hero, sacerdotisa de Afrodite, em Sestos, na Grécia) certamente no dia em que
pereceu no Helesponto, que ele cruzava habitualmente a nado para ver sua amada.
O Helesponto é o atual estreito de Dardanelos, que separa a Europa da Ásia. O
poeta também faz aí rápida menção a Xerxes. Esse rei persa, em guerra com os
gregos em 485 a.C., cruzou o estreito na ponte formada pelos seus barcos unidos
e voltou por ali humilhado, após sua derrota.
Por isso Dante diz que o Helesponto é “ainda freio a todo orgulho humano” (ancora freno a tutti
orgogli umani- v.72). (4)
Então a dama --
que só saberemos chamar-se Matilda pela única menção ao seu nome no v. 119 do último canto do
Purgatório e sobre quem não há consenso, entre os comentadores, sobre a figura
histórica a que se refere – então essa dama, repito, explica a Dante a razão de
seu sorriso, indicando-lhe o salmo “Delectasti”,
ou seja, o salmo 92, de onde se infere que ela se rejubila pelas obras divinas
(5). Antes ela define o lugar em que
está, o Paraíso Terrestre, assim: “neste
lugar escolhido/ para ser o ninho da natureza humana” (/.../
in questo luogo eletto/ a l’umana natura per suo nido- v. 77-78). E se dispõe a
responder às questões que Dante quiser lhe formular.
O vate florentino
está intrigado com o que vê ali, a água e o rumor das copas das árvores
resultante do vento que sopra, pois isso está em desacordo com o que Estácio
lhe havia dito antes (cf canto XXI, 43-54), de que no Purgatório não há
alterações atmosféricas (6).
A partir do v.
88, até o v. 144 (o Canto tem 148 versos), é Matilda quem fala. Ela explica a
Dante que de fato ali não há tais fenômenos como em nosso mundo. O sumo Bem colocou o Éden no topo da montanha do
Purgatório para que o ser humano ali vivesse livre de todas as perturbações,
inclusive dessas, atmosféricas. Esse terraço está mais próximo das esferas
celestes, a primeira das quais, a do Primo
Mobile (7), é responsável pelo movimento cósmico e assim pelo vento suave e
constante que ali sopra, sempre no sentido leste-oeste.
Quanto à agua que
Dante vê, ela não resulta dos vapores terrestres, que causam a chuva, como se
verá adiante.
Antes Matilda
assim se refere ao Paraíso Terrestre (é Dante que fala por sua boca, refletindo
a doutrina católica do pecado original):
Lo
sommo Ben, che solo esso a sé piace,
fé l’uom buono e a bene, e questo loco
diede per arr’ a lui d’etterna pace.
Per sua difalta qui dimorò poco;
per sua
difalta in pianto e in affanno
cambiò onesto riso e dolce gioco. (XXVIII, 91-96)
O sumo
Bem, que só em si mesmo se compraz,/ fez o homem bom e para o bem, e este
lugar/ lhe deu como garantia de eterna paz.
Por sua
falta, aqui demorou pouco;/ por sua falta, mudou em pranto e em canseira/ o
riso honesto e o doce jogo.
O sumo Bem
(Deus), sendo perfeito, só se satisfaz com a perfeição (v. 91). Ele fez o homem
à sua imagem e semelhança, dotando-o de livre-arbítrio. Mas este escolheu
desobedecê-lo... Por isso, foi expulso do Paraíso.
O ar movido
pela “primeira esfera” (la
prima volta- v.104) possui uma virtude generativa de modo que as plantas, atingidas
pelo vento, dissemina-as aí, e também na “outra
terra” (l’altra terra- v.112), quer dizer, na nossa (ou no hemisfério Norte, oposto ao Sul, desabitado,
em que se situa o monte do Purgatório):
Non parrebbe di là poi maraviglia,
udito questo, quando alcuna pianta
sanza seme palese vi s’appiglia.
E saper dei che la campagna santa
dove tu
se’, d’ogne semenza è piena,
e
frutto ha in sé che di là non si schianta.
(XXVIII, 115-120)
Não
deveria pois lá causar admiração,/ ouvido isto, quando alguma planta / ali
cresça sem semente manifesta.
E deves
saber que o santo campo/ em que estás tem todas as sementes,/ e há aqui frutos
que lá não se colhem.
Matilda
prossegue nessa caracterização do Paraíso Terrestre referindo-se em seguida à
água desse lugar que, diferentemente do que ocorre em nosso mundo, não se
origina da evaporação e depois da sua condensação,
ma esce di fontana salda e certa,
che
tanto dal voler di Dio riprende,
quant’ ella versa da due parti aperta. (XXVIII, 124-126)
mas
brota de uma fonte firme e certa/ que tanto recupera pela vontade de Deus/
quanto verte em duas direções.
Dessa fonte originam-se
os dois rios que banham o terraço. O Letes, presente nesta parte em que os três
poetas estão, que apaga a memória do pecado, e o Eunoe, “do outro lado” (da l’altro lato- v.130), que restaura a memória
de todo o bem feito:
Da questa parte con virtù discende
che toglie altrui memoria del peccato;
da
l’altra d’ogne ben fatto la rende. (XXVIII, 127-129)
Desta parte, desce com a virtude/ de apagar
a memória do pecado;/ da outra, restaura a de todo o bem feito
Enquanto o
Letes pertence à tradição mitológica, o Eunoe é invenção de Dante. Nada impuro
entra no Paraíso, nem mesmo a memória do pecado. Por isso, os versos 131-132
dizem que as duas águas devem ser provadas, não só a do Eunoe mas também a do
Letes.
Na conclusão do
Canto, Matilda acrescenta um “corolário” (v.136) ao que acabou de expor. Ela diz que os poetas antigos -- que cantaram “a idade
de ouro e seu estado feliz” (l’età de l’oro e suo stato
felice- v. 140)
-- talvez tenham colocado este lugar no Parnaso. Então, Dante se volta para os
“seus” poetas, Virgílio e Estácio, e os vê, sorridentes, pois haviam ouvido o
que dissera essa “bela dama” (bella
donna- vv. 43 e 148). Nessa ocasião, ela adiciona mais esta observação sobre o Paraíso
Terrestre, onde é “sempre primavera”:
Qui fu innocente l’umana radice;
qui primavera sempre e ogne frutto;
nettare
è questo di che ciascun dice. (XXVIII,
142-144)
Aqui foi
inocente a humana raiz;/ aqui é sempre primavera e há todo fruto;/ este é o
néctar de que todos falam.
Uma observação
final: o livro “Dante’s Divine Comedy- Purgatorio”, de Kathryn Lindskoog
(Mercer University Press, 1997), é antecedido por um interessante ensaio a
respeito do quadro “Primavera” de Botticelli, de caráter alegórico. Para além
da interpretação usual desse quadro, que o relaciona à mitologia clássica pagã,
a autora o interpreta também de acordo com o mito judaico-cristão do Jardim do
Éden, considerando-o como uma ilustração dos
cantos 28 a 31 do “Purgatório”.
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984-p. 388
(2)
SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p. 294-295.
(3) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.389.
(4)
CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 290.
(5)
Id., ib., p. 290.
(6) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.390.
(7) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri-
“La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini, 2013-
p. 659.
Salvador Dalí |
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