terça-feira, 19 de abril de 2016

Canto XXXII


PURGATÓRIO


Canto XXXII


            Dante fica totalmente absorto na contemplação de Beatriz, “a saciar a sede de um decênio” (a disbramarsi la decenne sete- v.2), pois esse é o lapso de tempo transcorrido desde sua morte. Seu “santo sorriso” (santo riso- v.5) puxava os olhos dele “com a antiga rede” (l’antica rete- v.6), imagem que remete à juventude do poeta enamorado por ela.  Mas ele desvia o olhar para a esquerda, ao ouvir o comentário que lhe faz uma das virtudes teologais (chamadas de “deusas”: dee- v. 8), repreendendo-o por olhar tanto Beatriz: “Olhas muito fixamente!” (“Troppo fiso!”- v.9). Sente o imenso contraste entre a visão dela – no seu papel de símbolo da Revelação dos mistérios (1) -- que o deixa como se ofuscado pelo Sol, e a pouca luz do momento posterior, em que fica “sem a vista por um tempo” (sanza la vista alquanto esser mi fée- v.12). Quando  enfim se adapta à nova situação, Dante vê “o glorioso exército” (lo glorïoso essercito- v.17), quer dizer, o cortejo alegórico, pôr-se em marcha, voltando-se para a direita, para o Sol e as “sete chamas” (sete fiamme- v.18), ou os sete candelabros, que vão na vanguarda do cortejo e representam os Sete Dons do Espírito Santo, como vimos.    

            A “milícia do celeste reino” (/.../ milizia del celeste regno- v.22), antes do restante, passa então diante deles, i.e. de Dante, Matilda e Estácio (os comentaristas notam o uso de linguagem militar nesses versos—“exército”, “milícia” etc – para indicar que eles se referirão à Igreja Militante, em sua evolução histórica) (2). As damas (as virtudes cardeais e teologais) retornam às suas posições sobre as rodas, no carro, que é movido pelo grifo, “sem agitar nenhuma de suas penas” (sì, che però nulla penna crollonne- v.27), pois, diferentemente da Igreja, a Divindade permanece inalterada, esta uma das interpretações possíveis desse verso (3). Os dois poetas e Matilda seguem a roda direita do carro. 

            Avançam então na mata --  deserta” (vòta- v.31) por “culpa daquela que creu na serpente” (colpa di quella ch’al serpente crese- v. 32) -- enquanto ouvem “um canto angélico” (angelica nota- v.33). Depois, Beatriz desce do carro e os outros rodeiam uma árvore despojada de folhagem, e murmuram “Adão”. Essas referências a Eva e Adão, que um dia habitaram o Paraíso Terrestre, servem para indicar que a árvore em questão é a do Conhecimento do Bem e do Mal, referida na Bíblia, aquela cujo fruto era proibido comer. Ela representa a justiça divina (4) ou a lei divina, que o casal desobedeceu, e motivou sua expulsão do Paraíso. Os que circundam tal árvore dizem para o grifo, aquela figura mitológica com cabeça e asas de ave e corpo de leão:

“Beato se’, grifon, che non discindi
col becco d’esto legno dolce al gusto,
poscia che mal si torce il ventre quindi”.    (XXXII,  43-45)

 Bendito sejas, grifo, que não colhes/ com o bico o doce gosto deste lenho,/ visto que depois o ventre se torce de dor

ao que este responde: “Assim se conserva a semente de toda justiça” (“Sì si conserva il seme d’ogne giusto”- v. 48), ou seja, a semente da justiça é preservada pela obediência à lei de Deus (5).  

            Em seguida, o grifo puxa o carro para junto da árvore, unindo-o a ela pelo seu timão, ou, como diz o verso, “e com seu ramo o deixou ligado a ela” (e quel di lei a lei lasciò legato- v.51) (segundo uma lenda antiga, a cruz de Cristo foi feita com madeira da árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Assim, seu timão, identificada com tal cruz, provinha dessa mesma árvore, é um “ramo” dela) (6). 

            A união do carro à arvore transforma esta de imediato. Ela adquire cor (“menos que a da rosa e mais que a da violeta”: men che di rose e più che di vïole- v. 58), a cor púrpura do  sangue de Cristo, ou da flor da macieira (7). Essa árvore, “que antes tinha os ramos tão despidos” (che prima avea le ramora sì sole- v. 60), se renova, “Como as nossas plantas” (Come le nostre piante /.../- v.52) na primavera (esta é indicada por Dante astrologicamente, pois se refere à constelação “que raia atrás dos celestes Peixes” (che raggia dietro a la celeste lasca- v.54), ou seja Áries, signo que compreende um período entre Março e Abril, início da primavera na Europa). À vista disso, aquela gente canta um hino. Mas Dante não consegue ouvi-lo por inteiro pois adormece.

            É acordado por estas palavras: “Levanta-te, que fazes?” (“Surgi: che fai?”- v.72). Ele se compara então aos apóstolos Pedro, João e Tiago, que, após presenciarem a transfiguração de Cristo no monte Tabor, e verem Moisés e Elias ao lado do Senhor, adormecem. Quando voltam a si estes dois profetas  do Velho Testamento não mais estão presentes. Dante refere-se à transfiguração de forma indireta. Ele diz que os apóstolos foram  conduzidos “a ver as flores da macieira” (/.../ a veder de’ fioretti del melo- v.73), quer dizer, o poeta usa a mesma metáfora da Bíblia, que associa a macieira a Cristo. Assim, ver as “flores da macieira” significará ver “Cristo em sua glória”, ou seja, transfigurado.  Por outro lado, como os apóstolos, Dante é acordado pela mesma palavra (“Levanta-te!”), aquela “pela qual foram interrompidos sonos maiores” (da la qual furon maggior sonni rotti- v.78), a saber, o dos mortos que Cristo ressuscitou  (Lázaro; o filho da viúva e a filha de Jairo, conforme os evangelhos de S.João, 11:43, e de S. Lucas, 7:14 e 8:54, respectivamente) (8).  

            Quem acorda Dante é “aquela dama pia” (quella pia- v. 82) que sabemos ser Matilda. Dante, inseguro, lhe pergunta por Beatriz. Ela lhe informa, e ele vê,  que ela está ali, debaixo da copa da árvore, sentada sobre a raiz (v.87), circundada pelas sete virtudes (referidas, no v. 98, como “sete ninfas”: sette ninfe), com os candelabros nas mãos, “que não podem ser apagados por Aquilão e Austro” (che son sicuri d’ Aquilone e d’ Austro- v.99), os ventos Norte e Sul. Mas os outros integrantes do cortejo (os anciãos, após o grifo) já deixaram o local, pois “subiram ao céu” (sen vanno suso- v. 89). Beatriz está sentada sobre a raiz da árvore (do Conhecimento do Bem e do Mal) à qual está atado o carro. Ela foi “ali deixada como guardiã do carro” (come guardia lasciata lì del plaustro- v.95, verso antecedido por outro, com forte aliteração: Sola sedeasi in su la terra mera- v.94: “Ela sentava-se só sobre a terra nua). Assim, a Sabedoria Divina (Beatriz) está associada à sua Lei (representada pela árvore), que a expressa, e à sua Igreja (o carro), zelada por ela.     

            Beatriz depois adverte Dante para prestar atenção ao que ocorrerá na sequência, incumbindo-o de registrar por escrito o que verá, em proveito do nosso mundo:

“Qui sarai tu poco tempo silvano;
e sarai meco sanza fine cive
di quella Roma onde Cristo è romano.

Però, in pro del mondo che mal vive,
al carro tiene or li occhi, e quel che vedi,
ritornato di là, fa che tu scrive.”      (XXXII, 100-105)

Aqui serás por pouco tempo silvano (= habitante da selva, da mata que constitui o Paraíso Terrestre)/ mas serás comigo, eternamente, cidadão/ daquela Roma onde Cristo é romano.
Por isso, em prol do mundo que mal vive,/ no carro mantém os olhos, e o que vês,/ após retornares de lá, escreve.”    

            Segue-se uma sucessão de sete quadros vivos -- ainda dentro da mesma alegoria geral explorada neste Canto, e nos anteriores -- que resumem a história e as vicissitudes da Igreja Católica desde os seus primórdios até os tempos de Dante. São os seguintes, em resumo, com a sua interpretação tradicional dada pelos comentaristas:            

1) um pássaro, o “pássaro de Jove” (l’uccel di Giove- v.112), cai sobre a árvore violentamente, “rompendo a casca/ assim como as flores e as folhas novas” (/.../ rompendo de la scorza,/ non che d’i fiori e de le foglie nove- v.113-114) e fere o carro (comparado a uma nau na tempestade) com  toda a sua força. O pássaro é interpretado como a águia de Roma, símbolo do Império, e sua investida, contrária à Lei divina, representa as perseguições contra os cristãos, no período de 64 a 314 da nossa era, desde Nero até Diocleciano (9);

2) uma raposa magra, de “ossos descarnados” (l’ossa sanza polpe- v. 123) (“que parecia jejuna de bom pasto”: che d’ogne pasto buon parea digiuna- v.120) lança-se para dentro do carro; mas Beatriz, que está vigilante, a põe em fuga, impedindo que o carro a acolha. A raposa representa as heresias sofridas pela Igreja primitiva. Ela entra ali em busca de “bom pasto” (da boa doutrina, para distorcê-la). Beatriz a escorraça, “repreendendo-a por hediondas culpas(/.../ riprendendo lei di laide colpe- v. 121);

3) a águia retorna, “pela via de onde viera anteriormente” (/.../ per indi ond’era pria venuta- v. 124), i.e., através da árvore (sem danificá-la agora, refletindo a boa intenção de Constantino), e deixa suas plumas no fundo do carro. Ouve-se então uma voz (“tal como saísse de coração amargurado”: e qual esce di cuor che si rammarca- v. 127), vinda do céu, que diz: “Ó barca minha, como estás mal carregada!” (“O navicella mia, com’ mal se’ carca!”- v. 129). A águia representa, como vimos, o Império Romano, e as plumas deixadas sobre o carro referem-se ao poder temporal sobre o Ocidente atribuído à Igreja pelo imperador Constantino no século IV, que para Dante é a origem dos seus males, afastando a Igreja de sua pureza primitiva. O lamento que se ouve é de S.Pedro, e sua barca é naturalmente a Igreja;

4) depois a terra se abre entre ambas as rodas do carro e dali emerge um  dragão que após cravar neste sua cauda venenosa, recolhe-a  (“como vespa que retira o ferrão”: e come vespa che ritragge l’ago- v.133) e se vai,  levando consigo parte do fundo do carro.  O dragão é representação tradicional de Satanás, e a passagem é interpretada como sendo relativa aos cismas sofridos pela Igreja, por exemplo o de Maomé, que desfalcou a Igreja de parte de seus fieis, o que é  ilustrado pela imagem do dragão levando parte do carro com ele;  

5) todo o restante do carro se recobriu, rapidamente, de plumas “como de grama/ a terra fértil(/.../ come da gramigna/ vivace terra /.../- v. 136-137), “ofertas talvez com intenção sã e benigna” (/.../ oferta/ forse con intenzion sana e benigna- v.137-138). A Igreja cresce em riqueza e poder, mediante outras doações, além da de Constantino, reforçando seu aspecto terreno em detrimento do lado espiritual; 

G.Doré- A prostituta e o gigante


6) em consequência disso, o carro vira um monstro, pois brotam cabeças de suas partes, “três no timão e uma em cada canto“ (tre sovra ‘l temo e una in ciascun canto-  v. 144): 

Le prime eran cornute come bue,
ma le quattro un sol corno avean per fronte:
simile mostro visto ancor non fue.    (XXXII, 145-147)

As primeiras eram cornudas como bois,/ mas as quatro outras só tinham um corno na fronte:/ monstro semelhante nunca foi visto  

As sete cabeças representam os sete pecados capitais; as cabeças de dois cornos, como as dos bois, representam os pecados considerados mais graves, a saber o orgulho, a inveja e a ira, pois além de ofender a Deus, ofendem também o próximo. Os outros quatro prejudicam só o próprio pecador: luxúria,  gula,  preguiça e avareza. O monstro de sete cabeças e dez chifres é inspirado naquele que emerge do mar, referido no livro do Apocalipse (13:1) (10).  

 7) finalmente, Dante vê, sentada sobre o carro, “uma prostituta descomposta” (una puttana sciolta- v.149), também inspirada no Apocalipse (17:1-3) (11), tendo ao seu lado um gigante; e os dois se beijavam com frequência.  Mas como a mulher dirigiu ao poeta seu “olhar cobiçoso e vagante” (/.../ l’occhio cupido e vagante- v.154), esse seu “feroz amante” (feroce drudo- v. 155)  a flagelou da cabeça aos pés” (la flagellò dal capo infin le piante- v. 156).  
Segundo os comentaristas, a prostituta representa a Igreja corrompida da época de Dante e o gigante, o aliado político do Papado, a saber o monarca da França, “o poder hegemônico na Europa no final do século XIII e começo do século XIV”, segundo Mandelbaum. Se a Igreja tenta afastar-se desse aliado e voltar-se para seus fieis ou o povo italiano, é castigada pelo amante francês. Isso seria uma ilustração de fatos ocorridos historicamente, especialmente a derrota do Papa na batalha de Anagni, quando foi humilhado pelo rei de França, Filipe, o Belo  (12).    

Na sequência, o gigante, irado, desatou o monstro (o carro da Igreja) da árvore, e o levou para dentro da floresta, de modo que esta impediu Dante de ver mais.  Esses versos são interpretados como relativos à “profecia” do poeta quanto à transferência da sede do papado, de Roma para Avignon, feita pelo rei francês, ocorrida em 1309.   



NOTAS


(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 348.

(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.400. 

(3) Id., ib., p. 400.

(4) Id., ib, p. 401

(5) Id., ib., p. 401.

(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”, op cit,, p. 350.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 401.

(8) Id., ib., p. 402

(9) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.329.

(10) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 403.

(11) Id., ib, p. 403

(12) Id., ib., p. 403 e 367.

Amos Nattini

A.Vellutello- Alegoria do carro

Salvador Dalí 

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