PURGATÓRIO
Canto XXXII
Dante fica
totalmente absorto na contemplação de Beatriz, “a saciar a sede de um decênio” (a disbramarsi la decenne sete- v.2), pois esse é o lapso
de tempo transcorrido desde sua morte. Seu “santo
sorriso” (santo riso- v.5) puxava os olhos dele “com
a antiga rede” (l’antica rete- v.6), imagem que remete à juventude do poeta enamorado por ela. Mas ele desvia o olhar para a esquerda, ao
ouvir o comentário que lhe faz uma das virtudes teologais (chamadas de “deusas”: dee- v. 8), repreendendo-o por
olhar tanto Beatriz: “Olhas muito
fixamente!” (“Troppo fiso!”- v.9). Sente o imenso contraste entre a visão dela – no seu papel de
símbolo da Revelação dos mistérios (1) -- que o deixa como se ofuscado pelo
Sol, e a pouca luz do momento posterior, em que fica “sem a vista por um tempo” (sanza la vista alquanto esser
mi fée- v.12).
Quando enfim se adapta à nova situação,
Dante vê “o glorioso exército” (lo
glorïoso essercito- v.17), quer dizer, o cortejo alegórico, pôr-se em marcha, voltando-se
para a direita, para o Sol e as “sete chamas” (sete fiamme- v.18), ou os sete
candelabros, que vão na vanguarda do cortejo e representam os Sete Dons do
Espírito Santo, como vimos.
A “milícia do celeste reino” (/.../
milizia del celeste regno- v.22), antes do restante, passa então diante deles, i.e. de Dante,
Matilda e Estácio (os comentaristas notam o uso de linguagem militar nesses
versos—“exército”, “milícia” etc – para indicar que eles se referirão à Igreja
Militante, em sua evolução histórica) (2). As damas (as virtudes cardeais e teologais)
retornam às suas posições sobre as rodas, no carro, que é movido pelo grifo, “sem agitar nenhuma de suas penas” (sì, che
però nulla penna crollonne- v.27), pois, diferentemente da Igreja, a Divindade permanece
inalterada, esta uma das interpretações possíveis desse verso (3). Os dois
poetas e Matilda seguem a roda direita do carro.
Avançam então
na mata -- “deserta” (vòta- v.31) por “culpa daquela que
creu na serpente” (colpa di quella ch’al serpente crese- v. 32) -- enquanto ouvem “um canto angélico” (angelica
nota- v.33).
Depois, Beatriz desce do carro e os outros rodeiam uma árvore despojada de
folhagem, e murmuram “Adão”. Essas
referências a Eva e Adão, que um dia habitaram o Paraíso Terrestre, servem para
indicar que a árvore em questão é a do Conhecimento do Bem e do Mal, referida
na Bíblia, aquela cujo fruto era proibido comer. Ela representa a justiça
divina (4) ou a lei divina, que o casal desobedeceu, e motivou sua expulsão do
Paraíso. Os que circundam tal árvore dizem para o grifo, aquela figura
mitológica com cabeça e asas de ave e corpo de leão:
“Beato
se’, grifon, che non discindi
col
becco d’esto legno dolce al gusto,
poscia che mal si torce il ventre
quindi”. (XXXII, 43-45)
“Bendito sejas, grifo, que não colhes/ com o bico o doce gosto deste
lenho,/ visto que depois o ventre se torce de dor”
ao que este responde: “Assim
se conserva a semente de toda justiça” (“Sì si conserva il seme
d’ogne giusto”- v. 48), ou seja, a semente da justiça é preservada pela obediência à
lei de Deus (5).
Em seguida, o grifo
puxa o carro para junto da árvore, unindo-o a ela pelo seu timão, ou, como diz
o verso, “e com seu ramo o deixou ligado
a ela” (e quel di lei a lei lasciò legato- v.51) (segundo uma lenda
antiga, a cruz de Cristo foi feita com madeira da árvore do Conhecimento do Bem
e do Mal. Assim, seu timão, identificada com tal cruz, provinha dessa mesma
árvore, é um “ramo” dela) (6).
A união do
carro à arvore transforma esta de imediato. Ela adquire cor (“menos que a da rosa e mais que a da violeta”:
men che di rose e più che di vïole- v. 58), a cor púrpura do sangue de Cristo, ou da flor da macieira (7).
Essa árvore, “que antes tinha os ramos
tão despidos” (che prima avea le ramora sì sole- v. 60), se renova, “Como as nossas plantas” (Come le
nostre piante /.../- v.52) na primavera (esta é indicada por Dante astrologicamente, pois
se refere à constelação “que raia atrás
dos celestes Peixes” (che raggia dietro a la celeste lasca- v.54), ou seja Áries, signo
que compreende um período entre Março e Abril, início da primavera na Europa). À
vista disso, aquela gente canta um hino. Mas Dante não consegue ouvi-lo por
inteiro pois adormece.
É acordado por
estas palavras: “Levanta-te, que fazes?”
(“Surgi: che fai?”- v.72). Ele se compara então aos apóstolos Pedro, João e Tiago, que, após
presenciarem a transfiguração de Cristo no monte Tabor, e verem Moisés e Elias
ao lado do Senhor, adormecem. Quando voltam a si estes dois profetas do Velho Testamento não mais estão presentes.
Dante refere-se à transfiguração de forma indireta. Ele diz que os apóstolos foram conduzidos “a ver as flores da macieira” (/.../ a veder de’ fioretti del
melo- v.73),
quer dizer, o poeta usa a mesma metáfora da Bíblia, que associa a macieira a
Cristo. Assim, ver as “flores da macieira” significará ver “Cristo em sua
glória”, ou seja, transfigurado. Por
outro lado, como os apóstolos, Dante é acordado pela mesma palavra (“Levanta-te!”),
aquela “pela qual foram interrompidos
sonos maiores” (da la qual furon maggior sonni rotti- v.78), a saber, o dos mortos
que Cristo ressuscitou (Lázaro; o filho
da viúva e a filha de Jairo, conforme os evangelhos de S.João, 11:43, e de S.
Lucas, 7:14 e 8:54, respectivamente) (8).
Quem acorda
Dante é “aquela dama pia” (quella
pia- v. 82)
que sabemos ser Matilda. Dante, inseguro, lhe pergunta por Beatriz. Ela lhe
informa, e ele vê, que ela está ali,
debaixo da copa da árvore, sentada sobre a raiz (v.87), circundada pelas sete virtudes
(referidas, no v. 98, como “sete ninfas”:
sette ninfe), com os candelabros nas mãos, “que não podem ser apagados por Aquilão e Austro” (che son
sicuri d’ Aquilone e d’ Austro- v.99), os ventos Norte e Sul. Mas os outros integrantes do cortejo (os
anciãos, após o grifo) já deixaram o local, pois “subiram ao céu” (sen vanno suso- v. 89). Beatriz está sentada
sobre a raiz da árvore (do Conhecimento do Bem e do Mal) à qual está atado o
carro. Ela foi “ali deixada como guardiã
do carro” (come guardia lasciata lì del plaustro- v.95, verso antecedido
por outro, com forte aliteração: Sola sedeasi in su la terra mera- v.94: “Ela sentava-se só sobre a terra nua“). Assim, a Sabedoria
Divina (Beatriz) está associada à sua Lei (representada pela árvore), que a
expressa, e à sua Igreja (o carro), zelada por ela.
Beatriz depois adverte
Dante para prestar atenção ao que ocorrerá na sequência, incumbindo-o de
registrar por escrito o que verá, em proveito do nosso mundo:
“Qui sarai tu poco tempo silvano;
e sarai meco sanza fine cive
di
quella Roma onde Cristo è romano.
Però,
in pro del mondo che mal vive,
al
carro tiene or li occhi, e quel che vedi,
ritornato di là, fa che tu scrive.” (XXXII, 100-105)
“Aqui
serás por pouco tempo silvano (= habitante da selva, da mata que constitui o
Paraíso Terrestre)/ mas serás comigo, eternamente,
cidadão/ daquela Roma onde Cristo é romano.
Por
isso, em prol do mundo que mal vive,/ no carro mantém os olhos, e o que vês,/
após retornares de lá, escreve.”
Segue-se uma
sucessão de sete quadros vivos -- ainda dentro da mesma alegoria geral explorada
neste Canto, e nos anteriores -- que resumem a história e as vicissitudes da
Igreja Católica desde os seus primórdios até os tempos de Dante. São os
seguintes, em resumo, com a sua interpretação tradicional dada pelos
comentaristas:
1) um pássaro, o “pássaro
de Jove” (l’uccel di Giove- v.112), cai sobre a árvore violentamente, “rompendo a casca/ assim como as flores e as folhas novas” (/.../
rompendo de la scorza,/ non che d’i fiori e de le foglie nove- v.113-114) e fere o carro (comparado
a uma nau na tempestade) com toda a sua
força. O pássaro é interpretado como a águia de Roma, símbolo do Império, e sua
investida, contrária à Lei divina, representa as perseguições contra os cristãos,
no período de 64 a 314 da nossa era, desde Nero até Diocleciano (9);
2) uma raposa magra, de “ossos
descarnados” (l’ossa sanza polpe- v. 123) (“que parecia jejuna de
bom pasto”: che d’ogne pasto buon parea digiuna- v.120) lança-se para dentro do carro; mas Beatriz, que está
vigilante, a põe em fuga, impedindo que o carro a acolha. A raposa representa
as heresias sofridas pela Igreja primitiva. Ela entra ali em busca de “bom
pasto” (da boa doutrina, para distorcê-la). Beatriz a escorraça, “repreendendo-a por hediondas culpas” (/.../
riprendendo lei di laide colpe- v. 121);
3) a águia retorna, “pela via
de onde viera anteriormente” (/.../ per indi ond’era pria
venuta- v. 124),
i.e., através da árvore (sem danificá-la agora, refletindo a boa intenção de
Constantino), e deixa suas plumas no fundo do carro. Ouve-se então uma voz (“tal como saísse de coração amargurado”: e qual
esce di cuor che si rammarca- v. 127), vinda do céu, que diz: “Ó
barca minha, como estás mal carregada!” (“O navicella mia, com’
mal se’ carca!”- v. 129). A águia representa, como vimos, o Império Romano, e as plumas
deixadas sobre o carro referem-se ao poder temporal sobre o Ocidente atribuído
à Igreja pelo imperador Constantino no século IV, que para Dante é a origem dos
seus males, afastando a Igreja de sua pureza primitiva. O lamento que se ouve é
de S.Pedro, e sua barca é naturalmente a Igreja;
4) depois a terra se abre entre ambas as rodas do carro e dali
emerge um dragão que após cravar neste sua
cauda venenosa, recolhe-a (“como vespa que retira o ferrão”: e come
vespa che ritragge l’ago- v.133) e se vai, levando
consigo parte do fundo do carro. O
dragão é representação tradicional de Satanás, e a passagem é interpretada como
sendo relativa aos cismas sofridos pela Igreja, por exemplo o de Maomé, que
desfalcou a Igreja de parte de seus fieis, o que é ilustrado pela imagem do dragão levando parte
do carro com ele;
5) todo o restante do carro se recobriu, rapidamente, de plumas
“como de grama/ a terra fértil” (/.../
come da gramigna/ vivace terra /.../- v. 136-137), “ofertas
talvez com intenção sã e benigna” (/.../ oferta/ forse
con intenzion sana e benigna- v.137-138). A Igreja cresce em riqueza e poder, mediante outras doações,
além da de Constantino, reforçando seu aspecto terreno em detrimento do lado
espiritual;
G.Doré- A prostituta e o gigante |
6) em consequência disso, o carro vira um monstro, pois brotam
cabeças de suas partes, “três no timão e
uma em cada canto“ (tre sovra ‘l temo e una in ciascun canto- v. 144):
Le
prime eran cornute come bue,
ma le
quattro un sol corno avean per fronte:
simile
mostro visto ancor non fue. (XXXII, 145-147)
As
primeiras eram cornudas como bois,/ mas as quatro outras só tinham um corno na
fronte:/ monstro semelhante nunca foi visto.
As sete cabeças representam os sete pecados capitais; as cabeças
de dois cornos, como as dos bois, representam os pecados considerados mais
graves, a saber o orgulho, a inveja e a ira, pois além de ofender a Deus,
ofendem também o próximo. Os outros quatro prejudicam só o próprio pecador: luxúria, gula,
preguiça e avareza. O monstro de sete cabeças e dez chifres é inspirado
naquele que emerge do mar, referido no livro do Apocalipse (13:1) (10).
7) finalmente, Dante vê, sentada sobre o carro, “uma prostituta descomposta” (una
puttana sciolta- v.149), também inspirada no Apocalipse (17:1-3) (11), tendo ao seu
lado um gigante; e os dois se beijavam com frequência. Mas como a mulher dirigiu ao poeta seu “olhar cobiçoso e vagante” (/.../
l’occhio cupido e vagante- v.154), esse seu “feroz amante”
(feroce drudo- v. 155) “a flagelou da cabeça aos pés” (la flagellò dal capo infin le piante-
v. 156).
Segundo os comentaristas, a prostituta representa a Igreja
corrompida da época de Dante e o gigante, o aliado político do Papado, a saber o
monarca da França, “o poder hegemônico na Europa no final do século XIII e
começo do século XIV”, segundo Mandelbaum. Se a Igreja tenta afastar-se desse
aliado e voltar-se para seus fieis ou o povo italiano, é castigada pelo amante
francês. Isso seria uma ilustração de fatos ocorridos historicamente, especialmente
a derrota do Papa na batalha de Anagni, quando foi humilhado pelo rei de
França, Filipe, o Belo (12).
Na sequência, o gigante, irado, desatou o monstro (o carro da
Igreja) da árvore, e o levou para dentro da floresta, de modo que esta impediu
Dante de ver mais. Esses versos são
interpretados como relativos à “profecia” do poeta quanto à transferência da
sede do papado, de Roma para Avignon, feita pelo rei francês, ocorrida em 1309.
NOTAS
(1) MUSA, Mark--
“Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an
Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 348.
(2) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-
p.400.
(3) Id.,
ib., p. 400.
(4) Id.,
ib, p. 401
(5) Id.,
ib., p. 401.
(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”, op cit,,
p. 350.
(7) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 401.
(8) Id.,
ib., p. 402
(9) SAYERS,
Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p.329.
(10) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 403.
(11)
Id., ib, p. 403
(12) Id.,
ib., p. 403 e 367.
Amos Nattini |
A.Vellutello- Alegoria do carro |
Salvador Dalí |
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