quinta-feira, 31 de março de 2016

Canto XXVI


PURGATÓRIO


Canto XXVI


            Os três poetas seguem em frente, um atrás do outro, andando numa estreita faixa do terraço, entre o fogo que purifica os luxuriosos e o precipício. Virgílio lembra frequentemente a Dante para tomar cuidado. Os raios do sol, que atingiam Dante no ombro direito, já clareavam o ocidente, que “mudava de azul celeste para o branco” (mutava in bianco aspetto di cilestro- v.6), mostrando que a tarde avançava. Mas a sombra do corpo de Dante “fazia parecer/ mais candente a chama” (e io facea con l’ombra più rovente/ parer la fiamma;/.../  v.7-8) em que estavam os penitentes, o que atrai a atenção de um grupo deles, que caminhava no fogo paralelamente aos três poetas. Esses penitentes diziam entre si: “Aquele não parece um corpo fictício” (/.../ “Colui non par corpo fittizio”- v. 12). E se aproximavam de Dante, cuidando entretanto para não sair fora do fogo de sua purgação desejada. 

            Um deles (que só no v. 92 se identificará) faz então a pergunta que reflete a curiosidade também dos outros, após reparar que Dante é o que segue atrás dos dois poetas latinos (Estácio e Virgílio), certamente em reverência a eles:  

Dinne com’è che fai di te parete
al sol, pur come tu non fossi ancora
di morte intrato dentro da la rete.   (XXVI, 22-24)

Diz-nos como é que fazes de ti parede/ ao sol, como se tu não fosses ainda/ apanhado pela rede da morte.  

            A rede aqui, como se vê, é metáfora da morte, que captura todos os seres humanos em suas malhas, quando chega a hora fatal...

             Quando Dante vai responder essa questão, é surpreendido por um outro bando, que vem pelo mesmo “caminho aceso” (cammino acceso- v. 28) em sentido contrário ao do primeiro. E os integrantes dos dois grupos, sem se deter, cumprimentam-se, beijando-se mutuamente,

così per entro loro schiera bruna
s’ammusa l’una con l’altra formica,
forse a spïar lor via e lor fortuna.    (XXVI,  34-36)

do mesmo modo, em sua fileira escura,/ cada formiga toca o focinho da outra,/ talvez para indagar sobre a via ou a fortuna.

            Dante assim expressa, surpreendendo-nos com essa comparação curiosa, o encontro rápido dos dois bandos. Mas “logo que cessa a acolhida amiga” (Tosto che parton l’accoglienza amica- v. 37), cada sombra do grupo recém-chegado grita bem alto: “Sodoma e Gomorra” (“Soddoma e Gomorra”- v.40) enquanto as sombras do outro grupo gritam “Na vaca entra Pasífae/ para que o tourinho à sua luxúria corra” (/.../ “Ne la vacca entra Pasife,/ perché ‘l torello a sua lussuria corra.”- v. 41-42).  Como estamos no terraço dos luxuriosos, os do primeiro grupo -- que lembram as duas cidades bíblicas destruídas por Deus pelos seus costumes sexuais pervertidos envolvendo o mesmo sexo -- são associados aos sodomitas, enquanto os do outro grupo o são a práticas sexuais entre sexos diferentes, porém exageradas, o que os reduz à condição animal, como mostra a sua menção a Pasífae. Essa personagem da mitologia clássica era esposa de Minos, rei de Creta, e  segundo a lenda  entrou numa vaca artificial para ser montada por um tourinho de quem gostava. Dessa relação nasceria o Minotauro, metade touro e metade homem (1).

            Na sequência, os dois grupos se separam. Dante os compara aos grous, que em parte vão para o Norte (para as míticas montanhas Rife) fugindo do calor, e em parte vão para o Sul (para os areais africanos), fugindo do frio.

            Assim, “uma gente vai e outra vem” (l’una gente sen va, l’altra sen vene- v. 46), retornando, em lágrimas, “aos primeiros cantos” (a’ primi canti- v.47) (i.e. ao  Summae Deus clementïae”, como vimos no canto XXV) e aos gritos apropriados à sua condição. Aproximam-se então de Dante aqueles mesmos espíritos que haviam lhe formulado uma pergunta e estavam “atentos a escutar em seus semblantes” (attenti ad ascoltar ne’ lor sembianti- v. 51).

            Dante então responde a essas almas, que deverão ainda alcançar “o estado de paz” (di pace stato- v.54), dizendo que de fato ele está lá com seu próprio corpo:

non son rimase acerbe né mature
le membra mie di là, ma son qui meco
col sangue suo e con le sue giunture.    (XXVI, 55-57)

não ficou no mundo de lá, nem jovem nem maduro,/ o corpo meu, mas está aqui comigo/ com seu sangue e suas juntas.

            Ele avança em sua jornada “para não ser mais cego” (/.../ per non esser più cieco- v.58) por graça de uma dama do céu (Beatriz?, a Virgem Maria?). Conclui sua fala fazendo por sua vez uma pergunta:

ditemi, acciò ch’ancor carte ne verghi,
chi siete voi, e chi è quella turba
che se ne va di retro a’ vostri terghi.   (XXVI, 64-66)

dizei-me, a fim de que eu ainda o escreva,/ quem sois vós, e quem é aquela turba/ que vai em direção oposta à vossa.

            Aqui Dante faz esta outra comparação: as sombras ficam tão admiradas com o que ele lhes diz

Non altrimenti stupido si turba
lo montanaro, e rimirando ammuta,
quando rozzo e salvatico s’inurba,    (XXVI, 67-69)

Como espantado fica/ o montanhês, olhando emudecido,/ quando, rústico e selvagem, vem para a cidade,

            Então, prossegue Dante, “recomeçou aquele que antes me interrogara” (ricominciò colei che pria m’inchiese- v. 74), o qual identifica o grupo que vai em direção oposta a eles (aquele que gritou “Sodoma”) como homossexuais, pois essa gente “incorreu no pecado pelo qual já César, em triunfo,/ ouviu chamarem ‘Rainha’ contra si” (/.../ offese/ di ciò per che già Cesar, triunfando,/ ‘Regina’ contra sé chiamar s’intese- v.76-78). Segundo os comentadores, Suetônio afirma que César teve relações com Nicomedes, rei da Bitínia conquistada, razão por que na comemoração de uma vitória, seus subordinados em festa, zombeteiramente, chamaram-no de Rainha da Bitínia. E cantaram versos satíricos, dizendo que assim como César subjugou a Gália, assim Nicomedes subjugou César (2).  O espírito vai identificar também o seu próprio grupo como de heterossexuais, mas que não observaram a lei humana, “seguindo como bestas o apetite” (seguendo come bestie l’appetito- v. 84). Por isso, gritam o nome de Pasífae. Ambos os grupos, ao darem esses gritos com referências simbólicas ao seu pecado, censuram a si mesmos e se envergonham dele, “e com vergonha aumentam o ardor” (e aiutan l’arsura vergognando- v. 81) de sua purificação pelo fogo.  
Amos Nattini

             O espírito diz a Dante que não tem condições de dar os nomes dos outros que estão ali. Mas pelo menos identifica-se a si mesmo:

Farotti ben di me volere scemo:
son Guido Guinizzelli, e già mi purgo
per ben dolermi prima ch’a lo stremo.     (XXVI,  91-93)

Satisfarei teu desejo pelo menos quanto a mim:/ sou Guido Guinizzelli, e já me purgo/ porque me  arrependi antes da hora extrema.

            Ao ouvir isso, Dante faz outra comparação, em versos que mencionam Licurgo e dois filhos que reveem a mãe. Pelos comentadores ficamos sabendo que, segundo a “Tebaida” de Estácio, o rei Licurgo confiou um filho seu à escrava Hipsípile, que o deixou só por um breve período para indicar aos sete heróis de Tebas a localização de uma fonte. Ao retornar, a criança estava morta, picada por uma serpente. Hipsípile foi condenada à morte por causa disso, mas no momento da sua execução, seus dois filhos correram para abraçá-la e sua vida acabou sendo poupada.(3) Dante se compara aos filhos de Hipsípile na predisposição em correr para abraçar Guido Guinizzelli, poeta que admira, “pai/ meu e de outros melhores que eu/ que já usaram doces  e graciosas rimas de amor” (/.../ padre/ mio e de li altri miei miglior che mai/ rime d’amor usar dolci e leggiadre- v. 97-99). Mas ele não chega a efetivamente abraçar Guido, poeta de Bolonha falecido talvez em 1276, criador do “dolce stil nuovo” em língua materna no qual se destacou Dante, Guido Cavalcanti e alguns outros poetas (4). Dante contenta-se apenas em, andando, contemplá-lo à distância, “sem me aproximar mais, por causa do fogo” (né, per lo foco, in là più m’ appressai- v. 102). Só demonstra como se sente por essa contemplação prolongada, “sem ouvir nem falar, pensativo” (e sanza udire e dir pensoso andai- v. 100).  Mas logo adiante, respondendo a Guido, Dante diz ao poeta que a razão de sua admiração é

/.../ “Li dolci detti vostri,
che, quanto durerà l’uso moderno,
faranno cari ancora i loro incostri.”    (XXVI, 112-114)

/.../ “Os doces ditos vossos,/ que, enquanto durar o uso moderno,/ farão ainda cara a sua tinta

            Assim, seus versos serão caros enquanto se escrever na língua vulgar. “Sua tinta” aqui está por “seus escritos”,  uma metonímia...   

            A isso, Guido Guinizzelli aponta com o dedo um espírito mais adiante, afirmando que ele “foi melhor artífice do falar moderno” (fu miglior fabbro del parlar materno- v. 117). Trata-se, como se verá logo a seguir, do poeta provençal Arnaut Daniel. Guido ainda faz esta crítica a terceiros: “deixa que os estultos digam/ que o de Limoges lhe é superior” (/.../ e lascia dir li stolti/ che quel di Lemosì credon ch’ avanzi- v. 119-120), pois eles “Olham mais a fama do que a verdade” (A voce più ch’al ver drizzan li volti- v. 121). “Assim fizeram muitos antigos com Guittone” (Così fer molti antichi di Guittone- v. 124). O de Limoges, segundo os comentadores, é o poeta provençal Giraut de Bornelh, falecido em ca. 1220, de estilo simples e popular; e o outro poeta citado é Guido d’Arezzo, chamado Guittone, nascido em ca.1250, um erudito mas de poesia artificial e desgraciosa (5). 

            Guido Guinizzelli encerra sua fala fazendo este pedido a Dante, após usar a metáfora do claustro para o Paraíso:

Or se tu hai sì ampio privilegio,
che licito ti sai l’andare al chiostro
nel quale è Cristo abate del collegio,

falli per me un dir d’un paternostro,
quanto bisogna a noi di questo mondo,
dove poter peccar non è più nostro.       (XXVI, 127-132)

Se tens agora tão amplo privilégio/ de poder ir até o claustro/ no qual é Cristo abade do colégio,
recita por mim, a Ele, um “pater nostro”,/ na parte que é necessária a nós neste mundo,/ onde o poder de pecar não é mais nosso.

            Depois disso, Guido Guinizzelli “desapareceu dentro do fogo/ como na água o peixe vai ao fundo” (/.../ disparve per lo foco,/ comme per l’acqua il pesce andando al fondo- v. 134-135), outra comparação.

Arnaut Daniel (min. séc. XIII)

            Em seguida, Dante se aproxima do espírito que antes fora indicado por Guido, dizendo-lhe que ao seu nome o seu desejo “preparava uma acolhida cortês” (apparecchiava grazïoso loco- v. 138), ou seja, pede para que ele decline seu nome. E esse espírito, nos próximos oito versos (v. 140-147), manifesta-se em sua própria língua, o provençal. Afirma então que atenderá com prazer sua demanda. Ele é Arnaut, que lamenta a loucura passada e espera, contente, a alegria futura. Conclui pedindo a Dante, que se dirige ao alto da escada, para lembrar-se dele no momento oportuno. 

            E Arnaut Daniel sai de cena. Dante assim expressa isso, no último verso do canto: “Depois, escondeu-se no fogo que os purifica” (Poi s’ascose nel foco che li affina-  v.148).  



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-p. 384

(2) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.270. Cf. também SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 277.

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.385

(4) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op. cit., p. 278.

(5) Id. ib, p. 279.

Salvador Dalí 



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