PURGATÓRIO
Canto XXII
Um anjo, após encaminhar os dois poetas para o próximo terraço,
o sexto (dos gulosos), apaga mais um “P” da testa de Dante, o do pecado da
avareza, de cujo terraço eles estão saindo agora (v.3). O anjo também declama mais uma
bem-aventurança (“Bem aventurados os que têm sede e fome de justiça”) mas
interrompe-se em “sitiunt”, “os que têm
sede”, da citação em latim do Evangelho, conforme o v.6. A segunda parte da bem-aventurança, relativa
aos “que têm fome”, será citada mais adiante (final do capítulo XXIV) quando o
poema tratar dos que purgam o pecado da gula. (1)
Virgílio em
seguida dirige-se a Estácio, iniciando por
/.../ “Amore,
acceso di virtù, sempre altro accese,
pur che la fiamma sua paresse fore; (XXII, 10-12)
/.../ “O amor/
aceso pela virtude, sempre outro acende/ contanto que sua chama se manifeste;
Isso ocorreu
com Virgílio ao saber no Limbo -- por Juvenal, o poeta satírico latino -- da afeição
de Estácio por ele, o que naturalmente tornou
o autor da “Eneida” benevolente com relação a Estácio. Depois Virgílio lhe
pergunta “como pôde encontrar espaço no
teu seio/ a avareza” (come poté trovar dentro al tuo seno/ loco
avarizia /.../- v. 22-23), ele que é tão cheio de sabedoria. Estácio percebe então que o
poeta se equivoca sobre o motivo dele ter estado ali no quinto terraço. Mas
ocorre que nesse lugar também expiam os que pecaram pela prodigalidade, o
oposto da avareza (“pelo contrário dela ali
me achava”: per lo contrario suo m’è incontrato- v. 54). Aliás, Estácio diz
que foi o próprio Virgílio quem o alertou para tal “desmedida” (dismisura-
v. 35) com
relação ao uso do dinheiro, quando escreveu (na tradução de Dante dos versos,
em latim, da “Eneida”): “Por que não
regulas tu, ó sacra fome/ de ouro, o apetite dos mortais?” (“Perché
non reggi tu, o sacra fame/ de l’oro, l’appetito de’ mortali?”- v. 40-41). Se não tivesse se
arrependido a tempo, “estaria agora
rolando pedras em tristes justas” (voltando sentirei le giostre
grame- v. 42),
o castigo no Inferno imposto aos pródigos (e também avarentos).
Allor m’accorsi che troppo aprir l’ali
potean le mani a spendere, e pente ‘mi
così di quel come de li altri mali. (XXII, 43-45)
Então
me dei conta que abrir as asas demais/ as mãos podiam ao gastar, e me
arrependi/ assim deste, como de outros pecados.
Na continuação
do diálogo, Virgílio quer saber de Estácio quando foi que se converteu ao
Cristianismo. Nota que quando cantou “a
guerra cruel/ da dupla tristeza de Jocasta” (/.../ le crude armi/ de
la doppia trestizia di Giocasta- 55-56), (i.e. quando compôs o
seu poema “Tebaida”, que trata da guerra, em Tebas, entre os dois filhos, que
se matam, de Jocasta e Édipo), “não
parece que fosse fiel/ à fé, sem a qual não bastam boas obras” (non par
che ti facesse ancor fedele/ la fede, sanza qual ben far non basta- v. 59-60).
Se cosi è, qual sole quai candele
ti stenebraron sì, che tu drizzasti
poscia di retro al pescator le vele? (XXII, 61-63)
Se é
assim, que sol que círios/ te iluminaram, a ponto de dirigir/ as velas atrás do
pescador?
Nesse terceto
alegórico, “Sol” substitui “graça divina” e “círios”, “ensinamentos humanos” (2).
Eles iluminaram “o barco de” Estácio, cujas velas se orientaram para seguir o “pescador”,
quer dizer, S.Pedro, o chefe da igreja de Cristo.
Na sequência,
Estácio refere-se ao fato de que Virgílio o introduziu nos domínios da poesia,
ou das Musas -- que residiam no monte Parnaso -- e contribuiu para a sua
conversão ao Cristianismo, apesar dele ter vivido no tempo do paganismo. É que
nas “Bucólicas” constam uns versos (transcritos nos v. 70-72, que Dante traduz
do latim) que os antigos interpretavam como sendo uma predição da vinda de
Cristo... Diz Estácio:
/.../ “Tu prima m’invïasti
verso Parnaso a ber ne le sue grotte,
e prima appresso Dio m’alluminasti.
Facesti come quei che va di notte,
che porta il lume dietro e sé non giova,
ma dopo sé fa le persone dotte (XXII, 64-69)
/.../ “Foste
o primeiro a me enviar/ ao Parnaso para beber em suas grutas,/ e o primeiro a
me iluminar para Deus.
Fizeste
como aquele que caminha à noite,/ que leva a luz atrás e a si não serve,/ mas sim
às pessoas que o seguem
Note-se a
comparação, essencialmente visual, dos v. 67-69. Mais adiante, no v. 73, Estácio
assim sumariza a influência de Virgílio: “Por
ti poeta fui, por ti cristão” (Per te poeta fui, per te
cristiano).
Estácio passa,
segundo afirma, a frequentar os “novos
pregadores” (nuovi predicanti- v. 80) e adota sua seita, chorando junto aos cristãos a perseguição contra
eles movida por Domiciano (v. 83), o imperador romano sucessor de Tito, ambos
filhos de Vespasiano (3). “Mas por medo” ele foi “um cristão secreto” (ma per
paura chiuso cristian fu’mi- v. 90), que não assumiu a sua fé abertamente, e aparentou permanecer
no paganismo. Por isso, pela sua “tepidez”
(tepidezza- v.92), teve que permanecer no quarto terraço (o dos indolentes ou acidiosos)
mais de quatro séculos (que vão se acrescentar aos cinco que passou no terraço
dos avarentos/pródigos). Estácio agora quer aproveitar o tempo em que eles
avançam em sua escalada na montanha e pergunta onde estão os poetas latinos Terêncio,
Cecílio, Plauto e Vário: “diz-me se estão condenados e em qual círculo”
(dimmi se son dannati, e in qual vico- v. 99). Virgílio lhe responde que todos esses, além
de Pérsio e dele próprio, estão
/.../ con quel Greco
che le Muse lattar più ch’altri mai,
nel primo cinghio del cárcere cieco (XXII, 101-103)
/.../ com
aquele grego / que as Musas nutriram mais do que qualquer outro / no primeiro círculo do cárcere cego.
O poeta grego
tão elogiado assim por Dante é, naturalmente, Homero.
A metáfora do
“cárcere cego” para o Inferno se explica pelo fato de que ali não há luz. Os
pagãos estão em seu primeiro círculo, no vestíbulo do Inferno, ou seja, no
Limbo. Virgílio acrescenta outros poetas gregos que lá estão-- Eurípedes,
Antifonte, Simonides, Agaton e também, diz ele a Estácio, “gente tua” (le genti tue- v.109), vale dizer, personagens de seus poemas “Tebaida” (Antígona, Deífele, Argia, Ismênia) e
“Aquileida” (Tétis e Deidamia). Menciona ainda “aquela que mostrou (a fonte de)
Langia” (v. 112) (i.e. Hipsipile) para os sedentos soldados dos sete reis que
marcharam contra Tebas, e “a filha de
Tirésias”, o advinho (4).
Amos Nattini |
Chegando ao
sexto terraço, os poetas se calam, “atentos
a olhar em torno” (/.../ attenti a riguardar dintorno- v.116). Era a quinta hora do
dia, ou seja, entre 10 e 11 horas da manhã (da terça-feira de Páscoa, 12 de
abril de 1300), pois para os antigos o dia começava às 6 horas, e essa
convenção é adotada no poema. É dessa maneira que os comentadores interpretam
os versos 118-119, que dizem literalmente: “e
já as quatro servas do dia (= as horas)
tinham/ ficado para trás, e a quinta guiava o carro (do sol)” (e già
le quattro ancelle eran del giorno/ rimase a dietro, e la quinta era al temo). Os três peregrinos decidem
então, mantendo o lado direito junto à encosta, circundar o monte neste
terraço.
E Dante segue
aqueles dois poetas latinos que admira, um representante da razão leiga, e
outro, da razão aliada à fé cristã, atento à sua conversação:
Elli givan dinanzi, e io soletto
di retro, e ascoltava i lor sermoni,
ch’ a poetar mi davano intelletto. (XXII, 127-129)
Eles
iam na frente, e eu sozinho,/ atrás, e escutava suas palavras,/ que me
instruíam na arte da poesia.
Mas essa
conversa é interrompida quando se deparam com uma árvore estranha em seu
caminho, “com frutos de odor suave e bom”
(con pomi a odorar soavi e buoni- v.132), que, ao contrário do
abeto, diminuía para baixo, “para
que ninguém suba nela” (/.../
perché persona sù non vada- v. 135), diz Dante. Uma “água
límpida” (liquor chiaro- v. 137) vinda do paredão de rocha se espalhava sobre as suas folhas,
no alto, enquanto ouvem uma voz expressar uma proibição:
Li due poeti a l’alber s’appressaro;
e una voce per entro le fronde
gridò: “Di questo cibo avrete caro.” (XXII, 139-141)
Os dois
poetas da árvore se aproximaram;/ e uma voz por entre a fronde/ gritou:
“Sentireis falta deste alimento”.
Após essa
advertência, a voz cita cinco exemplos de temperança, a virtude contrária ao
pecado da gula, já que os poetas estão entrando no terraço dos que incorreram
nele, mas se arrependeram enquanto era tempo. O Canto XXII conclui arrolando esses
cinco exemplos, que são os seguintes: 1) nas “bodas” (le nozze- v. 143) (de Caná, subentende-se) Maria pensava mais nos convidados do
que em sua própria boca; 2) as antigas romanas só bebiam água (e
não vinho); 3) Daniel, conforme a Bíblia (Dan., 1-8), desprezou os alimentos oferecidos
pelo rei Nabucodonosor; 4) na “idade
primeira” (lo secol primo- v. 148), a idade de ouro, os homens se alimentavam precariamente; 5) “Mel e gafanhotos foram os alimentos/ que
nutriram o Batista no deserto” (Mele e locuste furon le
vivande/ che nodriro il Batista nel diserto- v. 151-152) (5)
Essa árvore
insólita do sexto terraço lembra a “do conhecimento do bem e do mal” no jardim
do Éden referida na Bíblia (Gen, 2:17) segundo Mandelbaum (6). A proibição
salienta o seu caráter extraordinário (e misterioso), emanada de um plano
superior, divino. Obedecer as leis de Deus é pré-requisito para a salvação da
alma...
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p.371.
(2) MAGUGLIANI, Lodovico- “Dante Alighieri-
La Divina Commedia. Purgatorio. Introduzione di Bianca Garavelli. Note di
Lodovico Magugliani. Biblioteca Universale Rizzoli- Superclassici, 1995- p. 167.
(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 372.
(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”.
Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985,
p. 246. Cf. também LONGNON, Henri— “Dante- La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri
Longnon. Paris: Garnier, 1951- p.606 e 285.
(5) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”. Translated by Dorothy L.
Sayers. Penguin Classics, 1963, p. 246.
(6) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.373.
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