sábado, 5 de março de 2016

Canto XXII

PURGATÓRIO


Canto XXII


            Um anjo, após encaminhar os dois poetas para o próximo terraço, o sexto (dos gulosos), apaga mais um “P” da testa de Dante, o do pecado da avareza, de cujo terraço eles estão saindo agora (v.3).  O anjo também declama mais uma bem-aventurança (“Bem aventurados os que têm sede e fome de justiça”) mas interrompe-se em “sitiunt”, “os que têm sede”, da citação em latim do Evangelho, conforme o v.6.  A segunda parte da bem-aventurança, relativa aos “que têm fome”, será citada mais adiante (final do capítulo XXIV) quando o poema tratar dos que purgam o pecado da gula. (1)

            Virgílio em seguida dirige-se a Estácio, iniciando por

/.../ “Amore,
acceso di virtù, sempre altro accese,
pur che la fiamma sua paresse fore;   (XXII, 10-12)

/.../  “O amor/ aceso pela virtude, sempre outro acende/ contanto que sua chama se manifeste;

            Isso ocorreu com Virgílio ao saber no Limbo -- por Juvenal, o poeta satírico latino -- da afeição de Estácio por ele, o que naturalmente  tornou o autor da “Eneida” benevolente com relação a Estácio. Depois Virgílio lhe pergunta “como pôde encontrar espaço no teu seio/ a avareza” (come poté trovar dentro al tuo seno/ loco avarizia /.../- v. 22-23), ele que é tão cheio de sabedoria. Estácio percebe então que o poeta se equivoca sobre o motivo dele ter estado ali no quinto terraço. Mas ocorre que nesse lugar também expiam os que pecaram pela prodigalidade, o oposto da avareza (“pelo contrário dela ali me achava”: per lo contrario suo m’è incontrato- v. 54). Aliás, Estácio diz que foi o próprio Virgílio quem o alertou para tal “desmedida” (dismisura- v. 35) com relação ao uso do dinheiro, quando escreveu (na tradução de Dante dos versos, em latim, da “Eneida”): “Por que não regulas tu, ó sacra fome/ de ouro, o apetite dos mortais?” (“Perché non reggi tu, o sacra fame/ de l’oro, l’appetito de’ mortali?”- v. 40-41). Se não tivesse se arrependido a tempo, “estaria agora rolando pedras em tristes justas” (voltando sentirei le giostre grame- v. 42), o castigo no Inferno imposto aos pródigos (e também avarentos).

Allor m’accorsi che troppo aprir l’ali
potean le mani a spendere, e pente ‘mi
così di quel come de li altri mali.   (XXII, 43-45) 

Então me dei conta que abrir as asas demais/ as mãos podiam ao gastar, e me arrependi/ assim deste, como de outros pecados.

            Na continuação do diálogo, Virgílio quer saber de Estácio quando foi que se converteu ao Cristianismo. Nota que quando cantou “a guerra cruel/ da dupla tristeza de Jocasta” (/.../ le crude armi/ de la doppia trestizia di Giocasta-  55-56), (i.e. quando compôs o seu poema “Tebaida”, que trata da guerra, em Tebas, entre os dois filhos, que se matam, de Jocasta e Édipo), “não parece que fosse fiel/ à fé, sem a qual não bastam boas obras” (non par che ti facesse ancor fedele/ la fede, sanza qual ben far non basta- v. 59-60).

Se cosi è, qual sole quai candele
ti stenebraron sì, che tu drizzasti
poscia di retro al pescator le vele?   (XXII, 61-63)

Se é assim, que sol que círios/ te iluminaram, a ponto de dirigir/ as velas atrás do pescador?

            Nesse terceto alegórico, “Sol” substitui “graça divina” e “círios”, “ensinamentos humanos” (2). Eles iluminaram “o barco de” Estácio, cujas velas se orientaram para seguir o “pescador”, quer dizer, S.Pedro, o chefe da igreja de Cristo.

            Na sequência, Estácio refere-se ao fato de que Virgílio o introduziu nos domínios da poesia, ou das Musas -- que residiam no monte Parnaso -- e contribuiu para a sua conversão ao Cristianismo, apesar dele ter vivido no tempo do paganismo. É que nas “Bucólicas” constam uns versos (transcritos nos v. 70-72, que Dante traduz do latim) que os antigos interpretavam como sendo uma predição da vinda de Cristo... Diz Estácio:

/.../ “Tu prima m’invïasti
verso Parnaso a ber ne le sue grotte,
e prima appresso Dio m’alluminasti.

Facesti come quei che va di notte,
che porta il lume dietro e sé non giova,
ma dopo sé fa le persone dotte     (XXII, 64-69)

/.../ “Foste o primeiro a me enviar/ ao Parnaso para beber em suas grutas,/ e o primeiro a me iluminar para Deus.
Fizeste como aquele que caminha à noite,/ que leva a luz atrás e a si não serve,/ mas sim às pessoas que o seguem

            Note-se a comparação, essencialmente visual, dos v. 67-69. Mais adiante, no v. 73, Estácio assim sumariza a influência de Virgílio: “Por ti poeta fui, por ti cristão” (Per te poeta fui, per te cristiano).  

            Estácio passa, segundo afirma, a frequentar os “novos pregadores” (nuovi predicanti- v. 80) e adota sua seita, chorando junto aos cristãos a perseguição contra eles movida por Domiciano (v. 83), o imperador romano sucessor de Tito, ambos filhos de Vespasiano (3).  “Mas por medo” ele foi “um cristão secreto” (ma per paura chiuso cristian fu’mi- v. 90), que não assumiu a sua fé abertamente, e aparentou permanecer no paganismo. Por isso, pela sua “tepidez” (tepidezza- v.92), teve que permanecer no quarto terraço (o dos indolentes ou acidiosos) mais de quatro séculos (que vão se acrescentar aos cinco que passou no terraço dos avarentos/pródigos). Estácio agora quer aproveitar o tempo em que eles avançam em sua escalada na montanha e pergunta onde estão os poetas latinos Terêncio, Cecílio, Plauto e Vário:  “diz-me se estão condenados e em qual círculo” (dimmi se son dannati, e in qual vico- v. 99).  Virgílio lhe responde que todos esses, além de Pérsio e dele próprio, estão


/.../ con quel Greco
che le Muse lattar più ch’altri mai,
nel primo cinghio del cárcere cieco    (XXII, 101-103)

/.../ com aquele grego / que as Musas nutriram mais do que qualquer outro / no primeiro círculo do cárcere cego.

            O poeta grego tão elogiado assim por Dante é, naturalmente, Homero.

            A metáfora do “cárcere cego” para o Inferno se explica pelo fato de que ali não há luz. Os pagãos estão em seu primeiro círculo, no vestíbulo do Inferno, ou seja, no Limbo. Virgílio acrescenta outros poetas gregos que lá estão-- Eurípedes, Antifonte, Simonides, Agaton e também, diz ele a Estácio, “gente tua” (le genti tue- v.109), vale dizer, personagens de seus poemas “Tebaida”  (Antígona, Deífele, Argia, Ismênia) e “Aquileida” (Tétis e Deidamia). Menciona ainda “aquela que mostrou (a fonte de) Langia” (v. 112) (i.e. Hipsipile) para os sedentos soldados dos sete reis que marcharam contra Tebas, e “a filha de Tirésias”, o advinho (4).  

Amos Nattini

            Chegando ao sexto terraço, os poetas se calam, “atentos a olhar em torno(/.../ attenti a riguardar dintorno- v.116). Era a quinta hora do dia, ou seja, entre 10 e 11 horas da manhã (da terça-feira de Páscoa, 12 de abril de 1300), pois para os antigos o dia começava às 6 horas, e essa convenção é adotada no poema. É dessa maneira que os comentadores interpretam os versos 118-119, que dizem literalmente: “e já as quatro servas do dia (= as horas) tinham/ ficado para trás, e a quinta guiava o carro (do sol)” (e già le quattro ancelle eran del giorno/ rimase a dietro, e la quinta era al temo). Os três peregrinos decidem então, mantendo o lado direito junto à encosta, circundar o monte neste terraço.

            E Dante segue aqueles dois poetas latinos que admira, um representante da razão leiga, e outro, da razão aliada à fé cristã, atento à sua conversação:

Elli givan dinanzi, e io soletto
di retro, e ascoltava i lor sermoni,
ch’ a poetar mi davano intelletto.    (XXII,  127-129)

Eles iam na frente, e eu sozinho,/ atrás, e escutava suas palavras,/ que me instruíam na arte da poesia

            Mas essa conversa é interrompida quando se deparam com uma árvore estranha em seu caminho, “com frutos de odor suave e bom” (con pomi a odorar soavi e buoni- v.132), que, ao contrário do abeto, diminuía para baixo, “para que  ninguém suba nela” (/.../ perché persona sù non vada- v. 135), diz Dante. Uma “água límpida” (liquor chiaro- v. 137) vinda do paredão de rocha se espalhava sobre as suas folhas, no alto, enquanto ouvem uma voz expressar uma proibição:

Li due poeti a l’alber s’appressaro;
e una voce per entro le fronde
gridò: “Di questo cibo avrete caro.”    (XXII, 139-141)

Os dois poetas da árvore se aproximaram;/ e uma voz por entre a fronde/ gritou: “Sentireis falta deste alimento”.

            Após essa advertência, a voz cita cinco exemplos de temperança, a virtude contrária ao pecado da gula, já que os poetas estão entrando no terraço dos que incorreram nele, mas se arrependeram enquanto era tempo. O Canto XXII conclui arrolando esses cinco exemplos, que são os seguintes: 1) nas “bodas” (le nozze- v. 143) (de Caná, subentende-se) Maria pensava mais nos convidados do que em sua  própria  boca; 2) as antigas romanas só bebiam água (e não vinho); 3) Daniel, conforme a Bíblia (Dan., 1-8), desprezou os alimentos oferecidos pelo rei Nabucodonosor; 4) na “idade primeira” (lo secol primo- v. 148), a idade de ouro, os homens se alimentavam precariamente; 5) “Mel e gafanhotos foram os alimentos/ que nutriram o Batista no deserto” (Mele e locuste furon le vivande/ che nodriro il Batista nel diserto- v. 151-152) (5)

            Essa árvore insólita do sexto terraço lembra a “do conhecimento do bem e do mal” no jardim do Éden referida na Bíblia (Gen, 2:17) segundo Mandelbaum (6). A proibição salienta o seu caráter extraordinário (e misterioso), emanada de um plano superior, divino. Obedecer as leis de Deus é pré-requisito para a salvação da alma...   



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.371.

(2) MAGUGLIANI, Lodovico- “Dante Alighieri- La Divina Commedia. Purgatorio. Introduzione di Bianca Garavelli. Note di Lodovico Magugliani. Biblioteca Universale Rizzoli- Superclassici, 1995- p. 167.

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 372. 

(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 246. Cf.  também LONGNON, Henri— “Dante- La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951- p.606 e 285. 

(5) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 246.

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.373.   






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