PURGATÓRIO
Canto XXI
Logo de início, Dante relaciona sua situação a dois episódios da
vida de Cristo, conforme os Evangelhos. Quanto ao primeiro, sua sede por
conhecimento (no caso imediato, para saber a razão do tremor na montanha do
Purgatório e do que motivou aquelas almas exclamarem em uníssono “Gloria in excelsis Deo”) só será
aplacada pela água “da qual a mulher/ de
Samaria pediu a graça” (/.../ onde la femminetta/ samaritana
domandò la grazia- v. 2-3). Esta é a graça divina, ou da revelação (1). Dante faz alusão aqui
ao encontro, relatado por S.João, da samaritana com Cristo junto a um poço, de
onde ela retirava água. Ele lhe falou de uma outra água, que satisfaria a sua
sede para sempre...
O segundo
episódio, descrito por S. Lucas, é o dos dois discípulos que, no caminho de
Emaús, encontram Cristo, após a ressurreição, e só vão saber quem é seu
acompanhante mais tarde. Essa alusão é feita a partir do v.7, quando os versos
mencionam que um espírito, atrás dos dois poetas, toma a iniciativa de lhes falar,
enquanto eles se deslocam pelo terraço atulhado de avarentos, cuidando para não
pisar nos que ali jazem (é interessante notar a habilidade de Dante nessa
passagem, pois ao associar a esse espírito que se dirige a eles a imagem insubstancial
de um homem – Cristo -- “após ter saído da sepulcral cova” (giù
surto fuor de la sepulcral buca- v. 9) -- evoca conotações que reforçam a atmosfera do Além desejada
pelo poeta).
Amos Nattini |
Após saudar aquela
sombra, que só vai se identificar mais adiante (no v.91), Virgílio lhe deseja o
melhor e lamenta a condição dele próprio, de seu “exílio” (dado que viveu no
tempo do paganismo, antes que Cristo abrisse as portas do Paraíso para os seres
humanos):
/.../ “Nel beato concilio
ti ponga in pace la verace corte
che me rilega ne l’etterno essilio.” (XXI, 16-18)
/.../
“No reino bem aventurado/ te ponha em paz a corte da verdade/ que me retém no
eterno exílio.”
O espírito se
admira por eles estarem ali, “se sois
sombras que Deus não julga dignas de subir” (se voi siete ombre che
Dio sù non degni- v. 20). Virgílio lhe explica então o privilégio que coube ao seu discípulo
ainda vivo de realizar aquela jornada (“este traz sinais na fronte feitos por um anjo”: /.../ segni/ che
questi porta e che l’angel profila- v. 22-23), e a sua convocação para guiá-lo “até o ponto que minha orientação puder
alcançar” (/.../ quanto ‘l potrà menar mia scola- v. 33). Apresenta então a
alegoria da roca, conforme os versos abaixo, que exploram mais uma vez o rico
filão da mitologia clássica:
Ma perché lei che dì e notte fila
non li avea tratta ancora la conocchia
che Cloto impone a ciascuno e compila,
l’anima sua, ch’ è tua e mia serocchia,
venendo sù, non potea venir sola,
però ch’al nostro modo non adocchia. (XXI, 25-30)
Mas
como aquela que fia dia e noite/ não lhe puxara ainda toda a estriga / que
Cloto enrola para cada um na roca,
a alma
dele, que é tua e minha irmã/ em sua ascensão, não podia vir só,/ pois não vê
do modo como nós vemos.
Assim, para
dizer que Dante ainda vive, que o fio da sua vida ainda não foi cortado, o
poeta evoca duas das três Parcas da mitologia: Cloto é quem prepara a estriga (ou
seja, a “Porção de linho que se põe duma vez na roca para fiar”) (2) e Laquesis
é “aquela que fia dia e noite” (v.25).
Não menciona Atropos, a que corta o fio, símbolo da vida, quando esta atinge a
extensão que nos foi reservada (3).
Virgílio na
sequência lhe pergunta o que Dante está muito curioso de saber, vale dizer a
razão do tremor do monte e da “Glória” gritada por todos. Dante então usa outra
metáfora, em que “fundo de agulha” indica
o ponto essencial da sua curiosidade:
Sì mi diè, dimandando, per la cruna
del mio disio, che pur con la speranza
si fece la mia sete men digiuna. (XXI, 37-39)
Assim
perguntando, ele passou o fio pelo fundo de agulha/ do meu desejo, de modo que
só com a esperança de saber/ minha sede se fez menos sentir.
Mas antes de
responder, o espírito lhe diz que, acima da escadinha de três degraus, ou do
degrau mais alto, “onde o vigário de
Pedro tem os pés” (dov’ ha ‘l vicario di Pietro le piante- v. 54) (esse representante de
S.Pedro, como vimos, é o anjo que guarda a entrada do Purgatório propriamente
dito), o monte não apresenta fenômenos da natureza com a mesma explicação
terrena (chuva, granizo, neve, relâmpagos, trovões etc ). Tal explicação é dada
pela teoria de Aristóteles, do vapor úmido e do vapor seco (este referido no v.
52), adotada aqui por Dante segundo Ciardi (4). Assim, de acordo com essa
teoria, o terremoto em nosso mundo seria causado pelo vapor seco subterrâneo, ou
“por vento que na terra se esconda” (ma per
vento che ‘n terra si nasconda- v. 56).
Porém acima do
três degraus da entrada do Purgatório, quer dizer no Purgatório propriamente
dito (antecedido pelo Antepurgatório, local dos oito primeiros cantos, como
vimos), os fenômenos não tem explicação terrena. O espírito explica deste modo o
tremor da montanha:
Tremaci quando alcuna anima monda
sentesi, sì che surga o che si mova
per salir sù; e tal grido seconda. (XXI, 58-60)
Treme
quando alguma alma sente-se/ limpa, de modo que se ergue ou se move/ para
subir; e segue-se aquele grito.
Explica também
que tudo se passa no âmbito do próprio penitente, cuja vontade pode ser
“absoluta” (a da Justiça Divina) ou “relativa”, conforme a filosofia
escolástica (5). Quando ele enfim cumpre o seu período de purgação, sente-se
livre para subir para o Paraíso, e sua vontade se concretiza. Purificado, está
“livre para mudar de residência,/
surpreende a alma, contente por querer isso” (/.../ tutto libero a
mutar convento,/ l’alma sorprende, e di voler le giova- v.62-63). Então a vontade
relativa coincide com a absoluta. Mas enquanto conserva a mácula do pecado, ele
não se permite subir (ou sua vontade absoluta não o deixa subir), embora o
deseje (essa é a vontade relativa, a mesma que o levou antes a pecar). Ele assim
impõe a si mesmo a sua permanência no Purgatório a fim de primeiro
purificar-se, ou seja, remover toda mancha de pecado que possa ter. Como dizem estes
versos:
Prima vuol ben, ma non lascia il talento
che divina giustizia, contra voglia,
come fu al peccar, pone al tormento. (XXI, 64-66)
Antes a
alma quis subir, mas não a deixou sua vontade;/ a justiça divina faz essa
vontade/ desejosa de castigo, como foi de pecar.
O espírito faz
então uma revelação surpreendente. Ele sofreu ali o tormento dos avarentos/
esbanjadores (uns preocupados demais com os bens terrenos, outros de menos),
jazendo com eles por mais de quinhentos anos. Mas agora sente “a vontade livre para adentrar melhor porta” (libera volontà di miglior
soglia- v. 69).
E explica:
però sentisti il tremoto e li pii
spiriti per lo monte render lode
a quel Segnor, che tosto sù li ‘nvii. (XXI, 70-72)
por
isso ouviste o terremoto, e os piedosos/ espíritos por todo o monte louvando/ o
Senhor, que cedo os envie para cima.
Dante se
rejubila em saber disso, vendo a sua curiosidade enfim saciada. Mas Virgílio
ainda está curioso, e roga ao espírito dizer quem foi e “porque tantos séculos jazeste aqui” (e perché tanti secoli
giaciuto- v. 80).
Ele então lhe responde que viveu, “com o
nome que mais dura e mais honra” (col nome che più dura e più
onora- v.85),
i.e. o de poeta,
Nel tempo che ‘l buon Tito, con l’aiuto
del sommo rege, vendicò le fora
ond’ uscì ‘l sangue per Giuda venduto (XXI, 82-84)
No
tempo em que o bom Tito, com a ajuda/ do sumo Rei, vingou as feridas/ de onde
saiu o sangue vendido por Judas
ou seja, esse espírito viveu no tempo de Tito que, conforme os
comentaristas, era filho do imperador romano Vespasiano e destruiu Jerusalém no
ano 70 d.C. Por isso, os versos dizem
que Tito, com a ajuda de Deus (= “o sumo
Rei”), vingou a morte de Cristo pelos judeus...
No v. 91,
finalmente, o espírito se identifica. Trata-se de Estácio (ca. 45-96 d.C), o
poeta latino, “bastante famoso, mas sem
fé ainda” (famoso
assai, ma non con fede ancora- v. 87) no tempo de Tito (Dante pressupõe que ele se converteu depois ao
Cristianismo), reconhecido na Roma de sua época (“onde mereci ornar as têmporas com mirto”: dove mertai le tempie
ornar di mirto- v. 90):
Stazio la gente ancor di là mi noma:
cantai di Tebe, e poi del grande Achille;
ma caddi in via con la seconda soma. (XXI, 91-93)
Estácio
a gente de lá ainda me chama:/ cantei Tebas e depois o grande Aquiles;/ mas caí
no caminho com o segundo fardo.
Estácio é o
autor da “Tebaida” (poema épico sobre a rivalidade entre Eteocles e Polinice,
filhos de Édipo, e a expedição dos sete chefes locais contra Tebas).É autor
também do poema “Aquileida” (sobre o herói grego Aquiles que participou da guerra
de Troia), obra inacabada (6). A “Tebaida” é muito citada por Dante na
“Comédia”. Sayers salienta que o interesse de Dante por Estácio pode ser devido
ao fato de que ele explora a alegoria como forma literária. Além disso, Estácio
representa a nova Roma, a do humanismo cristão, que fará par com o representante
do humanismo pagão da velha Roma, Virgílio (7). Como dizem os versos acima, esse
segundo trabalho (“fardo”), a “Aquileida”, estava em elaboração quando Estácio
morreu (“caiu” na via ou caminho, imagem esta associada à vida, o que já ocorre
no primeiro verso da “Comédia”).
Nos versos
seguintes Estácio faz um elogio à “Eneida”, essa “divina chama/ em que se iluminaram mais de mil” (poetas) (/.../
divina fiamma/ onde sono allumati più di mille- v.95-96), inclusive ele. Para Estácio, a Eneida “me foi mãe/ e me foi nutriz poetando:/ sem ela minha obra não pesaria
nem um dracma” (/.../ la qual mamma/ fummi, e fummi nutrice, poetando:/ sanz’
essa non fermai peso di dramma- v. 97-99) (um dracma correspondia à oitava parte da onça) (8). E
acrescenta que para ter vivido na época de Virgílio aceitaria até ficar mais um
ano no Purgatório.
Ao ouvir essas
palavras, pela expressão de Virgílio Dante entende que não deve falar nada. Mas
não consegue esconder um sorriso, o que faz Estácio calar-se, olhá-lo “nos olhos onde o sentimento mais se
manifesta” (ne li occhi ove ‘l sembiante più si ficca- v. 111) e perguntar a razão desse
sorriso. Dante fica dividido entre um e outro, entre calar e falar; mas
Virgílio o livra do impasse dizendo para ele responder à pergunta de Estácio. E
o faz nestes termos:
Questi che guida in alto li occhi miei,
è quel Virgilio dal qual tu togliesti
forte a cantar de li uomini e d’i dèi. (XXI, 124- 126)
Este
que guia para o alto os olhos meus/ é aquele Virgílio de quem tiraste/ a força
para cantar sobre homens e sobre deuses.
Estácio então logo
se inclina para abraçar os pés de Virgílio, mas este o impede dizendo: “Irmão,/ não o faças; porque tu és sombra, e
sombra vês” ( /.../ “Frate,/ non far, ché tu se’ ombra e ombra vedi.”- v. 131-132).
A isso,
Estácio, erguendo-se, responde:
/.../ “Or puoi la quantitate
comprender de l’amor ch’a te mi scalda,
quand’ io dismento nostra vanitate,
trattando l’ombre come cosa salda” (XXI, 133-136)
/.../ “Agora
podes compreender/ a quantidade de amor que me inflama por ti,/ quando esqueço
nossa inconsistência/ tratando sombras como coisas sólidas”.
Vale salientar,
a propósito do enredo, que o Canto mantém o leitor sempre em suspense, primeiro
ao demorar para revelar a identidade do espírito que se dirige aos dois poetas.
E depois ao reservar para o final a revelação a Estácio de que o guia de Dante-personagem
é o poeta que ele mais admira (aqui, naturalmente Estácio apenas externa a
admiração de Dante-autor pelo poeta mantuano).
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p.369.
(2) AURÉLIO Novo Dicionário da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986- 2ª ed., rev. e ampl., p. 729 (verbete “Estriga”).
(3) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia- Dante Alighieri”. Tradução,
introdução e notas de Cristiano Martins-
5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v. 2, p. 190
(4) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.213
(5)
Id., ib, p. 214
(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985,
p. 234
(7) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”. Translated by Dorothy L.
Sayers. Penguin
Classics, 1963, p. 238
(8) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”-
Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005-
p.485.
Salvador Dalí (a Samaritana) |
Fantástico! Estou lendo A Divina Comédia pela primeira vez e seus comentários estão me ajudando muito a ter uma compreensão maior desta obra-prima. Obrigada!
ResponderExcluirMuito bom, estou lendo a divina comédia e está me ajudando muito! Gratidão!
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