sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Canto XX


PURGATÓRIO


Canto XX

           
            Logo nos primeiros versos deste Canto, ambientado ainda no terraço dos avarentos, deparamo-nos com diversas imagens. Isso ocorre talvez para compensar o caráter mais prosaico dos versos, em que se arrola o que os penitentes ouvem, a saber, três exemplos de desprendimento material e generosidade, virtudes opostas à avareza/cobiça (estímulos à virtude oposta) e sete casos de avarentos malsucedidos em decorrência de seu pecado (freios a este), seguindo um padrão adotado desde o início do “Purgatório”. 

            Assim, já no primeiro terceto do Canto, para mostrar que ainda tem muita curiosidade e gostaria de continuar conversando com o papa Adriano (cf. final do canto precedente), Dante afirma:  “por isso contra o meu desejo, para agradar-lhe,/ tirei da água a esponja não saciada” (onde contra ‘l piacer mio, per piacerli,/ trassi de l’acqua non sazia la spugna- v.2-3). Como se vê, a imagem da esponja encharcada associa-se à sua curiosidade satisfeita... Na sequência, os versos dizem que os dois poetas procuravam avançar junto à rocha, ou à encosta da montanha (naquele chão juncado dos corpos dos penitentes)

ché la gente che fonde a goccia a goccia
per li occhi il mal che tutto ‘l mondo occupa,
da l’altra parte in fuor troppo s’approccia.     (XX, 7-9)

pois a gente que verte, gota a gota,/ pelos olhos, o mal que recobre todo o mundo / se aproximava demasiado da borda.

            O mal que recobre todo o mundo é naturalmente a avareza, “vertida” nas lágrimas dos penitentes...Estes jaziam (de bruços) mais próximos da borda do terraço.

            No terceto seguinte, surge uma outra imagem, a da loba, símbolo da avareza, que Dante amaldiçoa. Ela já aparecera antes, no primeiro canto da “Comédia”, com o mesmo significado destes versos:

Maladetta sie tu, antica lupa,
che più che tutte l’altre bestie hai preda
per la tua fame sanza fine cupa!    (XX, 10-12)

Maldita sejas tu, antiga loba,/ que fazes mais presas do que todas as outras bestas,/ pela tua fome profunda, sem fim

G. Doré- Os avarentos

            Dante ouve então uma voz gritar—“Doce Maria!” (Dolce Maria!- v.19) – que se  eleva acima do choro dos que purgam ali seu pecado e ouve também alguém mencionar a pobreza dela, que depôs seu “santo fruto” (portato santo- v. 24) numa manjedoura.

            Depois, escuta:

/.../  “O buon Fabrizio,
con povertà volesti anzi virtute
che gran ricchezza posseder con vizio”.   (XX,  25-27)

/.../ “Ó bom Fabrício,/ preferiste a virtude com pobreza/ à grande riqueza com vício

            E antes que o poeta localizasse, dentre os inúmeros espíritos que ali jaziam, qual era o que assim se manifestava, ouve-o ainda dar um terceiro exemplo de desapego pelos bens materiais e de falta de cobiça:

Esso parlava ancor de la larghezza
che fece Niccolò a le pulcelle,
per condurre ad onor lor giovinezza.     (XX, 31-33)

Ele falava ainda da generosidade/ de Nicolau para com as donzelas/ de modo a poderem guardar sua juventude honesta. 
     
Amos Nattini
             É só isso o que o poeta diz deles. Mas pelas notas dos comentadores – úteis para uma leitura mais prazerosa do poema – ficamos sabendo que Caius Fabricius foi um cônsul romano em 282 a.C. que rejeitou propostas de suborno no exercício de seu alto cargo. E o terceiro exemplo  refere-se a um episódio da vida de S.Nicolau, um bispo do século IV, que teria jogado secretamente pela janela de um vizinho pobre, à noite, sacos de ouro, o que viabilizaria o casamento de suas três filhas, por terem dote, conforme o costume da época, evitando assim que se prostituíssem. S. Nicolau, padroeiro da Rússia, é conhecido nas Américas como Papai Noel (1).   

Hugo Capeto (retrato do séc. XIX)

            Dante pede então que aquela alma – “Ó alma que falas de tão bons exemplos” (O anima che tanto ben favelle- v.34) – diga quem foi, e pergunta porque só ela fala. A resposta desse espírito,  que se identifica como Hugo Capeto, origem da dinastia dos reis franceses então no poder  (“de mim nasceram os Filipes e Luíses”: di me son nati i Filippi e i Luigi- v. 50), sucessora da dinastia carolíngia, estende-se até o v. 123, tendo se iniciado no v.40. Verifica-se assim que mais da metade dos 151 versos do Canto XX consiste em sua manifestação... Essa aliás é uma característica dos cantos, frequentemente apoiados na resposta que o interlocutor dá a uma pergunta de Dante.   

Hugo Capeto  (retrato em códice medieval) 

            Hugo Capeto é muito crítico com relação à sua descendência, cujo comportamento ele censura a partir da obtenção do “grande dote da Provença” (la gran dota provenzale- v. 61), uma referência ao casamento de Charles d’Anjou (1220-1285) com a filha do Conde da Provença (2): “Ali começou com violência e com mentira/ a sua rapina” (Lì cominciò con forza e con menzogna/ la sua rapina; /.../- v. 64-65). Menciona também outras regiões incorporadas ao reino francês. Os versos dizem que ele “sacrificou Conradino” (vittima fé di Curradino- v.68), sobrinho e sucessor do rei Manfredo, a quem Charles d’Anjou também derrotara e cuja morte causara (deste em 1266, na batalha de Benevento, e daquele em 1268, com apenas 16 anos, decapitado após ser preso). Em consequência disso, Charles d’Anjou tornou-se rei da Sicília e da Apulia (3). Além disso, ele “enviou para o céu Tomás, como reparação” (ripinse ao ciel Tommaso, per ammenda- v.69), i.e. Tomás de Aquino (para Dante ele foi responsável por sua morte por envenenamento). A expressão “per ammenda” (“Para/ como reparação”) repete-se três vezes aí, como rima, em dois tercetos (v.64-66 e v.67-69), e é utilizada ironicamente por Dante, como se um malfeito “reparasse” outro...  

            A partir do v.70 o espírito de Hugo Capeto faz previsões para o futuro próximo (como o poema se passa em 1300 e foi escrito alguns anos depois, Dante usa o artifício de prever aquilo que de fato já aconteceu). Diz que vê “um outro Charles” (un altro Carlo- v. 71) sair da França (para entrar na Itália). E prossegue, nestes termos:

Sanz’arme n’esce e solo con la lancia
con la qual giostrò Giuda, e quella ponta
sì, ch’a Fiorenza fa scoppiar la pancia.

Quindi non terra, ma peccato e onta
guadagnerà, per sé tanto più grave
quanto più lieve  simil danno conta.    (XX,  73-78)

Sai sem armas, só com a lança/ com que lutou Judas, e a usa de tal modo/ que faz Florença rebentar a pança.
Disso não terra, mas pecado e vergonha/ ganhará, tanto mais grave para ele/ quanto mais leve considera essa má ação.

            Esse “outro Charles” é Charles de Valois (chamado “Sansterre”, daí a menção a terra no v. 76), que invadiu Florença em 1301 a pedido do papa Bonifácio VIII com o pretexto de pacificá-la, mas na realidade para destituir do poder o partido dos Brancos, o de Dante, causando o seu banimento da cidade (4).  A lança de Judas é referida como metáfora da traição...
  
            Hugo Capeto cita ainda um terceiro Charles no v. 79 (o segundo referido em sua previsão, pois os fatos relacionados ao primeiro já haviam ocorrido).

L’altro, che già uscì preso di nave,
veggio vender sua figlia e patteggiarne
come fanno i corsar de l’altre schiave.    (XX, 79-81)

Outro, que uma vez saiu preso de seu navio,/ vejo vender sua filha, negociando-a/ como fazem os piratas com as escravas.

            Trata-se de Charles II de Anjou (1248-1301), que, interessado apenas no grande dote, casou sua jovem filha com Azzo VIII, velho e malafamado; quando jovem ele sofrera uma derrota naval frente a Pedro III de Aragão e fora feito prisioneiro (5).    

            Após Hugo dirigir-se diretamente à Avareza, personificada, e constatar que ela exerce atração sobre o “seu sangue” (il mio sangue- v.83), ele continua a relatar sua visão (enquanto mantém o tom irônico: note-se o v. 85):  

Perché men paia il mal futuro e ‘l fatto,
veggio in Alagna intrar lo fiordaliso,
e nel vicario suo Cristo esser catto.   (XX,  85-87)

Para que pareça menor o mal futuro e passado/ vejo entrar em Alagna a flor de lis,/ e Cristo ser aprisionado em seu vigário.

            “Flor de lis” aqui representa o rei francês Felipe IV, chamado Felipe o Belo (1268-1314) (6).  Charles de Valois, antes referido, era seu irmão. Esse rei francês tinha desavenças antigas com o papa Bonifácio VIII, a quem chega a aprisionar, por meio de dois de seus aliados, e maltratar, no palácio de Alagna, onde o papa residia (Alagna, atual Anagni, dominada pela família de Bonifácio, era a sua cidade natal). O papa depois foi libertado pela população local. Mas já tinha então cerca de 86 anos, e morreria um mês depois desse incidente. Por isso, Hugo diz que vê Cristo “ser morto entre dois ladrões ainda vivos” (e tra vivi ladroni esser anciso- v.90), referência também àqueles dois aliados de Felipe. Este, chamado “novo Pilatos” (il novo Pilato- v.91), não saciado com tal ato abjeto, ainda “leva seus navios cobiçosos ao Templo” (portar nel Tempio le cupide vele- v. 93), uma alusão ao ataque e às perseguições que empreendeu contra a Ordem dos Templários, interessado em apropriar-se de suas riquezas. Curiosamente, Dante critica o rei francês por não respeitar a figura do papa, que para ele é “o vigário” de Cristo na Terra, distinguindo assim o cargo do seu eventual ocupante, no caso o papa Bonifácio VIII, que ele detestava, responsável pela inversão da situação política em Florença, o que afetou profundamente a sua  vida pessoal.   

            Hugo, depois, refere-se mais diretamente à pergunta de Dante, dizendo que o que ele ouviu “é resposta a nossas preces/ enquanto dura o dia” (tanto è risposto a tutte nostre prece/ quanto ‘l dì dura; /.../- v.100-101). São aqueles três exemplos citados acima da virtude contrária à cobiça/avareza, o primeiro dos quais diz respeito à “única esposa do Espírito Santo” (unica sposa/ de lo Spirito Santo- v. 97-98), i.e. a Maria. Mas quando anoitece, diz ele,  são ouvidos outros exemplos ali, os de avarentos malsucedidos, vítimas de seu próprio pecado. Estes são os sete exemplos a que vai se referir rapidamente, em um ou dois versos: 1) o de Pigmalião (irmão da rainha Dido que matou Siqueu, o marido dela, pela riqueza), 2) o do rei Midas (a quem foi concedido transformar em ouro tudo o que tocasse e que, arrependido, por não poder mais comer, pediu aos deuses para lhe retirarem essa prerrogativa), 3) o de Acan (o personagem bíblico que roubou parte dos despojos da batalha de Jericó destinados a Deus e foi apedrejado por ordem de Josué), 4) o de Safira e seu marido (que reservaram para si parte da venda dos bens da comunidade cristã primitiva, cujos integrantes possuíam tudo em comum; após Safira e o marido serem repreendidos por Pedro, caíram mortos aos pés dele);  5) o de Heliodoro (que ao tentar se apoderar dos tesouros do Templo de Jerusalém foi rechaçado por um cavaleiro angelical cujo cavalo lhe deu coices), 6) o de Polinestro (rei da Trácia, que matou Polidoro, filho de Príamo, para se apoderar do ouro de Troia quando esta caiu) e 7) o de Crasso (membro do triunvirato romano em 60 a.C., juntamente com Pompeu e Júlio César, morto na batalha contra os  partas, cujo rei, sabendo de sua notória cupidez, verteu ouro fundido em sua garganta) (7). A título ilustrativo, veja-se como esse último caso é lembrado em voz alta aos penitentes: “Crasso,/ dize-nos, pois tu o sabes: que gosto tem o ouro?” (“Crasso,/ dilci, che ‘l sai: di che sapore è loro?”- v.116-117). Note-se o tom sarcástico adotado por Dante neste verso (que é mais bem apreciado quando o leitor tem alguma informação sobre Crasso...). Os exemplos citados foram extraídos respectivamente 1) da “Eneida” 2) da mitologia clássica 3) da Bíblia- Velho Testamento 4) da Bíblia- Novo Testamento 5) da Bíblia- Velho Testamento, apócrifo 6) da “Eneida”  e 7) da história romana (8).   

            Hugo Capeto conclui sua resposta a Dante afirmando que não era apenas ele que falava há pouco (sobre os bons exemplos de Maria, Fabrício e Nicolau). Todavia, só ele foi ouvido, porque era o que falava mais alto por ali.

            Os dois poetas então afastam-se dele e prosseguem em seu caminho. Mas de repente sentem tremer o montanha do Purgatório, e Dante diz que isso lhe causa um frio “como sucede àquele que vai ao encontro da morte” (qual prender suol colui ch’a morte vada- v. 129). Depois, de toda parte ouvem estas palavras sendo ditas em voz alta—“Gloria in excelsis Deo” (“Glória a Deus nas alturas”). Elas foram pronunciadas aos pastores pelos anjos quando Jesus nasceu, segundo o evangelho de S.Lucas (8). Por isso, os versos dizem

No’ istavamo immobili e sospesi
comme i pastor che prima udir quel canto,
fin che ‘l tremar cessò ed el compiési.    (XX,  139-141)

Nós ficamos imóveis e expectantes,/ como os pastores que primeiro ouviram aquele canto,/ até que o terremoto cessou, e o canto também.

            Dante afirma que nunca desejou tanto saciar a sua ignorância como naquela hora, relativamente a esses fatos que eles acabaram de presenciar. Mas o Canto se interrompe aqui, deixando o leitor em suspense, curioso pela  explicação. Essa é uma qualidade deste poema narrativo, vale dizer, a de conseguir manter, permanentemente, o interesse do leitor...          


NOTAS


(1) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 228-229

(2) Ib ib, p. 230 e 360.

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p. 324 e 367

(4) Id. ib, p. 367

(5) Id. ib, p. 367; SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p. 231

(6) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p. 231 e 377

(7) Id. ib, p. 232-233

(8) Id. ib, p. 232-233

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 369.


Salvador Dalí






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