PURGATÓRIO
Canto XV
Os versos
iniciais do Canto XV usam uma linguagem rebuscada para dizer simplesmente que a
hora do dia ali era a das “vésperas”, i.e.
o período compreendido entre 3 e 6 horas da tarde. Dante
adota sempre a divisão do dia nas “horas canônicas” da liturgia católica. Ele
usa também, muitas vezes, uma linguagem religiosa. Por exemplo, nesse mesmo
Canto, ele designa o Empíreo celeste como “aquele
claustro” (quel chiostro- v. 57).
Estamos assim na
tarde da segunda-feira de Páscoa de 1300, que nesse ano correspondeu a 11 de
abril. Os pressupostos aqui, como alhures, são os de que o dia principia às 6
da manhã, quando nasce o Sol, e acaba às 6 da tarde, quando ele se põe...
Amos Nattini |
Os dois poetas seguiam na montanha quando Dante sentiu lhe
pesar na fronte “um fulgor mais intenso
do que antes” (a lo splendore assai più che di prima- v.11), a saber, mais intenso
do que os raios solares que incidiam diretamente sobre seu rosto, uma vez que seguiam agora para o ocaso. Isso faz com que Dante
leve as mãos acima das sobrancelhas para limitar a claridade excessiva. Virgílio
atende a curiosidade do discípulo, explicando-lhe que o motivo de tal claridade
é a presença ali de um anjo, o “anjo
bendito” (l’angel benedetto- v. 34), que “é um mensageiro
que vem para nos convidar a subir” (messo è che viene ad invitar
ch’om saglia- v. 30). Em breve não será difícil mas prazeroso para Dante ver esses integrantes da “família do céu” (famiglia
del cielo- v. 29), que no momento o ofuscam. O anjo lhes indica o caminho “menos
íngreme” (v.36) a seguir. Os dois poetas retomam então sua jornada, ouvindo, atrás
de si, cantarem “Beati misericordes”,
a bem-aventurança que salienta a importância da misericórdia, compaixão ou generosidade
(1), virtude oposta à inveja, pecado de que se purificam os habitantes do 2º
terraço que Dante e seu guia estão deixando. Eles ouvem também cantarem “Desfruta, tu que vences!” (Godi tu
che vinci!- v. 39), com suas alusões bíblicas (Mateus V, 12 e Apocal. II, 7)
relacionadas à recompensa no Céu aos virtuosos (2).
Ao avançar,
acompanhando Virgílio, Dante aproveita a oportunidade para pedir que seu mestre
o esclareça a respeito de uma questão
levantada antes (no Canto XIV, v. 87) “pelo
espírito de Romagna” (lo spirto di Romagna- v.44), i.e. Guido del Duca. Virgílio
lhe diz então que na esfera celeste suprema (o Empíreo) ocorre o contrário do
que ocorre em nosso mundo. Aqui, a divisão de um bem entre um número maior de
pessoas significa diminuir a parte que cabe a cada um. Mas no Céu é diferente,
ché, per quanti si dice più lì “nostro”,
tanto possiede più di ben ciascuno,
e più di caritate arde in quel chiostro. (XV, 55-57)
pois lá
quanto mais houver quem diga “nosso”/ tanto maior é o bem possuído por cada
um,/ e tanto mais amor arde naquele claustro
É o desejo pelo
bem terreno que desperta a inveja (ilustrada pela metáfora do fole: “a inveja faz que suspire o fole”: invidia move il mantaco a’
sospiri- v. 51),
suspiros esses ligados à tristeza por ver alguém possuir o bem -- e o receio de
que esteja obtendo aquilo que poderia ser meu -- ou à alegria por ver esse
alguém perdê-lo.
Dante continua
em dúvida:
Com’ esser puote ch’un ben, distributo
in più
posseditor, faccia più ricchi
di sé che se da pochi è posseduto? (XV, 61-63)
Como
pode um bem, dividido/ entre muitos possuidores, torná-los mais ricos dele/ do
que se fosse possuído por poucos?
mas Virgílio lhe diz que essa incompreensão decorre do fato de
que sua mente está apenas voltada para coisas terrenas, e “só trevas vês na luz verdadeira” (di vera luce tenebre
dispicchi- v.66).
Sua explicação relaciona-se ao fato de
que o “infinito e inefável bem” (infinito
e ineffabil bene- v. 67) -- circunlóquio usado pelo poeta para designar Deus, o amor de
Deus (3) -- é atraído para o amor dos eleitos “como vão os raios de luz para o corpo brilhante” (com’ a
lucido corpo raggio vene- v. 69). E assim os espíritos, em número crescente, que se amam no
Empíreo mais terão de amor, também porque lá, “como espelho, uma alma reflete a outra” (e come
specchio l’uno a l’altro rende- v.75) (note-se aqui mais uma comparação). De qualquer forma, diz Virgílio, Beatriz, mais
tarde, poderá lhe esclarecer melhor essa dúvida...
Na sequência, o
mestre faz saber ao discípulo que duas de suas sete “feridas” (os sete P antes
referidos, associados aos pecados capitais) já se fecharam. Dante nem percebeu
que o “fulgor mais intenso” em sua
fronte (mencionado acima), decorrente da presença do “anjo bendito” (chamado “anjo
da Generosidade” por Sayers), tivera esse efeito, indicando que eles já haviam
transposto o terraço da inveja... Dante
se vê agora “acima, em outro círculo”
(vidimi giunto in su l’altro girone- v.83), vale dizer, na 3ª cornija, olhando tudo, curioso. E ele é então
arrebatado, em êxtase, por três visões, que salientam a mansidão do espírito,
virtude oposta ao pecado da ira, purgado nesse novo terraço.
Na primeira delas,
Dante vê uma mulher entrar no templo e repreender mansamente seu filho: “Filho meu, por que fizeste assim conosco?’”
(/.../ “Figliuol mio, / perché hai tu così verso noi fatto?”- v. 90-91), pois ela e o marido andavam aflitos à sua
procura... A cena faz o leitor lembrar logo do episódio bíblico e do momento em
que Maria encontra o Cristo extraviado, ainda criança, entre os doutores do templo...
(a primeira dessas imagens que realçam a virtude oposta ao pecado que se expia
em cada terraço apoia-se sempre na vida de Maria).
A segunda visão
mostra a esposa, irada, do rei de Atenas, pedindo que ele se vingue do atrevido
que havia abraçado sua filha em público. Pisístrato é o “senhor da cidade/ cujo nome causou tanta disputa entre os deuses/ e
onde toda ciência resplandece” (/.../ sire de la villa/ del cui
nome ne’ dèi fu tanta lite,/ e onde ogna scïenza disfavilla- v. 97-99), i.e. Atenas, que foi
objeto de uma disputa entre os deuses Poseidon e Atena para nomeá-la (4). Pisístrato
não atende à esposa e desse modo dá um
outro exemplo de mansidão, assim lhe respondendo: “Que
faremos a quem nos deseja mal/ se aquele que nos ama é condenado por nós?” (“Che
farem noi a chi mal ne disira,/ se quei che ci ama è per noi condannato?”- v.
104-105)
G.Doré- O martírio de Santo Estêvão |
Giotto- Santo Estêvão |
Em sua terceira
visão extática, Dante viu “gente
inflamada pela ira” (Poi vidi gente accese in foco d’ira- v.106) apedrejando um jovem
que, já combalido, voltava os olhos para o Céu e rogava ao Senhor “que perdoasse a seus perseguidores” (che
perdonasse a’ suoi persecutori- v.113). A cena refere-se ao martírio de Santo Estêvão (Atos 7:54-59) segundo
os comentaristas (5).
Essas três visões salientam, como já foi dito, a virtude que faltou,
durante a vida, aos penitentes deste 3º terraço, os iracundos, em que os dois poetas estão entrando agora.
Ao voltar a si,
Dante constata que suas visões não eram reais, mas não aceita, pela suas
convicções íntimas, que fossem falsas (“vi
que minhas visões não eram falsas: io riconobbi i miei non falsi
errori - v.117).
Assim, o poeta explora, em sua linguagem, o paradoxo de que suas visões ou “erros”
eram, ao mesmo tempo, “verdadeiros”. Por
outro lado, Virgílio observa que
ma se’ venuto più che mezza lega
velando li occhi e con le gambe avvolte,
a guisa di cui vino o sonno piega? (XV, 121-123)
por
mais de meia légua vens caminhando/ com os olhos nublados e as pernas
afetadas,/ como quem está sob o efeito do vinho e do sono
o que nos leva a entender
que Dante assim se comportara durante o tempo em que fora arrebatado por aquelas três visões extáticas...
Quando ele vai
relatá-las a Virgílio, este o dispensa disso, afirmando conhecer seus
pensamentos, mesmo que “Se tivésseis cem
máscaras/ sobre o rosto” (/.../ Se tu avessi cento larve/ sovra la
faccia /.../- v. 127-128). E acrescenta:
Ciò che
vedesti fu perché non scuse
d’aprir lo core a l’acque de la pace
che da l’etterno fonte son diffuse. (XV, 130-132)
Aquilo
que viste foi para que não refutes/ de abrir o coração às águas da paz/ que
provêm da eterna fonte.
Note-se a
metáfora relativa a Deus, considerado na Bíblia como a “fonte das águas vivas”
(6). No caso, dessa fonte provêm “águas
da paz”, imagem bem significativa aqui, uma vez que estamos no terraço onde
se purga o pecado da ira (7), e um conselho bem apropriado, dado por Virgílio,
para a evolução espiritual de seu discípulo...
Os dois seguem
em frente, no final do período das vésperas, olhando adiante, “tão longe quanto podia a vista alcançar/
contra os raios de luz tardios e brilhantes” (/.../ quanto potean li
occhi allungarsi/ contra i raggi serotini e lucenti- v.140-141). E veem, pouco a
pouco, aproximar-se deles um fumo “escuro
como a noite” (come la notte oscuro- v.143). É com essa imagem que se encerra o Canto XV.
NOTAS
(1) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine
Comedy- II. Purgatory”. Translated by
Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p. 186.
(2) Id.
ib., p. 186
(3) Id. ib., p. 186. Cf. também MARTINS,
Cristiano- “A Divina Comédia- Dante
Alighieri”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins- 5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v.
2, p.139. Ciardi traduz “bene” como Graça, ou o amor de Deus. Cf. CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics,
2009- p. 152.
(4)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p.354
(5) Id.
Ib., p. 354
(6) CIARDI,
John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 153.
(7) MUSA, Mark-- “Dante-
The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction,
Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 170.
Salvador Dalí |
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