sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Canto XV

PURGATÓRIO


Canto XV

           
            Os versos iniciais do Canto XV usam uma linguagem rebuscada para dizer simplesmente que a hora do dia  ali era a das “vésperas”, i.e. o  período  compreendido entre 3 e 6 horas da tarde. Dante adota sempre a divisão do dia nas “horas canônicas” da liturgia católica. Ele usa também, muitas vezes, uma linguagem religiosa. Por exemplo, nesse mesmo Canto, ele designa o Empíreo celeste como “aquele claustro” (quel chiostro- v. 57).

            Estamos assim na tarde da segunda-feira de Páscoa de 1300, que nesse ano correspondeu a 11 de abril. Os pressupostos aqui, como alhures, são os de que o dia principia às 6 da manhã, quando nasce o Sol, e acaba às 6 da tarde, quando ele se põe...  

Amos Nattini

              Os dois poetas seguiam na montanha quando Dante sentiu lhe pesar na fronte “um fulgor mais intenso do que antes” (a lo splendore assai più che di prima- v.11), a saber, mais intenso do que os raios solares que incidiam diretamente sobre seu rosto, uma vez que  seguiam agora para o ocaso. Isso faz com que Dante leve as mãos acima das sobrancelhas para limitar a claridade excessiva. Virgílio atende a curiosidade do discípulo, explicando-lhe que o motivo de tal claridade é a presença ali de um anjo, o “anjo bendito” (l’angel benedetto- v. 34), que “é um mensageiro que vem para nos convidar a subir” (messo è che viene ad invitar ch’om saglia- v. 30). Em breve não será difícil mas prazeroso para Dante ver esses integrantes da “família do céu” (famiglia del cielo- v. 29), que no momento o ofuscam. O anjo lhes indica o caminho “menos íngreme” (v.36) a seguir. Os dois poetas retomam então sua jornada, ouvindo, atrás de si, cantarem “Beati misericordes”, a bem-aventurança que salienta a importância da misericórdia, compaixão ou generosidade (1), virtude oposta à inveja, pecado de que se purificam os habitantes do 2º terraço que Dante e seu guia estão deixando. Eles ouvem também cantarem “Desfruta, tu que vences!” (Godi tu che vinci!- v. 39), com suas alusões bíblicas (Mateus V, 12 e Apocal. II, 7) relacionadas à recompensa no Céu aos virtuosos (2).

            Ao avançar, acompanhando Virgílio, Dante aproveita a oportunidade para pedir que seu mestre o esclareça a respeito de uma  questão levantada antes (no Canto XIV, v. 87) “pelo espírito de Romagna” (lo spirto di Romagna- v.44), i.e. Guido del Duca. Virgílio lhe diz então que na esfera celeste suprema (o Empíreo) ocorre o contrário do que ocorre em nosso mundo. Aqui, a divisão de um bem entre um número maior de pessoas significa diminuir a parte que cabe a cada um.  Mas no Céu é diferente,

ché, per quanti si dice più lì “nostro”,
tanto possiede più di ben ciascuno,
e più di caritate arde in quel chiostro.   (XV, 55-57)


pois lá quanto mais houver quem diga “nosso”/ tanto maior é o bem possuído por cada um,/ e tanto mais amor arde naquele claustro

            É o desejo pelo bem terreno que desperta a inveja (ilustrada pela metáfora do fole: “a inveja faz que suspire o fole”:  invidia move il mantaco a’ sospiri- v. 51), suspiros esses ligados à tristeza por ver alguém possuir o bem -- e o receio de que esteja obtendo aquilo que poderia ser meu -- ou à alegria por ver esse alguém perdê-lo.

            Dante continua em dúvida:

Com’ esser puote ch’un ben, distributo
in più posseditor, faccia più ricchi
di sé che se da pochi è posseduto?  (XV,  61-63)

Como pode um bem, dividido/ entre muitos possuidores, torná-los mais ricos dele/ do que se fosse possuído por poucos?

mas Virgílio lhe diz que essa incompreensão decorre do fato de que sua mente está apenas voltada para coisas terrenas, e “só trevas vês na luz verdadeira” (di vera luce tenebre dispicchi- v.66).  Sua explicação relaciona-se ao fato de que o “infinito e inefável bem” (infinito e ineffabil bene- v. 67) -- circunlóquio usado pelo poeta para designar Deus, o amor de Deus (3) -- é atraído para o amor dos eleitos “como vão os raios de luz para o corpo brilhante” (com’ a lucido corpo raggio vene- v. 69). E assim os espíritos, em número crescente, que se amam no Empíreo mais terão de amor, também porque lá, “como espelho, uma alma reflete a outra” (e come specchio l’uno a l’altro rende- v.75) (note-se aqui mais uma comparação).  De qualquer forma, diz Virgílio, Beatriz, mais tarde, poderá lhe esclarecer melhor essa dúvida... 

            Na sequência, o mestre faz saber ao discípulo que duas de suas sete “feridas” (os sete P antes referidos, associados aos pecados capitais) já se fecharam. Dante nem percebeu que o “fulgor mais intenso” em sua fronte (mencionado acima), decorrente da presença do “anjo bendito” (chamado “anjo da Generosidade” por Sayers), tivera esse efeito, indicando que eles já haviam transposto o terraço da inveja...  Dante se vê agora “acima, em outro círculo” (vidimi giunto in su l’altro girone-  v.83), vale dizer, na 3ª cornija, olhando tudo, curioso. E ele é então arrebatado, em êxtase, por três visões, que salientam a mansidão do espírito, virtude oposta ao pecado da ira, purgado nesse novo terraço.  

           Na primeira delas, Dante vê uma mulher entrar no templo e repreender mansamente seu filho: “Filho meu, por que fizeste assim conosco?’” (/.../ “Figliuol mio, / perché hai tu così verso noi fatto?”- v. 90-91),  pois ela e o marido andavam aflitos à sua procura... A cena faz o leitor lembrar logo do episódio bíblico e do momento em que Maria encontra o Cristo extraviado, ainda criança, entre os doutores do templo... (a primeira dessas imagens que realçam a virtude oposta ao pecado que se expia em cada terraço apoia-se sempre na vida de Maria). 

            A segunda visão mostra a esposa, irada, do rei de Atenas, pedindo que ele se vingue do atrevido que havia abraçado sua filha em público. Pisístrato é o “senhor da cidade/ cujo nome causou tanta disputa entre os deuses/ e onde toda ciência resplandece” (/.../ sire de la villa/ del cui nome ne’ dèi fu tanta lite,/ e onde ogna scïenza disfavilla- v. 97-99), i.e. Atenas, que foi objeto de uma disputa entre os deuses Poseidon e Atena para nomeá-la (4). Pisístrato não atende à esposa e  desse modo dá um outro exemplo de mansidão, assim lhe respondendo:  “Que faremos a quem nos deseja mal/ se aquele que nos ama é condenado por nós?” (“Che farem noi a chi mal ne disira,/ se quei che ci ama è per noi condannato?”- v. 104-105)

G.Doré- O martírio de Santo Estêvão
Giotto- Santo Estêvão
            Em sua terceira visão extática, Dante viu “gente inflamada pela ira” (Poi vidi gente accese in foco d’ira- v.106) apedrejando um jovem que, já combalido, voltava os olhos para o Céu e rogava ao Senhor “que perdoasse a seus perseguidores” (che perdonasse a’ suoi persecutori- v.113). A cena refere-se ao martírio de Santo Estêvão (Atos 7:54-59) segundo os comentaristas (5).  

            Essas três visões salientam, como já foi dito, a virtude que faltou, durante a vida, aos penitentes deste 3º terraço, os iracundos,  em que os dois poetas estão entrando agora.   

            Ao voltar a si, Dante constata que suas visões não eram reais, mas não aceita, pela suas convicções íntimas, que fossem falsas (“vi que minhas visões não eram falsas: io riconobbi i miei non falsi errori - v.117). Assim, o poeta explora, em sua linguagem, o paradoxo de que suas visões ou “erros” eram, ao mesmo tempo, “verdadeiros”.  Por outro lado, Virgílio observa que

ma se’ venuto più che mezza lega
velando li occhi e con le gambe avvolte,
a guisa di cui vino o sonno piega?    (XV, 121-123)

por mais de meia légua vens caminhando/ com os olhos nublados e as pernas afetadas,/ como quem está sob o efeito do vinho e do sono

o que nos leva  a entender que Dante assim se comportara durante o tempo em que  fora arrebatado por aquelas três visões extáticas...  

            Quando ele vai relatá-las a Virgílio, este o dispensa disso, afirmando conhecer seus pensamentos, mesmo que “Se tivésseis cem máscaras/ sobre o rosto” (/.../ Se tu avessi cento larve/ sovra la faccia /.../- v. 127-128). E acrescenta:

Ciò che vedesti fu perché non scuse
d’aprir lo core a l’acque de la pace
che da l’etterno fonte son diffuse.    (XV, 130-132)

Aquilo que viste foi para que não refutes/ de abrir o coração às águas da paz/ que provêm da eterna fonte.

            Note-se a metáfora relativa a Deus, considerado na Bíblia como a “fonte das águas vivas” (6). No caso, dessa fonte provêm “águas da paz”, imagem bem significativa aqui, uma vez que estamos no terraço onde se purga o pecado da ira (7), e um conselho bem apropriado, dado por Virgílio, para a evolução espiritual de seu discípulo...

            Os dois seguem em frente, no final do período das vésperas, olhando adiante, “tão longe quanto podia a vista alcançar/ contra os raios de luz tardios e brilhantes(/.../ quanto potean li occhi allungarsi/ contra i raggi serotini e lucenti- v.140-141). E veem, pouco a pouco, aproximar-se deles um fumo “escuro como a noite” (come la notte oscuro- v.143). É com essa imagem que se encerra o Canto XV.

           
NOTAS


(1) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 186.

(2) Id. ib., p. 186

(3) Id. ib., p. 186. Cf. também MARTINS, Cristiano-  “A Divina Comédia- Dante Alighieri”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins-  5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v. 2, p.139. Ciardi traduz “bene” como Graça, ou o amor de Deus. Cf. CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 152. 

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.354

(5) Id. Ib., p. 354  

(6) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 153.  

(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 170.  

Salvador Dalí



Nenhum comentário:

Postar um comentário