terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Canto XIV

PURGATÓRIO


Canto XIV


Amos Nattini
           
            Os versos iniciais desse Canto reproduzem o diálogo entre dois penitentes (do pecado da inveja) a respeito de Dante. Ambos estão com as pálpebras costuradas, mas “sentem” a presença dele e  seu guia ali. O primeiro pergunta:  

“Chi è costui che ‘l nostro monte cerchia
prima che morte li abbia dato il volo,
e apre li occhi a sua voglia e coverchia?”   (XIV, 1-3)

“Quem é este que o nosso monte rodeia/ antes que a morte lhe tenha dado o voo,/ e abre e fecha os olhos à vontade?”

            (Note-se a personificação da morte e a imagem do voo (da alma)  para expressar a passagem para o outro mundo).  

            A essa pergunta o segundo espírito responde não saber, e pede ao primeiro que pergunte a Dante quem é e de onde vem. E ele faz isso na sequência. Dante atende à sua curiosidade, informando-lhes que ele vem das margens de “um rio que nasce em Falterona” (un fiumecel che nasce in Falterona- v.17), na Toscana, e se estende por uma centena de milhas:

Di sovr’ esso rech’io questa persona:
dirvi ch’i’ sia, saria parlare indarno,
ché ‘l nome mio ancor molto non suona.   (XIV, 19-21)

De suas margens trago eu este corpo:/ dizer-vos quem sou seria falar em vão,/ pois meu nome ainda não soa muito.  

            (O “ainda” – ancor - mostra que Dante estava convencido de sua grandeza literária, e revela seu orgulho disso)

            Assim, ele não declina seu nome, nem o do rio. Mas neste caso o primeiro espírito logo reconhece ser o Arno (que banha Florença, a cidade natal do poeta), enquanto o segundo, intrigado, pergunta pela razão dele ter escondido o nome do rio “como fazemos com as coisas horríveis” (pur com’om fa de l’orribili cose- v. 27).  Então o primeiro espírito responde não saber qual a razão, mas acha “justo que o nome de tal vale pereça” (ma degno/ ben è che ‘l nome di tal valle pèra- v.29-30), uma vez que desde seu início até onde o rio Arno se lança no mar,

vertù così per nimica si fuga
da tutti come biscia, o per sventura
del luogo, o per mal uso che li fruga    (XIV, 37-39)

da virtude, considerada inimiga, se foge/ como se fosse serpente, ou por desventura/ do lugar,ou porque o mau costume os incite a isso

            Implicitamente, ele considera que Dante não cita o nome do rio por que tem vergonha do comportamento dos habitantes de suas margens. Estes “mudaram tanto a sua natureza” (ond’ hanno sì mutata lor natura- v.40) (quer dizer, no passado eram melhores que os de hoje) “que pareciam estar no pasto de Circe” (che par che Circe li avesse in pastura- v. 42). Circe é a  feiticeira da mitologia clássica que transformava os homens em animais. Foi com ela que se envolveu Ulisses, quando retornava de Troia. É mencionada não só na “Odisseia” mas também na “Eneida” e outras obras  (1).  

            Essa referência clássica serve para introduzir um tratamento dado ao rio como um animal (cf v. 48: “desdenhoso deles desvia o focinho”: e da lor disdegnosa torce il muso) na descrição de seu percurso descendente na Toscana, desde seu início no monte Falterona, integrante da cadeia dos Apeninos, até lançar-se no mar Tirreno. Também os habitantes de suas margens são assim considerados. Vivem ali porcos (porci- v.43), os residentes na região do Casentino; cães (botoli- v. 46), associados aos habitantes de Arezzo, animais esses citados na divisa da cidade; lobos (lupi- v.50), os avarentos florentinos e por fim raposas (volpi- v.53) ardilosas, os habitantes de Pisa (2). Como se vê, o poeta relaciona o pecado, ou a vileza moral, a animais irracionais, que na hierarquia tomista dos seres, adotada por ele, está abaixo do grau correspondente ao ser humano, o que significa que o homem se degrada ao levar vida pecaminosa.

            Prosseguindo, o espírito que assim se manifesta faz uma previsão que interessa a Dante, que ele sabe quem é embora não o diga, pois afirma: “e bom será que este se lembre no futuro” (e buon sarà costui, s’ancor s’ammenta- v. 56). Mas ele se dirige, na realidade, ao segundo espírito, que ali está:   

Io veggio tuo nepote che diventa
cacciator di quei lupi in su la riva
del fiero fiume, e tutti li sgomenta.  (XIV, 58-60)

Vejo teu neto tornar-se/ caçador dos lobos que estão nas margens/ do fero rio, e a todos amedronta.

            Quem fala só vai se identificar no v. 81. Trata-se de Guido del Duca, que assim reconhece o seu pecado:

Fu il sangue mio d’invidia sì rïarso,
che se veduto avesse uom farsi lieto,
visto m’avresti di livore sparso.    (XIV, 82-84)

O sangue meu tanto ardeu de inveja/ que se eu visse um homem alegrar-se/ tu me verias empalidecer.       

            Segundo o comentador, Guido foi um gibelino que viveu na 1ª metade do século XIII exercendo o cargo de magistrado em várias cidades da Itália central (3). Seu companheiro, o segundo espírito, “que se voltara/ para ouvir, turvar-se e entristecer-se” (/.../ che volta/ stava a udir, turbarsi e farsi trista- v.70-71) com suas palavras, é assim identificado:

Questi è Rinier; questi è ‘l pregio e l’onore
de la casa da Calboli, ove nullo
fatto s’è reda poi del suo valore.   (XIV, 88-90).

Este é Rinier; é a glória e a honra/ da casa de Calboli, de quem/ ninguém herdou depois o seu valor.

            Guido, embora elogie o avô, faz uma crítica dura a seu neto, Fulcieri da Calboli, cuja crueldade “priva muitos da vida, e a si mesmo da honra” (molti di vita e sé di pregio priva- v. 63). Ele era o podestà (principal magistrado) de Florença em 1303, ligado aos guelfos negros. Perseguiu e matou muitos inimigos políticos, guelfos brancos (o partido de Dante) e gibelinos (4). Mais uma vez, como se vê, Dante usa o artifício de profetizar algo que, de fato, já tinha acontecido, no período compreendido entre o ano em que ocorre a ação do poema (1300) e o de sua elaboração...  

            Na segunda parte da sua extensa manifestação, Guido deixa de criticar a Toscana para se concentrar na Romagna, de onde ele e seu companheiro são nativos.  Essa região italiana é aquela delimitada no v.92 (um polissíndeto): “entre o Pó e os montes e a marinha e o Reno” (tra ‘l Po e ‘l monte e la marina e ‘l Reno). Nessas terras o sangue dos habitantes se despojara “da bondade necessária à verdade e à vida honesta” (del ben richesto al vero e al trastullo- v. 93) e agora estavam cheias de “rebentos venenosos” (venenosi sterpi- v. 95). Guido invoca uma série de nomes respeitáveis do passado nativos da região -- sobre os quais os comentadores têm pouco a dizer, pois os detalhes de suas vidas se perderam nos abismos do tempo -- lamentando a situação atual: “Oh, romanhóis, tornados em bastardos!” (Oh Romagnuoli tornati in bastardi!- v. 99). E afirma inclusive que lembrar alguns desses nomes o leva às lágrimas. Mas Guido também se rejubila ao constatar que na região – “lá onde o corações se fizeram tão maus” (là dove i cuor son fatti sì malvagi- v. 111)--  uma cidade como Bagnacaval já “não procria mais” (che non rifiglia- v.115) , quer dizer, a família de seus senhores já se extinguiu (5). Mas se aborrece com Castrocaro e Conio, pois nestas cidades as famílias dos senhores que as controlam ainda têm  descendentes varões.  O diálogo entre Dante e Guido, na realidade mais um monólogo do segundo, se encerra quando Guido diz assim:

Ma va via, Tosco omai; ch’ or mi diletta
troppo di pianger più che di parlare,
sì m’ ha nostra ragion la mente stretta.   (XIV, 124-126)

Mas vai-te, toscano; ora me agrada/ muito mais chorar do que falar,/ tanto me entristeceu nossa conversa.

            Depois disso, Dante afirma que ele e seu mestre prosseguiram sua marcha até que

folgore parve quando l’aere fende,
voce che giunse di contra dicendo:
“Anciderammi qualunque m’apprende”   (XIV, 131-133)

uma voz, que parecia um raio quando fende o ar/ ressoou diante de nós, dizendo:/ “Me matará, qualquer um que me encontre”.

            Segundo as notas a esses versos, tais palavras foram pronunciadas por Caim, após matar seu irmão Abel, conforme a Bíblia. Certamente, bastaria ao leitor/ouvinte contemporâneo de Dante, mais familiarizado com a Bíblia, a citação dessas palavras para que ele logo as associasse a Caim, o que não ocorre com o leitor de hoje... Logo depois, os poetas ouvem outra voz, “que pareceu um trovão seguindo outro:/ “Eu sou Aglauro que me tornei pedra” (che somigliò tonar che tosto segua:/ “Io sono Aglauro che divenni sasso”- v.138-139). Aglauro, personagem da mitologia clássica, é uma das filhas do rei de Atenas que invejou sua irmã, Erse, por ter despertado o amor de Mercúrio. Como ela procurasse impedir os encontros deles, foi punida pelo deus, que a transformou em pedra (6).  São dois casos de inveja castigada, um de homem e outro de mulher, que ilustram assim a punição do pecado purgado na 2ª cornija. Dante continua abeberando-se nas fontes da Bíblia e da mitologia clássica para criar tais exemplos ilustrativos do que deseja expressar em seus versos.  

Mercúrio e Erse (vaso do séc. IV a. C.)
             Esses castigos deveriam ser um freio para a conduta dos homens, diz Virgílio a Dante, na conclusão do Canto. Mas eles preferem morder a isca do “antigo adversário” (l’antico avversaro- v.146), o Diabo, que os puxa para si (cf mais uma metáfora, associada a um espécime da fauna...). E finaliza assim:   

Chiamavi ‘l cielo e ‘ntorno vi si gira,
mostrandovi le sue bellezze etterne,
e l’occhio vostro pur a terra mira;
onde vi batte chi tutto discerne.   (XIV, 148-151)

Chama-vos o céu e em torno a vós gira,/ mostrando as suas belezas eternas,/ e todavia vosso olhar só a terra mira;/ assim vos pune aquele que tudo julga.



NOTAS


(1) ZIMMERMAN, J.E.- “Dictionary of Classical Mythology” . Bantam Books, 1985, p.63

(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p. 349-350

(3) Id. ib. p. 350

(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 156; CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.141.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 351.

(6) Id., ib, p. 352; CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p 144.


Salvador Dalí

Um comentário: