PURGATÓRIO
Canto XIV
Amos Nattini |
Os versos
iniciais desse Canto reproduzem o diálogo entre dois penitentes (do pecado da
inveja) a respeito de Dante. Ambos estão com as pálpebras costuradas, mas
“sentem” a presença dele e seu guia ali.
O primeiro pergunta:
“Chi è costui che ‘l nostro monte cerchia
prima che morte li abbia dato il volo,
e apre li occhi a sua voglia e coverchia?” (XIV, 1-3)
“Quem é
este que o nosso monte rodeia/ antes que a morte lhe tenha dado o voo,/ e abre
e fecha os olhos à vontade?”
(Note-se a
personificação da morte e a imagem do voo (da alma) para expressar a passagem para o outro mundo).
A essa pergunta
o segundo espírito responde não saber, e pede ao primeiro que pergunte a Dante quem
é e de onde vem. E ele faz isso na sequência. Dante atende à sua curiosidade,
informando-lhes que ele vem das margens de “um rio que nasce em Falterona” (un fiumecel che nasce in
Falterona- v.17),
na Toscana, e se estende por uma centena de milhas:
Di sovr’ esso rech’io questa persona:
dirvi ch’i’ sia, saria parlare indarno,
ché ‘l nome mio ancor molto non suona. (XIV, 19-21)
De suas
margens trago eu este corpo:/ dizer-vos quem sou seria falar em vão,/ pois meu
nome ainda não soa muito.
(O “ainda” – ancor - mostra que Dante estava
convencido de sua grandeza literária, e revela seu orgulho disso)
Assim, ele não
declina seu nome, nem o do rio. Mas neste caso o primeiro espírito logo
reconhece ser o Arno (que banha Florença, a cidade natal do poeta), enquanto o
segundo, intrigado, pergunta pela razão dele ter escondido o nome do rio “como fazemos com as coisas horríveis” (pur
com’om fa de l’orribili cose- v. 27). Então o primeiro
espírito responde não saber qual a razão, mas acha “justo que o nome de tal vale pereça” (ma
degno/ ben è che ‘l nome di tal valle pèra- v.29-30), uma vez que desde seu
início até onde o rio Arno se lança no mar,
vertù così per nimica si fuga
da tutti come biscia, o per sventura
del luogo, o per mal uso che li fruga (XIV,
37-39)
da
virtude, considerada inimiga, se foge/ como se fosse serpente, ou por
desventura/ do lugar,ou porque o mau costume os incite a isso
Implicitamente,
ele considera que Dante não cita o nome do rio por que tem vergonha do
comportamento dos habitantes de suas margens. Estes “mudaram tanto a sua natureza” (ond’ hanno sì mutata lor
natura- v.40)
(quer dizer, no passado eram melhores que os de hoje) “que pareciam estar no pasto de Circe” (che par
che Circe li avesse in pastura- v. 42). Circe é a feiticeira
da mitologia clássica que transformava os homens em animais. Foi com ela que se
envolveu Ulisses, quando retornava de Troia. É mencionada não só na “Odisseia”
mas também na “Eneida” e outras obras (1).
Essa referência
clássica serve para introduzir um tratamento dado ao rio como um animal (cf v.
48: “desdenhoso deles desvia o focinho”:
e da lor disdegnosa torce il muso) na descrição de seu percurso descendente
na Toscana, desde seu início no monte Falterona, integrante da cadeia dos
Apeninos, até lançar-se no mar Tirreno. Também os habitantes de suas margens
são assim considerados. Vivem ali porcos
(porci- v.43), os residentes na região do Casentino; cães (botoli- v. 46), associados aos habitantes de Arezzo, animais esses citados na
divisa da cidade; lobos (lupi- v.50), os avarentos florentinos
e por fim raposas (volpi- v.53) ardilosas, os
habitantes de Pisa (2). Como se vê, o poeta relaciona o pecado, ou a vileza
moral, a animais irracionais, que na hierarquia tomista dos seres, adotada por ele,
está abaixo do grau correspondente ao ser humano, o que significa que o homem
se degrada ao levar vida pecaminosa.
Prosseguindo, o
espírito que assim se manifesta faz uma previsão que interessa a Dante, que ele
sabe quem é embora não o diga, pois afirma: “e bom será que este se lembre no futuro” (e buon
sarà costui, s’ancor s’ammenta- v. 56). Mas ele se dirige, na realidade, ao segundo espírito, que ali
está:
Io veggio tuo nepote che diventa
cacciator di quei lupi in su la riva
del fiero fiume, e tutti li sgomenta. (XIV, 58-60)
Vejo
teu neto tornar-se/ caçador dos lobos que estão nas margens/ do fero rio, e a
todos amedronta.
Quem fala só vai se identificar no v. 81. Trata-se de Guido del
Duca, que assim reconhece o seu pecado:
Fu il sangue mio d’invidia sì rïarso,
che se veduto avesse uom farsi lieto,
visto m’avresti di livore sparso. (XIV, 82-84)
O
sangue meu tanto ardeu de inveja/ que se eu visse um homem alegrar-se/ tu me
verias empalidecer.
Segundo o
comentador, Guido foi um gibelino que viveu na 1ª metade do século XIII
exercendo o cargo de magistrado em várias cidades da Itália central (3). Seu
companheiro, o segundo espírito, “que se
voltara/ para ouvir, turvar-se e entristecer-se” (/.../ che
volta/ stava a udir, turbarsi e farsi trista- v.70-71) com suas palavras, é assim
identificado:
Questi è Rinier; questi è ‘l pregio e
l’onore
de la casa da Calboli, ove nullo
fatto s’è reda poi del suo valore. (XIV, 88-90).
Este é
Rinier; é a glória e a honra/ da casa de Calboli, de quem/ ninguém herdou
depois o seu valor.
Guido, embora
elogie o avô, faz uma crítica dura a seu neto, Fulcieri da Calboli, cuja
crueldade “priva muitos da vida, e a si
mesmo da honra” (molti di vita e sé di pregio priva- v. 63). Ele era o podestà (principal magistrado) de
Florença em 1303, ligado aos guelfos negros. Perseguiu e matou muitos inimigos
políticos, guelfos brancos (o partido de Dante) e gibelinos (4). Mais uma vez,
como se vê, Dante usa o artifício de profetizar algo que, de fato, já tinha
acontecido, no período compreendido entre o ano em que ocorre a ação do poema
(1300) e o de sua elaboração...
Na segunda
parte da sua extensa manifestação, Guido deixa de criticar a Toscana para se
concentrar na Romagna, de onde ele e seu companheiro são nativos. Essa região italiana é aquela delimitada no
v.92 (um polissíndeto): “entre o Pó e os
montes e a marinha e o Reno” (tra ‘l Po e ‘l monte e la
marina e ‘l Reno). Nessas terras o sangue dos habitantes se despojara “da bondade necessária à verdade e à vida
honesta” (del ben richesto al vero e al trastullo- v. 93) e agora estavam cheias
de “rebentos venenosos” (venenosi
sterpi- v. 95).
Guido invoca uma série de nomes respeitáveis do passado nativos da região --
sobre os quais os comentadores têm pouco a dizer, pois os detalhes de suas
vidas se perderam nos abismos do tempo -- lamentando a situação atual: “Oh, romanhóis, tornados em bastardos!” (Oh
Romagnuoli tornati in bastardi!- v. 99). E afirma inclusive que lembrar alguns desses nomes o leva às
lágrimas. Mas Guido também se rejubila ao constatar que na região – “lá onde o corações se fizeram tão maus”
(là dove i cuor son fatti sì malvagi- v. 111)-- uma cidade como Bagnacaval já “não procria mais” (che non
rifiglia- v.115)
, quer dizer, a família de seus senhores já se extinguiu (5). Mas se aborrece
com Castrocaro e Conio, pois nestas cidades as famílias dos senhores que as
controlam ainda têm descendentes varões. O diálogo entre Dante e Guido, na realidade
mais um monólogo do segundo, se encerra quando Guido diz assim:
Ma va via, Tosco omai; ch’ or mi diletta
troppo di pianger più che di parlare,
sì m’ ha nostra ragion la mente
stretta. (XIV, 124-126)
Mas
vai-te, toscano; ora me agrada/ muito mais chorar do que falar,/ tanto me entristeceu
nossa conversa.
Depois disso,
Dante afirma que ele e seu mestre prosseguiram sua marcha até que
folgore parve quando l’aere fende,
voce che giunse di contra dicendo:
“Anciderammi qualunque m’apprende” (XIV, 131-133)
uma
voz, que parecia um raio quando fende o ar/ ressoou diante de nós, dizendo:/
“Me matará, qualquer um que me encontre”.
Segundo as
notas a esses versos, tais palavras foram pronunciadas por Caim, após matar seu
irmão Abel, conforme a Bíblia. Certamente, bastaria ao leitor/ouvinte
contemporâneo de Dante, mais familiarizado com a Bíblia, a citação dessas
palavras para que ele logo as associasse a Caim, o que não ocorre com o leitor de
hoje... Logo depois, os poetas ouvem outra voz, “que pareceu um trovão seguindo outro:/ “Eu sou Aglauro que me tornei
pedra” (che somigliò tonar che tosto segua:/ “Io sono Aglauro che
divenni sasso”- v.138-139). Aglauro, personagem da mitologia clássica, é uma das filhas
do rei de Atenas que invejou sua irmã, Erse, por ter despertado o amor de Mercúrio. Como
ela procurasse impedir os encontros deles, foi punida pelo deus, que a
transformou em pedra (6). São dois casos
de inveja castigada, um de homem e outro de mulher, que ilustram assim a
punição do pecado purgado na 2ª cornija. Dante continua abeberando-se nas
fontes da Bíblia e da mitologia clássica para criar tais exemplos ilustrativos
do que deseja expressar em seus versos.
Mercúrio e Erse (vaso do séc. IV a. C.) |
Esses castigos
deveriam ser um freio para a conduta dos homens, diz Virgílio a Dante, na
conclusão do Canto. Mas eles preferem morder a isca do “antigo adversário” (l’antico avversaro- v.146), o Diabo, que os puxa
para si (cf mais uma metáfora, associada a um espécime da fauna...). E finaliza
assim:
Chiamavi ‘l cielo e ‘ntorno vi si gira,
mostrandovi le sue bellezze etterne,
e l’occhio vostro pur a terra mira;
onde vi batte chi tutto discerne. (XIV, 148-151)
Chama-vos
o céu e em torno a vós gira,/ mostrando as suas belezas eternas,/ e todavia
vosso olhar só a terra mira;/ assim vos pune aquele que tudo julga.
NOTAS
(1)
ZIMMERMAN, J.E.- “Dictionary of Classical Mythology” . Bantam Books, 1985, p.63
(2)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p. 349-350
(3) Id. ib. p. 350
(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985,
p. 156; CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”.
Signet Classics, 2009- p.141.
(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine
Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 351.
(6) Id., ib, p. 352; CIARDI, John-
“Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p 144.
Salvador Dalí |
Magnifico!
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