segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Canto XI

PURGATÓRIO


Canto XI


            O Canto inicia com os orgulhosos entoando uma paráfrase do “Padre Nosso” (v.1-24) enquanto andam lentamente debaixo do peso que carregam, contornando, exaustos, a primeira cornija. Ao fim daquela oração, os penitentes pedem pelos que vivem ainda em nosso mundo nestes termos:

Nostra virtù che di legger s’adona,
non spermentar  con l’antico avversaro,
ma libera da lui che sì la sprona.    (XI, 19-21)

Nossa virtude, que é facilmente subjugada,/ não a experimentes com o antigo adversário,/ mas livra-a dele, que a estimula para o mal. 

            Pedem que o Senhor (ou o “Pai Nosso”) não teste a nossa virtude com o  “antigo adversário”, que é naturalmente o Diabo. Nos versos seguintes os penitentes dizem que não pedem isso para si (por não serem mais sujeitos ao pecado), “mas por aqueles que ficaram para trás” (ma per color che dietro a noi restaro- v. 24).

            Os que estão no Purgatório estão sempre rogando por nós (v. 31). Em contrapartida a isso,

Ben si de’ loro atar lavar le note
che portar quinci, sì che, mondi e lievi,
possano uscire a le stellate ruote.   (XI, 34-36)

Devemos ajudá-los a lavar as manchas/ que levaram daqui, de modo que, puros e leves,/ possam subir para as esferas estelares.

            Virgílio pede-lhes informações sobre qual o caminho menos íngreme para subir a montanha,

ché questi che vien meco,  per lo ‘ncarco
de la carne d’Adamo onde si veste,
al montar sù, contra sua voglia, è parco.   (XI, 43-45)

pois este que vem comigo, pelo peso/ da carne de Adão com que se veste,/ é lento no subir, contra a sua vontade.

Amos Nattini
            Ouvindo isso, alguém daquele bando de espíritos lhe responde, afirmando que os dois poetas devem seguir à direita, pela encosta, acompanhando-os.  E continua assim:  

E s’io non fossi impedito dal sasso
che la cervice mia superba doma,
onde portar convienmi il viso basso,

cotesti, ch’ancor vive e non si noma,
guardere’ io, per veder s’i’ ‘l conosco,
e per farlo pietoso a questa soma.   (XI, 52-57)

E se eu não estivesse impedido pela pedra,/ que a minha nuca altiva subjuga/ e me faz manter o rosto para baixo,
a este, sem nome, que ainda vive,/ olharia, para ver se o conheço/ e fazê-lo apiedar-se de meu peso. 

             Na sequência ele se identifica (v.67): trata-se de Omberto, filho “de um grande toscano” (d’un gran Tosco- v.58), Guiglielmo Aldobrandesco. Este é o primeiro dos três casos de soberba abordados por Dante no Canto XI. Omberto representa o orgulho de linhagem ou de família, que faz o orgulhoso esquecer a “mãe comum” dos homens, Eva:

L’antico sangue e l’opere leggiadre
d’i miei maggior mi fer sì arrogante,
che, non pensando a la comune madre,

ogn’uomo ebbi in despetto tanto avante,
ch’io ne mori’, come i Sanesi sanno,
e sallo in Campagnatico ogne fante.   (XI, 61-66)

O sangue antigo e os nobres feitos/ dos meus maiores me tornaram tão arrogante,/ que, não pensando na mãe comum,/ desprezei todos os homens a tal ponto/ que disso eu morri, como os de Siena sabem,/ e até as crianças de Campagnatico.

            Segundo os comentaristas (1), os Aldobrandeschi eram poderosos senhores que estavam em contínua luta contra os de Siena. Quanto a Omberto, ele teria sido morto numa batalha perto de Campagnatico.   
 
            Escutando Omberto, Dante-personagem se abaixa e acompanha o grupo de espíritos. E “todo arqueado com eles avançava” (/.../ tutto chin con loro andava- v.78). Assim fazendo, ele está, simbolicamente, purgando a sua própria culpa desse pecado em que também incorre (mais adiante, no v.119, Dante chama o seu orgulho de “grande tumor” (gran tumor) -- uma metáfora -- que é esvaziado pela conversa mantida com o seu próximo interlocutor).

            Um dos espíritos então “se torceu, sob o peso incômodo,/ e me viu e me reconheceu e me chamou” (si torse sotto il peso che li ‘mpaccia,/ e videmi e conobbemi e chiamava- v. 75-76). Diferentemente de Omberto, esse espírito pode torcer o rosto, significando que seu peso, quer dizer, sua culpa, é menor, ou seja que ele foi menos orgulhoso que Omberto (note-se, de passagem, o polissíndeto do v. 76). O penitente em questão é um amigo de Dante chamado Oderisi, “glória de Agobbio e daquela arte/ chamada em Paris iluminura” (l’onor d’Agobbio e l’onor di quell’ arte/ ch’alluminar chiamata è in Parisi- v. 80-81). Representa aqui o segundo tipo de orgulho, o do talento artístico. Mas Oderisi agora está mais humilde e afirma que os trabalhos de Franco Bolognese (um seu discípulo) são “mais risonhos” (più ridon- v. 82) que os seus. Da mesma forma, ele tem agora uma visão crítica com relação à fama pela qual ansiava durante sua vida terrena:

Oh vana gloria de l’umane posse!
com’ poco verde in su la cima dura,
se non è giunta da l’etati grosse!    (XI, 91-93)

Ó glória vã dos poderes humanos!/ como o verde no cume pouco dura,/ a menos que advenha um tempo mais grosseiro!.

(ou seja, a menos que advenha um tempo de decadência artística, que faça perdurar um pouco mais a fama do artista).      

            Mas normalmente há uma substituição constante de nomes. Oderisi cita o exemplo de Cimabue, na pintura, cuja glória, naquela época (em 1300, ano em que se passa a ação do poema)  tinha sido  obscurecida pela ascensão de Giotto (Dante usa aqui uma linguagem cavalheiresca quando diz que Cimabue se acreditava antes “ser o senhor do campo”, tener lo campo- v. 95) (2). No âmbito da literatura, ele refere-se ao poeta, amigo de Dante, Guido Cavalcanti que tomou o lugar de Guido Guinizzelli:

Così ha tolto l’uno a l’altro Guido
la gloria de la lingua; e forse è nato
chi l’uno e l’altro caccerà del nido.   (XI, 97-99)

Assim, um Guido tirou do outro/ a glória da língua; e talvez tenha nascido/ quem um e outro expulsará do ninho.

            Dante faz Oderisi mencioná-lo aqui (de modo indireto) como o maior poeta, que irá “expulsar do ninho” (cf. a metáfora implícita) aqueles dois Guidos!  Mas, ao mesmo tempo, ele está bem consciente da precariedade da glória humana, pois, como ainda diz Oderisi,

Non è il mondan romore altro ch’un fiato
di vento, ch’or vien quinci e or vien quindi,
e muta nome perché muta lato.      (XI, 100-102)

Não é o rumor mundano senão um sopro/ de vento, que ora vem daqui, ora dali,/ e muda o nome porque muda o lado.

            Segundo John D. Sinlair (3), Dante, nesta passagem, está exercendo uma espécie de ironia contra si mesmo. Ao mesmo tempo em que se mostra orgulhoso, ele reconhece em si esse pecado, e afirma que seu coração se enche de humildade, e esvazia um grande tumor (v. 119-120) com as palavras de Oderisi sobre a precariedade da glória humana.

            Isso é dito após Oderisi manifestar-se mais uma vez sobre o tema, ao falar de Provenzan Salvani, que ilustra o terceiro caso de orgulho, o do poder temporal:

La vostra nominanza è color d’erba,
che viene e va, e quei la dicolora
per cui ella esce de la terra acerba.   (XI, 115-117)

A vossa fama tem a cor da erva/ que vem e vai, e quem a descora/ também a fez sair da terra. 

(Há aqui uma referência implícita ao Sol, identificado como Deus em diversas passagens do poema). 

            “Toda a Toscana aclamou” (Toscana sonò tutta- v.110) Provenzan, chefe gibelino, poderoso em Siena, quando ele derrotou Florença; mas (como a fama é transitória) agora mal se ouve seu nome em sua cidade,

ond’ era sire quando fu distrutta
la rabbia fiorentina, che superba
fu a quel tempo sì com’ ora è putta.   (XI, 112-114)

em que era senhor, quando foi destruído/ o furor de Florença, tão soberba/ naquele tempo quanto agora é puta.

            Como se vê, também no “Purgatório” Dante usa linguagem mais grosseira  ou chula, como ocorria no “Inferno” (4).

            Dante-personagem se admira que Provenzan já esteja no lugar em que está. Esperava que ele ainda estivesse no Antepurgatório, pois em baixo deveria ficar “antes que passe um tempo igual ao que viveu” (prima che passi tempo quanto visse- v. 131).  Mas sua ascensão foi antecipada por um episódio da vida dele em que demonstrou humildade. Conforme os comentaristas, agiu como mendigo em praça de Siena, onde era senhor, pedindo a colaboração financeira da população a fim de levantar o valor do resgate que livraria um amigo não só da prisão (de Charles d’Anjou) como de sua condenação à morte. Na linguagem do poema, ele postou-se na praça, “deixando de lado a vergonha” (ogne vergogna diposta, /.../- v. 135)

e lì, per trar l’amico suo di pena,
ch’ e’ sostenea ne la prigion di Carlo,
si condusse a tremar per ogne vena.   (XI, 136-138)

e ali, para tirar seu amigo da pena/ que sofria na prisão de Carlos,/ atuou de modo a tremer por toda veia.

            No final, Oderisi faz uma breve previsão sobre Dante, referindo-se  ao seu exílio próximo, a ser decretado pelos florentinos (“seus vizinhos”):

Più non dirò, e scuro so che parlo;
ma poco tempo andrà, che ‘ tuoi vicini
faranno sì che tu potrai chiosarlo.   (XI, 139-141)

Mais não direi, e sei que falo obscuramente; / mas dentro de pouco tempo teus vizinhos/ farão de modo que poderás glosá-lo.   

            Dante então poderá glosar o episódio, pois entenderá melhor a situação, uma vez que também “mendigará” (por pão e abrigo) no exílio...


NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.343

(2) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri- “La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini,  2013-  p.514

(3) SINCLAIR, John D.-- “The Divine Comedy of Dante Alighieri” with translation and comment by John D. Sinclair- II. Purgatorio-  New York: Oxford University Press, 1961- p.152


(4) Cf. VAN ERVEN, Domingos—“Linguagem Chula na Divina Comédia/ Inferno” em http://dvetextos.blogspot.com.br/ , postado em 13 de março de 2009


Salvador Dalí 

Nenhum comentário:

Postar um comentário