PURGATÓRIO
Canto IX
Ao final deste
Canto Dante vai entrar no Purgatório propriamente dito. Até aqui ele, guiado
por Virgílio (e também por Sordello, mais recentemente), vem percorrendo o
Antepurgatório, no qual estão os que se
arrependeram tardiamente. Essa categoria abrange, como vimos, os
excomungados (Canto III), os indolentes (Canto IV), os que tiveram morte
violenta (Cantos V e VI) e os monarcas negligentes (Cantos VII e VIII). Como demoraram
para se voltar a Deus, assim também deverão agora aguardar ali, por um
determinado período de tempo (variável, dependendo do caso), o momento certo de
entrar no Purgatório propriamente dito para
iniciar a sua purificação.
Gustave Doré |
Este Canto IX
inicia tratando do sonho que Dante teve, em cuja narração ocorrem várias referências
mitológicas. Titão é mencionado logo de início, um mortal amado pela Aurora,
que pediu aos deuses imortalidade para ele, mas esqueceu de pedir também juventude
eterna, de modo que envelhecia constantemente (por isso é chamado “velho” Titão
no v. 1). A interpretação dos versos iniciais é controvertida entre os
estudiosos do poema. Mas na realidade, esses versos servem apenas para indicar
que horas eram então ali: quase 9:00 da noite (do domingo de Páscoa de 1300). Pela
referência à aurora (personalizada) e à constelação do Escorpião
(indiretamente, por meio da menção a um “frio
animal que com a cauda ataca os homens” (freddo animale/ che con
la coda percuote la gente- v. 5-6), no hemisfério Norte, deduz-se a hora no hemisfério oposto (1).
Para essa definição da hora, leva-se em conta também que a noite abrange doze
horas, iniciando às 6:00, às quais devem ser adicionadas mais três horas,
aproximadamente, conforme estes versos:
e la
notte, de’ passi con che sale,
fatti avea due nel loco ov’ eravamo,
e ‘l terzo già chinava in giuso l’ale; (IX, 7-9)
e a
noite em sua marcha ascendente,/ já dera dois passos no lugar onde estávamos,/ e
já abaixava as asas para o terceiro;
(Note-se a
metáfora implícita associada à noite, pois esta tem asas...)
Dante, vencido
pelo sono, deita na grama e adormece. E sonha. No relato desse sonho ocorrem mais três
referências mitológicas, uma indireta e as outras duas explícitas. A primeira,
quando se refere à hora, “perto da manhã,
em que a andorinha/ começa seus tristes lamentos,/ talvez em memória de seus
antigos sofrimentos”:
Ne l’ora che comincia i tristi lai
la rondinella presso a la mattina,
forse a memoria de’ suo’ primi guai (IX, 13-15)
O poeta faz aqui
uma alusão indireta à história de Filomela e Prócris, uma transformada em
andorinha e a outra em rouxinol. Filomela fora violentada pelo cunhado Tereus,
marido de Prócris, que depois cortou a sua língua para que ela não contasse o
que acontecera. Para vingarem-se dele, as duas deram de comer a Tereus a carne
de seu próprio filho, que ao saber disso tentou matá-las. No final da história,
os três são transformados em pássaros, inclusive Tereus (2). Mais adiante, ocorrem as duas referências
mitológicas explícitas, que são feitas a Ganimedes, no v.22, e a Aquiles, no v.
34.
Naquela hora “perto
da manhã”, no sonho, diz Dante, uma águia
“com penas de ouro” (con penne d’oro- v.20) desceu do céu como um raio e o arrebatou para o alto, até a
esfera do fogo (entre a Terra e a Lua, conforme a cosmovisão do poema). Dante
sentiu-se como Ganimedes, filho do rei de Troia, que foi levado por uma águia “para o sumo consistório” (al
sommo consistoro- v. 24), i.e. o Olimpo, onde viviam os deuses, pois Júpiter, que se impressionara
com a beleza do efebo, queria-o junto deles (3).
G.Doré- A águia |
O calor na
esfera de fogo era tanto que fez Dante acordar-se. E ele diz que se sentiu
então como Aquiles, após voltar a si, sem saber onde estava. Segundo a lenda, a
mãe de Aquiles o furtou do centauro Quíron, seu tutor, e o levou dormindo para a
ilha de Squiros. A mãe, agindo assim, procurava evitar que se cumprisse uma
profecia que previa a sua morte na guerra de Troia. Todavia, mais tarde Aquiles
seria convencido pelos gregos Ulisses e Diomedes a dela participar (4). E nela
pereceria.
Ao acordar,
Dante não sabe onde está, como foi dito. Virgílio está ao seu lado mas Sordello
e os outros (Nino Visconti, Conrado Malaspina) ficaram para trás. O autor de “Eneida” lhe diz que está agora junto à entrada do Purgatório (Tu se’
omai al purgatorio junto- v. 49). Virgílio explica que, enquanto dormia, veio uma dama do céu e
assim falou: “Eu sou Lucia;/ deixai-me
arrebatar este que dorme;/ assim o ajudarei na sua via! “ (“I son’
Lucia; / lasciatemi pigliar costui che dorme;/ sì l’ agevolerò per la sua via”- v. 55-57). Ela o trouxe para cima, quando o dia clareou,
e Virgílio seguiu seus passos. Trata-se de Santa Lúcia, por quem Dante era
devoto (a mesma que anteriormente, no início da “Comédia” atendera ao apelo de Maria e fora falar com
Beatriz, que enviou Virgílio para servir de guia dele, então perdido na “selva
escura” do pecado). Lúcia aqui representa a Graça divina, que, na visão do
poeta, é oferecida aos homens que buscam a sua salvação...
Os versos
seguintes, até o final do Canto, exploram diversos aspectos da alegoria do
sacramento da penitência, um requisito necessário para a entrada de Dante no
Purgatório. Para descrevê-los, o poeta faz uma pausa no andamento do Canto para
dirigir-se diretamente ao leitor, recurso que, aliás, ele usa com certa
frequência, o que torna o poema menos formalista e mais cativante:
Lettor, tu vedi ben com’io innalzo
la mia matera, e però con più arte
non ti maravigliar s’io la rincalzo. (IX, 70-72)
Leitor,
bem vês como eu elevo agora/ minha matéria; e por isso não te admires/ se eu a
escoro com mais arte.
Dante,
acompanhado de Virgílio, aproxima-se daquilo que lhe pareceu antes “uma muralha fendida por uma brecha” (pur come
un fesso che muro diparte- v. 75) e constata o que vê:
vidi una porta, e tre gradi di sotto
per
gire ad essa, di color diversi,
e un
portier ch’ancor non facea motto.
E come l’occhio più e più v’apersi,
vidil seder sovra l’grado sovrano,
tal ne la faccia ch’io non lo soffersi;
e una spada
nuda avëa in mano,
che reflettëa i raggi sì ver’ noi,
ch’io dirizzava spesso il viso in
vano. (IX, 76-84)
vi uma
porta, e abaixo dela três degraus/ para acessá-la, de cores diversas, e um
porteiro que ainda não falara.
E como
os olhos mais e mais abri,/ eu o vi sentado sobre o degrau mais alto,/ o brilho
do seu rosto era tal que eu não podia suportar;
e uma
espada nua tinha na mão/ que refletia tanto os raios sobre nós/ que em vão
várias vezes tentei sustentar o olhar.
(Note-se a sonoridade do v. 80 que se apoia
numa aliteração)
Esse “porteiro”
é, na realidade, o anjo guardião da porta de entrada do Purgatório. Ele, na
interpretação dos comentaristas, é o representante da Igreja, pois afirma que
detém as chaves de Pedro (“De Pedro as
recebi”- Da Pier le tegno; /.../- v. 127), trazendo à lembrança as palavras de
Cristo a S. Pedro, conforme o Evangelho de Mateus (5). Dante, por mais que
quisesse, não conseguia sustentar o olhar em direção do anjo, dado o seu brilho
ofuscante e também da espada que tinha em mão, a qual refletia os raios do Sol
-- símbolo de Deus. A Igreja assim reflete a vontade de Deus e a sua justiça, esta
representada pela espada.
G. Doré- A entrada do Purgatório |
O anjo guardião
detém na realidade duas chaves, uma de ouro e outra de prata (L’una
era d’oro e l’altra era d’argento- v. 118), sendo a primeira interpretada como a do poder de absolvição
dado à Igreja e a outra, a do discernimento daquele que usa tal poder, i.e. o padre-confessor.
O anjo
interpela os dois poetas, perguntando pela sua “escolta” (aparentemente os
espíritos, para ali entrarem, devem ser acompanhados por outros anjos).
Virgílio explica que foi uma dama do céu quem lhes indicou, há pouco, o local
daquela porta. O porteiro então, de modo cortês, pede para eles avançarem.
Dante narra
como são os três degraus que antecedem a soleira da porta: o primeiro “era de um mármore branco tão polido/ que eu
me espelhava nele tal como pareço” (/.../ e lo scaglion primaio/
bianco marmo era sì pulito e terso,/ ch’io mi specchiai in esso qual io paio- v.
94-96); o
segundo “era mais escuro que escarlate/
duma pedra áspera e crestada, com fissuras” (Era il secondo tinto più
che perso,/ d’una petrina ruvida e arsiccia/ crepata /.../- v. 97-99) e o terceiro, o mais
alto, “me pareceu ser pórfiro, tão
flamejante/ como sangue que das veias esguicha” (porfido
mi parea, sì fiammeggiante/ come sangue che fuor di vena spiccia- v. 101-102). Na interpretação
usualmente aceita, esses degraus representam as três etapas do sacramento da
penitência, vale dizer, respectivamente, 1) o exame de consciência ou confissão
(por isso o degrau é branco e o espelha); 2) a contrição (por isso o degrau é escuro e de pedra áspera) e 3) a satisfação em obras
por parte do pecador, ou a penitência propriamente dita (por isso o degrau é
associado ao seu sangue) (6). Sobre esse terceiro degrau, o anjo (a Igreja)
pousava os pés, sentado que estava na soleira da porta, que pareceu a Dante
pedra de diamante.
Seguindo o
conselho de Virgílio, Dante pede para o anjo lhe abrir a porta (pois é
necessário que o pecador queira submeter-se a tal purificação) depois de bater três vezes no peito, fazendo
o seu “mea culpa”. O anjo então escreve
com a ponta de sua espada sete P (de peccatum)
em sua testa, para significar os sete pecados capitais, os quais serão
removidos à medida que Dante avançar na subida da montanha do Purgatório. A
esses sete pecados -- que são orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e
luxúria – corresponderão os diversos níveis da montanha a serem
percorridos. O pecador deve ser bem
firme em sua decisão de aí entrar pois “retorna
para fora quem olhar para trás” (che di fuor torna chi ‘n dietro
si guata- v. 132), conforme afirmação do anjo. “Olhar para trás” é interpretado
como incorrer nos pecados da vida pregressa.
O anjo então retira as duas chaves de
sua vestimenta (que é cor de cinza ou de terra seca, símbolo da humildade) e
com elas abre para os dois poetas a porta do Purgatório. Ao girar seus pinos nos gonzos, ela produz um som estrondoso. Mas logo em seguida Dante ouve,
vindo de dentro, o que lhe pareceu um “Te
Deum laudamus” (“Louvamos a ti, ó Deus”) “em voz unida a doces sons” (/.../ in voce mista al dolce
suono- v.
141). Esse é um hino religioso cantado para dar graças ao Senhor (7).
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p. 336-337; MUSA, Mark-- “Dante-
The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes,
and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 100-101.
(2) MANDELBAUM, Allen- op cit, p. 337
(3) LONGNON, Henri— “Dante- La Divine Comédie”.
Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier,
1951- p. 586.
(4)
Id., ib..- p. 586
(5) Cf. Evangelho de Mateus (in “Bíblia
Sagrada”- trad. João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1994. Mateus 16:18: “/.../
tu és Pedro, e sobre essa pedra edificarei a minha igreja”. Mateus 16:19: “Eu te darei as chaves do reino dos céus; tudo
o que ligares na terra, será ligado nos céus e tudo o que desligares na terra,
será desligado nos céus”. Citado
por MUSA, Mark- “Dante-
The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction,
Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p.106.
(6) MANDELBAUM, Allen- op cit, p. 338; MUSA, Mark—op. cit, p. 105.
(7) MANDELBAUM, Allen- op cit, p.339
William Blake |
Salvador Dalí |
Amos Nattini |
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