segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Canto XIII



PURGATÓRIO


Canto XIII

           
            Os dois poetas chegam à segunda cornija que cinge a  montanha do Purgatório. Como esta tem forma de cone, não é de admirar que “seu giro se complete antes” (v. 6) que o da primeira.  Quanto mais altas, as cornijas vão se tornando menos amplas. Nesta segunda, diferentemente da anterior, não há nada esculpido na encosta ou no pavimento da via. Virgílio não encontra ninguém a quem pedir orientação (ele não conhece o Purgatório, só esteve antes no Inferno). Decide orientar-se pelo Sol, conforme esta apóstrofe (no poema, o Sol é associado a Deus):

“O dolce lume a cui fidanza i’ entro
per lo novo cammin, tu ne conduci,”
dicea, “come condur si vuol quinc’ entro.   (XIII, 16-18)

“Ó doce lume, em cuja confiança eu entro/ nesse novo caminho, conduz-nos”,/ dizia ele, “pois aqui se requer ser conduzido”.    

            Mais adiante, afirma: “sejam sempre teus raios nossos guias” (esser dien sempre li tuoi raggi duci- v.21).

            Depois de andar uma milha, os dois começam a ouvir os espíritos  que por ali voam fazendo “convites gentis à mesa do amor” (a la mensa d’amor cortesi inviti- v. 27), quer dizer, lembrando certas situações em que se manifestou o amor ao próximo, indicadas por três frases, citadas nos versos, extraídas da Bíblia ou da literatura clássica. As situações são deixadas apenas subentendidas por Dante-autor, mas explicitadas pelos comentaristas. O objetivo da sua evocação é enfatizar a virtude oposta à inveja, em que incorreram os penitentes que aqui estão. O pecado da inveja abrange não só a tristeza e o rancor pelo sucesso da outra pessoa como também a alegria pelo infortúnio dela...  

Giotto- As bodas de Caná. Capela Scrovegni, Pádua. 

A primeira das frases ouvidas pelos dois poetas é em latim-- “Vinum non habent” (“Eles não têm vinho”) (v.29), dita por Maria nas bodas de Caná. Isso fez com que Cristo realizasse seu primeiro milagre – a transformação de água em vinho – atendendo assim a esse ato de amor (caridade) de sua mãe (1). A segunda frase ouvida é “Eu sou Orestes” (I’ sono Oreste- v.32) e refere-se à grande amizade entre Orestes e Pilades, relatada por Cícero. Orestes fora condenado à morte. Na hora de execução da sentença, Pilades, para salvar a vida do amigo, disse ser ele Orestes, no que foi contestado pelo verdadeiro, que fez idêntica afirmação, a fim de que o amigo não morresse em seu lugar (2). A terceira frase que eles ouvem “Amai quem vos fez mal(“Amate da cui male aveste”- v. 36), pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha (3), recomenda aos cristãos ir além do mero amor ao próximo, amando até os próprios inimigos.  

            Virgílio explica a Dante que

/.../ “Questo cinghio sferza
la colpa de la invídia, e però sono
tratte d’amor le corde de la ferza.   (XIII, 37-39)

/.../ “Este giro açoita/ o pecado da inveja; mas as cordas/ do chicote são trançadas pelo amor ”.

            E o manda fixar bem o olhar para ver que há ali, ao longo da parede rochosa, muita gente sentada. Dante então “viu as sombras com mantos/ da mesma cor da pedra” (/.../ e vidi ombre con manti/ al color de la pietra non diversi- v.47-48). Aproximando-se mais, ouvem-nos clamarem a Maria, para que rogue por eles, e também aos Santos (trata-se da Litania de Todos os Santos, segundo os comentaristas) (4). 


G. Doré- Os invejosos
             Na sequência, Dante se choca com o que vê, e isso o leva às lágrimas (v. 57): as sombras, sentadas, lhe “pareciam estar cobertas de vil cilício” (5) (Di vil ciliccio mi parean coperti- v. 58), umas apoiadas nas outras ou na encosta da montanha, e se agrupavam ali como cegos a mendigar junto às igrejas em dias de perdão(v.62) (6), pois tinham as pálpebras costuradas com fio de ferro:

E come a li orbi non approda il sole,
così a l’ombre quivi, ond’ io parlo ora,
luce del ciel di sé largir non vole;

ché a tutti un fil di ferro i cigli fóra
e cusce sì, come a sparvier selvaggio
si fa però che queto non dimora.    (XIII, 67-72)

E como o sol não chega até os cegos,/ também aqui, às sombras de quem eu falo agora,/ a luz do céu não quer mostrar-se;
pois a todos um fio de ferro fura as pálpebras/ e as costura, assim como se faz com o gavião selvagem/ que se recusa a ficar quieto.   

             Aplica-se então, também no Purgatório, a “lei do contrapasso” já aplicada no Inferno: a correspondência da punição com o pecado cometido. Na primeira cornija, os orgulhosos, que mantiveram em vida postura altaneira, são agora obrigados a olhar para o chão, devido ao peso que carregam. E os invejosos desta segunda cornija, que incorreram em seu pecado ao ver o sucesso (ou o insucesso) dos outros -- invídia, inveja, deriva de vedere ou “ver” (7) --,  não podem enxergar, enquanto durar o período de purgação. Dante compara a situação deles à do gavião durante seu adestramento, quando se adotava a técnica de costurar-lhe as pálpebras, conforme a falcoaria da época.  

            Virgílio estava do lado “da cornija onde se pode cair”, que não contava com nenhuma proteção, e Dante do lado dos penitentes, junto à encosta:

da l’altra parte m’ eran le divote
ombre, che per l’ orribile costura
premevan sì, che bagnavan le gote.   (XIII, 82-84)

do meu outro lado estavam as devotas sombras,/ que, pela horrível costura,/ choravam tanto que banhavam as faces  

            Ele então, autorizado por seu guia, dirige-se a essa “gente segura /.../ de ver o alto lume” (/.../ “O gente sicura /.../ di veder l’alto lume- v.85-86), perguntando se há entre eles alguma alma latina (=italiana), pois “se eu souber, talvez isso possa lhe ser útil” (e forse lei sarà buon s’i’ l’ apparo- v.93), quer dizer, poderá significar orações que abreviarão seu tempo no Purgatório...   

G.Doré- Sapia

            Responde-lhe alguém, que será identificado mais adiante como Sapia, nestes termos, reformulando a pergunta de Dante, para indicar que, na visão cristã, todos na terra são exilados da “pátria (ou cidade) verdadeira”, que é o céu:

“O frate mio, ciascuna è cittadina
d’una vera città; ma tu vuo’ dire
che vivesse in Italia peregrina.”    (XIII, 94-96)

Ó irmão meu, toda alma é cidadã/ da cidade verdadeira; mas tu queres dizer/ uma que vivesse exilada na Itália”.

            Dante vê uma alma que se destaca das outras, tem a aparência de quem espera, “o queixo levantava como um cego” (lo mento a guisa d’ orbo in sù levava- v. 102) (note-se a força visual desse verso, como ocorre com outros, desse Canto, que caracterizam os penitentes como cegos). Ela é de fato quem lhe respondeu antes. Identifica-se a partir do v. 106, em que diz que é de Siena. E mais adiante:

Savia non fui, avvegna che Sapìa
fossi chiamata, e fui de li altrui danni
più lieta assai che di ventura mia.     (XIII, 109-111)

Sábia não fui, embora Sapia/ fosse chamada, e me regozijei muito mais/ com os males alheios  do que com a minha boa fortuna.

(No v. 109, como se vê, Dante explora a semelhança formal entre o nome dela e o adjetivo).

            Ela fala mais sobre si, para que seu interlocutor veja como foi insana, “já descendo o arco de meus anos” (già discendendo l’arco d’i miei anni- v. 114). Ela pediu a Deus pela derrota de seus conterrâneos, gibelinos de Siena, então em luta “perto de Colle” (v.115), e regozijou-se com ela, quando ocorreu, deixando de temer Deus depois disso.  Nesses conterrâneos incluía-se Provenzan Salvani, mencionado no canto XI, de quem era tia e cuja ascensão ao poder invejara. Provenzan foi morto pelos guelfos florentinos na batalha de Colle di Val d’Elsa em 1269 (8).  

            Sapia reconciliou-se com Deus só no fim da vida. Ainda estaria no Antepurgatório se não fosse lembrada nas “santas orações” (sante orazione- v.128) de Pier Pettinaio. O verso de Dante apenas o menciona, mas o comentarista explica que ele era um comerciante de pentes, residente em Siena, com fama de santidade ao morrer  (9).

            No final do Canto, Sapia pergunta quem Dante é, que “tens os olhos soltos”,/ como creio, e falas respirando” (/.../ porti li occhi sciolti,/ sì com’ io credo, e spirando ragioni”- v. 131-132). Ele lhe diz que ainda é vivo, e que retornará para o Purgatório. Afirma que teme mais o tormento do primeiro terraço do que o deste em que estão, quer dizer, Dante reconhece em si culpa maior pelo pecado do orgulho do que da inveja.

            Como ainda retornará ao mundo dos vivos, ele diz a Sapia -- esse “espírito eleito” (spirito eletto- v. 143) – que ela deve pedir a ele se quiser “que eu mova / os mortais pés por ti na terra(/.../ ch’ i’ mova/ di là per te ancor li mortai piedi-  v. 143-144). Ela então pede as suas orações e também que ele -- se alguma vez pisar o solo da Toscana -- procure reabilitar-lhe o nome junto aos seus parentes. Dante os  encontrará “entre aquela gente vã” (/.../ tra quella gente vana- v. 151) de Siena (qualificativo justificado por dois episódios frustrados citados nos versos, o do porto de Talamone e o do rio subterrâneo Diana, em que a população dessa cidade depositou suas esperanças). A propósito, esse mesmo comentário depreciativo a respeito do povo da cidade rival de Florença já ocorreu no Canto XXIX do Inferno.   



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.347

(2) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.128

(3) Id. ib., p.128

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 348.   

(5) Cilício: “Pequena túnica ou cinto ou cordão, de crina, de lã áspera, às vezes com farpas de madeira, que, por penitência, se trazia vestido diretamente sobre a pele”. (AURÉLIO Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986- 2ª ed., rev. e ampl., p. 405).

(6) Segundo MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 348, esses “dias de perdão” eram dias festivos da Igreja, em que indulgências eram vendidas.

(7) SINCLAIR, John D.-- “The Divine Comedy of Dante Alighieri” with translation and comment by John D. Sinclair- II. Purgatorio-  New York: Oxford University Press, 1961- p.179

(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 348 e 344.   

(9) Id. ib, p, 348


Amos Nattini

Salvador Dalí








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