PURGATÓRIO
Canto XIII
Os dois poetas chegam à segunda cornija que cinge a montanha do Purgatório. Como esta tem forma
de cone, não é de admirar que “seu giro
se complete antes” (v. 6) que o da primeira. Quanto mais altas, as cornijas vão se tornando
menos amplas. Nesta segunda, diferentemente da anterior, não há nada esculpido
na encosta ou no pavimento da via. Virgílio não encontra ninguém a quem pedir
orientação (ele não conhece o Purgatório, só esteve antes no Inferno). Decide
orientar-se pelo Sol, conforme esta apóstrofe (no poema, o Sol é associado a
Deus):
“O dolce lume a cui fidanza i’ entro
per lo novo cammin, tu ne conduci,”
dicea, “come condur si vuol quinc’ entro. (XIII, 16-18)
“Ó doce
lume, em cuja confiança eu entro/ nesse novo caminho, conduz-nos”,/ dizia ele,
“pois aqui se requer ser conduzido”.
Mais adiante, afirma: “sejam sempre teus raios nossos guias” (esser
dien sempre li tuoi raggi duci- v.21).
Depois de andar
uma milha, os dois começam a ouvir os espíritos que por ali voam fazendo “convites gentis à mesa do amor” (a la mensa d’amor
cortesi inviti- v. 27), quer dizer, lembrando certas situações em que se manifestou o
amor ao próximo, indicadas por três frases, citadas nos versos, extraídas da
Bíblia ou da literatura clássica. As situações são deixadas apenas subentendidas
por Dante-autor, mas explicitadas pelos comentaristas. O objetivo da sua
evocação é enfatizar a virtude oposta à inveja, em que incorreram os penitentes
que aqui estão. O pecado da inveja abrange não só a tristeza e o rancor pelo
sucesso da outra pessoa como também a alegria pelo infortúnio dela...
Giotto- As bodas de Caná. Capela Scrovegni, Pádua. |
A primeira das frases ouvidas pelos dois
poetas é em latim-- “Vinum non habent”
(“Eles não têm vinho”) (v.29), dita por Maria nas bodas de Caná. Isso fez com
que Cristo realizasse seu primeiro milagre – a transformação de água em vinho –
atendendo assim a esse ato de amor (caridade) de sua mãe (1). A segunda frase
ouvida é “Eu sou Orestes” (I’ sono
Oreste- v.32)
e refere-se à grande amizade entre Orestes e Pilades, relatada por Cícero. Orestes
fora condenado à morte. Na hora de execução da sentença, Pilades, para salvar a
vida do amigo, disse ser ele Orestes, no que foi contestado pelo verdadeiro, que
fez idêntica afirmação, a fim de que o amigo não morresse em seu lugar (2). A
terceira frase que eles ouvem “Amai quem
vos fez mal” (“Amate da cui male aveste”- v. 36), pronunciadas por Cristo no Sermão da
Montanha (3), recomenda aos cristãos ir além do mero amor ao próximo, amando
até os próprios inimigos.
Virgílio
explica a Dante que
/.../ “Questo cinghio sferza
la colpa de la invídia, e però sono
tratte d’amor le corde de la ferza. (XIII, 37-39)
/.../ “Este
giro açoita/ o pecado da inveja; mas as cordas/ do chicote são trançadas pelo
amor ”.
E o manda fixar
bem o olhar para ver que há ali, ao longo da parede rochosa, muita gente
sentada. Dante então “viu as sombras com
mantos/ da mesma cor da pedra” (/.../ e vidi ombre con manti/ al
color de la pietra non diversi- v.47-48). Aproximando-se mais, ouvem-nos clamarem a Maria, para que
rogue por eles, e também aos Santos (trata-se da Litania de Todos os Santos, segundo
os comentaristas) (4).
G. Doré- Os invejosos |
Na sequência,
Dante se choca com o que vê, e isso o leva às lágrimas (v. 57): as sombras,
sentadas, lhe “pareciam estar cobertas de
vil cilício” (5) (Di vil ciliccio mi parean coperti- v. 58), umas apoiadas nas
outras ou na encosta da montanha, e se agrupavam ali como cegos a mendigar junto
às igrejas “em dias de perdão” (v.62) (6), pois tinham as pálpebras costuradas com fio de ferro:
E come a li orbi non approda il sole,
così a l’ombre quivi, ond’ io parlo ora,
luce del ciel di sé largir non vole;
ché a tutti un fil di ferro i cigli fóra
e cusce sì, come a sparvier selvaggio
si fa però che queto non dimora. (XIII, 67-72)
E como
o sol não chega até os cegos,/ também aqui, às sombras de quem eu falo agora,/
a luz do céu não quer mostrar-se;
pois a
todos um fio de ferro fura as pálpebras/ e as costura, assim como se faz com o
gavião selvagem/ que se recusa a ficar quieto.
Aplica-se então,
também no Purgatório, a “lei do contrapasso” já aplicada no Inferno: a
correspondência da punição com o pecado cometido. Na primeira cornija, os
orgulhosos, que mantiveram em vida postura altaneira, são agora obrigados a
olhar para o chão, devido ao peso que carregam. E os invejosos desta segunda
cornija, que incorreram em seu pecado ao ver
o sucesso (ou o insucesso) dos outros -- invídia, inveja, deriva de vedere ou “ver” (7) --, não podem enxergar, enquanto durar o período
de purgação. Dante compara a situação deles à do gavião durante seu
adestramento, quando se adotava a técnica de costurar-lhe as pálpebras, conforme
a falcoaria da época.
Virgílio estava
do lado “da cornija onde se pode cair”,
que não contava com nenhuma proteção, e Dante do lado dos penitentes, junto à
encosta:
da l’altra parte m’ eran le divote
ombre, che per l’ orribile costura
premevan
sì, che bagnavan le gote. (XIII, 82-84)
do meu outro
lado estavam as devotas sombras,/ que, pela horrível costura,/ choravam tanto
que banhavam as faces
Ele então,
autorizado por seu guia, dirige-se a essa “gente
segura /.../ de ver o alto lume” (/.../ “O gente sicura /.../ di veder
l’alto lume- v.85-86), perguntando se há entre eles alguma alma latina (=italiana), pois “se eu souber, talvez isso possa lhe ser útil”
(e forse lei sarà buon s’i’ l’ apparo- v.93), quer dizer, poderá
significar orações que abreviarão seu tempo no Purgatório...
G.Doré- Sapia |
Responde-lhe
alguém, que será identificado mais adiante como Sapia, nestes termos,
reformulando a pergunta de Dante, para indicar que, na visão cristã, todos na
terra são exilados da “pátria (ou cidade) verdadeira”, que é o céu:
“O frate mio, ciascuna è cittadina
d’una vera città; ma tu vuo’ dire
che vivesse in Italia peregrina.” (XIII, 94-96)
“Ó
irmão meu, toda alma é cidadã/ da cidade verdadeira; mas tu queres dizer/ uma
que vivesse exilada na Itália”.
Dante vê uma
alma que se destaca das outras, tem a aparência de quem espera, “o queixo levantava como um cego” (lo
mento a guisa d’ orbo in sù levava- v. 102) (note-se a força visual desse verso, como ocorre com outros,
desse Canto, que caracterizam os penitentes como cegos). Ela é de fato quem lhe
respondeu antes. Identifica-se a partir do v. 106, em que diz que é de Siena. E
mais adiante:
Savia non fui, avvegna che Sapìa
fossi chiamata, e fui de li altrui danni
più lieta assai che di ventura mia. (XIII, 109-111)
Sábia
não fui, embora Sapia/ fosse chamada, e me regozijei muito mais/ com os males alheios do que com a minha boa fortuna.
(No v. 109, como se vê, Dante explora a semelhança formal entre
o nome dela e o adjetivo).
Ela fala mais
sobre si, para que seu interlocutor veja como foi insana, “já descendo o arco de meus anos” (già discendendo l’arco
d’i miei anni- v. 114). Ela pediu a Deus pela derrota de seus conterrâneos, gibelinos
de Siena, então em luta “perto de Colle”
(v.115), e regozijou-se com ela, quando ocorreu, deixando de temer Deus depois
disso. Nesses conterrâneos incluía-se Provenzan
Salvani, mencionado no canto XI, de quem era tia e cuja ascensão ao poder
invejara. Provenzan foi morto pelos guelfos florentinos na batalha de Colle di
Val d’Elsa em 1269 (8).
Sapia
reconciliou-se com Deus só no fim da vida. Ainda estaria no Antepurgatório se
não fosse lembrada nas “santas orações”
(sante orazione- v.128) de Pier Pettinaio. O verso de Dante apenas o menciona, mas o
comentarista explica que ele era um comerciante de pentes, residente em Siena,
com fama de santidade ao morrer (9).
No final do
Canto, Sapia pergunta quem Dante é, que “tens
os olhos soltos”,/ como creio, e falas respirando” (/.../ porti
li occhi sciolti,/ sì com’ io credo, e spirando ragioni”- v. 131-132). Ele lhe diz que ainda
é vivo, e que retornará para o Purgatório. Afirma que teme mais o tormento do
primeiro terraço do que o deste em que estão, quer dizer, Dante reconhece em si
culpa maior pelo pecado do orgulho do que da inveja.
Como ainda
retornará ao mundo dos vivos, ele diz a Sapia -- esse “espírito eleito” (spirito eletto- v. 143) – que ela deve pedir a
ele se quiser “que eu mova / os mortais
pés por ti na terra” (/.../ ch’ i’ mova/ di là per te ancor li mortai piedi- v. 143-144). Ela então pede as suas orações e também
que ele -- se alguma vez pisar o solo da Toscana -- procure reabilitar-lhe o nome
junto aos seus parentes. Dante os encontrará “entre aquela gente vã” (/.../ tra quella gente vana- v. 151) de Siena
(qualificativo justificado por dois episódios frustrados citados nos versos, o
do porto de Talamone e o do rio subterrâneo Diana, em que a população dessa
cidade depositou suas esperanças). A propósito, esse mesmo comentário depreciativo
a respeito do povo da cidade rival de Florença já ocorreu no Canto XXIX do
Inferno.
NOTAS
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.347
(2)
CIARDI, John- “Dante- The
Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.128
(3) Id.
ib., p.128
(4)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit,
p. 348.
(5) Cilício: “Pequena túnica ou cinto ou
cordão, de crina, de lã áspera, às vezes com farpas de madeira, que, por
penitência, se trazia vestido diretamente sobre a pele”. (AURÉLIO Novo
Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986- 2ª ed.,
rev. e ampl., p. 405).
(6) Segundo MANDELBAUM, Allen- “The Divine
Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 348, esses “dias de perdão” eram
dias festivos da Igreja, em que indulgências eram vendidas.
(7) SINCLAIR, John D.-- “The Divine Comedy of Dante Alighieri” with
translation and comment by John D. Sinclair- II. Purgatorio- New York: Oxford University Press, 1961- p.179
(8)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit,
p. 348 e 344.
(9) Id.
ib, p, 348
Amos Nattini |
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