terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Canto VIII

PURGATÓRIO


Canto VIII


            O Canto abre com estes belos versos, em que Dante mobiliza seus recursos poéticos para assim caracterizar o final do dia:

Era già l’ora che volge il disio
ai navicanti e ‘ntenerisce il core
lo dì c’han detto ai dolci amici addio;

e che lo novo peregrin d’amore
punge, se ode squilla di lontano
che paia il giorno pianger che si more;  (VIII, 1-6)

Era já a hora em que a saudade se volta/ aos navegantes e enternece seu coração/ no dia em que deram adeus aos amigos queridos;
e em que o novato viajante punge/ de amor, se ouve sino ao longe,/ que parece prantear o dia agonizante;

            Note-se não só a melancolia das evocações líricas (pela separação dos amigos e da terra natal ou pela morte do dia) mas também a sonoridade dos versos, em especial a do v. 3, notável pela alternância de sons abertos e fechados e a frequente incidência das consoantes  d e t , que lhe dão um ritmo musical cativante.  

            Nesse início do Canto a atenção de Dante-personagem é atraída para um espírito que começa a cantar – logo seguido por outros, todos “com os olhos voltados para  as esferas celestiais” (avendo li occhi a le superne rote- v.18) -- um hino religioso apropriado àquela hora do dia  (que começa com os dizeres em latim “Te lucis ante terminum ”, ou “Antes do fim do dia”).  Como o “Salve, Regina” citado anteriormente, esse hino  é rezado  à noite, após as vésperas, nas horas canônicas da Igreja Católica (suas “completas”). No hino, os devotos pedem a Deus que os defenda das tentações especialmente sob a forma de maus sonhos (1). Em seguida, os espíritos se calam e, olhando para o alto, ficam na expectativa de algo que, eles sabem, vai acontecer. 

Amos Nattini

E então descem do céu dois anjos, de cabeças louras, com as vestes e asas verdes (a cor da esperança). Mas Dante não consegue ver-lhes os rostos. Seus olhos ficam ofuscados por essa visão. Eles portam espadas flamejantes, e colocam-se entre um lado e outro do bando de espíritos, visando defendê-los da serpente (ou de Satã) que em breve chegará, como informa Sordello. Dante fica atemorizado por isso e se aproxima mais de Virgílio:

Ond’io, che non sapeva per qual calle,
mi volsi intorno, e stretto m’accostai,
tutto gelato, a le fidate spalle.   (VIII, 40-42)

Ao que eu, sem saber qual seu caminho,/ olhei em torno, e me acheguei,/ todo gelado, aos ombros confiáveis.

            As espadas dos anjos são “truncadas e privadas de suas pontas” (tronche e private de le punte sue- v. 27), talvez porque não serão efetivamente usadas. Bastará a presença dos anjos ali para que a serpente seja expulsa. Esta  representaria uma ameaça aos espíritos do Antepurgatório apenas pela introdução do mal em seus sonhos, ou seja, pelo inconsciente, uma vez que sua consciência estava bem determinada a fazer a ascensão espiritual, não estando mais sujeita às tentações...(2)

            Andando alguns passos para baixo, no vale, os três poetas ficam mais próximos dos espíritos. Um deles fita Dante atentamente, como se quisesse reconhecê-lo.

Ver’ me si fece, e io ver’ lui mi fiei:
giudice Nin gentil, quanto mi piacque
quando ti vidi non esser tra’ rei!   (VIII, 52-54)

Ele avançou para mim, e eu, para ele:/ nobre juiz Nino, quanto me agradou/ quando vi que não estavas entre os réus!

            Trata-se do guelfo Nino Visconti, juiz de Gallura na Sardenha e neto do Conde Ugolino della Gherardesca, personagem do Canto XXXIII do Inferno (3).  Dante, que devia ter sido amigo de Nino, rejubila-se com o fato dele ter vindo para o Purgatório, diferentemente do avô.  

            Quando Dante diz a Nino que está ainda “na primeira vida” (prima vita- v.59) causa a maior admiração neste, que grita a alguém que estava ao seu lado: “Vem, Conrado!/ vem ver o que Deus, em sua graça, quis” (“Sù, Currado!/ vieni a veder che Dio per grazia volse”- v.65-66). Também Sordello, voltando-se para Virgílio, mostra-se admirado com esse fato.   

            Nino, depois, pede a Dante que, quando ele retornar ao nosso mundo, atravessando o oceano (“quando estiveres além das largas ondas”- quando sarai di là da le larghe onde- v.70) -- lembremo-nos que o Purgatório é uma montanha situada numa única ilha do hemisfério Sul -- solicite a sua filha Giovanna orações pela sua alma. Ele não pode contar com sua viúva:

Non credo che la sua madre più m’ami,
poscia che trasmutò le bianche bende,
le quai convien che, misera, ancor brami.   (VIII, 73-75)

Não creio que sua mãe ainda me ame/ depois que deixou os brancos véus/ que a pobre vai querer de volta.  

            Os comentaristas informam que os “brancos véus” eram então sinal de luto da viúva. E que ela se casaria novamente, mas seu novo marido passaria por muitos infortúnios, afetando assim a vida do casal, razão por que “a pobre vai querer de volta” os véus, i.e. retornar à situação anterior (4).  Nos versos seguintes Dante faz, pela boca de Nino, este lamento romântico:

Per lei assai di lieve si comprende
quanto in femmina foco d’amor dura,
se l’occhio o ‘l tatto spesso non l’accende.   (VIII, 76-78)

Por ela (a viúva) facilmente se compreende/ quanto dura, na mulher, o fogo do amor,/ se os olhos ou o tato não o reacendem com frequência.

            Depois, Virgílio, vendo Dante fitar o céu, lhe pergunta: “Filho, o que olhas lá em cima?” (Figliuol, che là sù guarde?”- v.88), ao que ele responde:  “Aquelas três tochas/ pelas quais o polo de cá todo ele arde” ( “A quelle tre facelle/ di che ‘l polo di qua tutto quanto arde”- v.89-90). Virgílio então lhe diz:

/.../ “Le quattro chiare stelle
che vedevi staman, son di là basse,
e queste son salite ov’ eran quelle”.   (VIII, 91-93)

/.../ As quatro estrelas brilhantes/ que viste esta manhã baixaram/ e estas três outras subiram para onde elas estavam.

            Em sua alegoria, Dante salienta aqui a importância, na subida da montanha do Purgatório, das três virtudes teologais (fé, esperança e caridade), que se impõem sobre as virtudes pagãs, as quatro virtudes cardeais (prudência, justiça, coragem e temperança).       

            Enquanto Virgílio falava, Sordello puxa-o para si e lhe aponta a serpente (chamada mais adiante “lista do mal”- la mala striscia- v. 100)  que avança pela grama e flores —“Vede lá o nosso adversário!” (“Vedi là ‘l nostro avversaro”- v. 95).  Rapidamente, movem-se em sua direção “os falcões celestiais” (li astor celestïali- v. 104), os dois anjos.  E a serpente foge, apenas “Sentindo fender o ar as verdes asas” (Sentendo fender l’aere a le verdi ali- v.106).

Doré- A serpente

            A partir daí, até o último verso, o Canto vai tratar de Conrado Malaspina (que se identifica no v. 118). Ele é aquele espírito a quem Nino se dirigiu antes, admirado, ao saber que Dante é vivo ainda. Conrado pede a Dante notícias de sua região, a de Val di Magra, pois, diz ele, “já fui poderoso lá” (già grande là era- v. 117). Dante então faz o elogio de sua família (gibelina). Embora nunca tenha estado naquela terra, conhece a fama de sua “gente honrada” (gente onrata- v. 128), que se orna “com o mérito da bolsa e da espada” (del pregio de la borsa e de la spada- v. 129), vale dizer, se honra pela liberalidade e valor militar. Conrado conclui o Canto fazendo uma “profecia” (estamos hipoteticamente em 1300). Diz, em outras palavras, que Dante, antes de sete anos, vai comprovar a verdade do que afirmou (com base na opinião alheia) por experiência própria. Na realidade, Dante nesses versos finais quer elogiar a generosidade da família de Franceschino Malaspina que o abrigou no exílio, no ano de 1306, em Lunigiana, no Val di Magra (5). Conrado se expressa da forma seguinte, na linguagem peculiar empregada pelo poeta (onde o “leito do Carneiro” corresponde à secção de Áries, no zodíaco): 

Ed elli:  “Or va; che ‘l sol non si ricorca
sette volte nel letto che ‘l Montone
con tutti e quattro i piè cuopre e inforca,

che cotesta cortese oppinïone
ti fia chiavata in mezzo de la testa
con maggior chiovi che d’altrui sermone,

se corso di giudicio non s’arresta”.   (VIII, 133-139)

E ele:  “Agora, vai, pois o sol não se deitará/ sete vezes no leito que o Carneiro/ cobre com todos os quatro pés/ antes que essa tua opinião cortês/ seja fixada na tua mente/ com pregos maiores do que os da fala dos outros--/ se Deus não parar o curso de seus decretos”.
     

NOTAS

(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 87;  cf. também AURÉLIO Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986- 2ª ed., rev. e ampl. (verbetes “completas” e “vésperas”)

(2) SINCLAIR, John D.-- “The Divine Comedy of Dante Alighieri” with translation and comment by John D. Sinclair- II. Purgatorio-  New York: Oxford University Press, 1961- p.115

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p. 335

(4) Id. ib, p. 335-336

(5) Id. ib, p. 336

  
Brasão dos Visconti


Brasão dos Malaspina


Salvador Dalí 

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