PURGATÓRIO
Canto VII
Após Virgílio
dizer quem era, o trovador Sordello -- que já se entusiasmara com o
recém-chegado pelo simples fato dele também ser de Mântua -- maravilha-se agora
por estar na presença de um tão grande poeta. E o saúda nestes termos:
“O gloria di Latin”, disse, “per cui
mostrò ciò che potea la lingua nostra,
o pregio etterno del loco ond’io fui, (VII, 16-18)
“Ó
glória dos latinos”, disse, “por quem/ a língua nossa mostrou tudo o que
podia,/ ó eterna honra da minha terra,”
G.Doré- Sordello e Virgílio |
Sordello quer
saber então de qual círculo do Inferno ele vem. Virgílio explica que, por um “poder do céu” (virtù
del ciel- v. 24),
percorreu todos os círculos, mas sua origem é o primeiro deles, o Limbo, assim
caracterizado:
Luogo è là giù non tristo di martìri,
ma di tenebre solo, ove i lamenti
non
suonan come guai, ma son sospiri. (VII,
28-30)
Há um
lugar lá embaixo, não triste pelos martírios,/ mas pelas sombras somente, onde
os lamentos/ não soam como ais mas como suspiros.
Para o Limbo
foram todos os que morreram antes da vinda de Cristo, o qual, conforme a
doutrina católica, abriu as portas do Céu para os seres humanos, fechadas pelo
pecado original. Para lá vão os pagãos,
inclusive as crianças inocentes. Diz
Virgílio:
Quivi sto io coi pargoli innocenti
dai denti morse de la morte avante
che fosser de l’umana colpa essenti (VII, 31-33)
Ali
estou eu com crianças inocentes/ mordidas pelos dentes da morte antes/ que
fossem da humana culpa isentos”
Note-se a metáfora
associada à morte, considerada implicitamente como uma fera, pois tem dentes
hostis.
Quando Cristo
morreu levou consigo para o Paraíso os que estavam no Limbo. Mas Virgílio, que
estava lá há pouco mais de 50 anos (uma vez que morreu em 19 a.C., no reinado do primeiro
imperador romano, Augusto) (1), não teve essa sorte:
Io son Virgilio; e per null’ altro rio
lo ciel perdei che per non aver fe’. (VII, 7-8)
Eu sou
Virgílio; e por nenhuma outra falta/ salvo a de não ter fé perdi o céu.
Na resposta a
Sordello, Virgílio diz:
Non per
far, ma per non fare ho perduto
a veder l’alto Sol che tu disiri
e che fu tardi per me conosciuto. (VII,
25-27)
Não por
fazer mas por não fazer perdi/ a visão do alto Sol que tu desejas / e que tarde
foi por mim conhecido.
Deus está assim
associado à imagem do Sol, ou da luz. Já vimos há pouco que na caracterização
do Limbo o autor da “Eneida” diz que ali é triste não porque haja tormentos mas
pelas “sombras”, i.e., pela ausência
da luz ou da visão de Deus.
S.Dalí- Sordello |
Virgílio pede a
Sordello que lhe indique o caminho para chegar mais depressa “lá onde o Purgatório verdadeiramente começa”
(là dove purgatorio ha dritto inizio- v.39). Eles ainda estão, como
se vê, no Antepurgatório. Sordello lhe informa
que não há um lugar fixo para os espíritos que no Purgatório expiam seus
pecados. Podem (durante o dia) mover-se à vontade. E oferece-se para ser seu
guia. Mas observa que não é possível subir à noite (v.44), quando o Sol se põe.
Essa lei do Purgatório reforça a associação da imagem antes referida. A
purificação dos espíritos -- expressa alegoricamente pela ascensão na montanha
-- só é possível com a luz do Sol, com a fé em Deus, ou melhor, com as três
virtudes teologais (fé, esperança e caridade). Apenas com as quatro virtudes
cardeais (prudência, justiça, coragem e temperança), possuídas pelos pagãos
justos, não é possível chegar ao Paraíso. Virgílio se deu conta disso tarde
demais...
Como o dia já
declina, Sordello propõe que eles passem a noite, descansando, num local
próximo, onde há almas apartadas que será interessante conhecer. Seguindo por um caminho irregular, de uma
saliência elevada da montanha eles avistam um vale de beleza estranha, cuja cor
das flores e grama supera o conjunto multicolorido de alguns refinados recursos
naturais de nosso mundo:
Oro e argento fine, cocco e biacca,
indaco, legno lucido e sereno,
fresco smeraldo in l’ora che si fiacca,
da l’erba e da li fior, dentr’ a quel seno
posti, ciascun saria di color vinto,
come dal suo maggiore è vinto il meno. (VII, 73-78)
Ouro e
prata fina, carmim e alvaiade,/ índigo, madeira clara e resplandecente,/ fresca
esmeralda na hora em que se parte,
se
colocados naquele vale seriam todos vencidos/ em sua cor pelas flores e a
grama,/ como o menor é vencido pelo maior.
A esses versos
relacionados ao sentido da visão, seguem-se outros, citados abaixo, que se
referem aos do olfato e da audição, pois mencionam o perfume “único e desconhecido” do vale, derivado
“da suavidade de mil odores”, e o “Salve, Regina” cantado pelos espíritos
que ali estão. Assim, nos versos 73-84, Dante busca evocar três dos nossos
cinco sentidos para melhor caracterizar essa região peculiar, estranha, do
segundo reino do mundo dos mortos.
Non avea pur natura ivi dipinto,
ma di soavità di milli odori
vi facea uno incognito e indistinto.
“Salve
, Regina” in sul verde e ‘n su’ fiori
quindi seder cantando anime vidi,
che per
la valle non parean di fuori. (VII, 79-84)
A
natureza ali não apenas pintara/ mas da suavidade de mil odores/ criava um
outro (odor), desconhecido e indistinto.
Sobre o
verde e sobre as flores/ vi espíritos sentados cantando “Salve, Regina”,/ que
não eram visíveis fora do vale.
G. Doré- O vale |
Nesse vale estão,
como se deduz pelas pessoas citadas nos versos seguintes, os príncipes e reis
que só se arrependeram no final da vida, dedicando toda ela a preocupações
outras, que não as de sua religião. São eles:
--o imperador Rodolfo de Absburgo, que “teria podido sanar as chagas que matam a Itália” (sanar
le piaghe c’hanno Italia morta- v. 95);
-o rei da Boêmia Ottokar,
pai de Venceslau: aquele, “nos
cueiros/ valia mais que Venceslau, seu filho/ barbudo, que se nutre de luxúria
e ócio” (/.../ ne le fasce/ fu meglio assai che Vincislao suo figlio/
barbuto, cui lussuria e ozio pasce- v. 100-102);
Rodolfo de Absburgo |
Ottokar da Boêmia |
--Felipe III o Audaz (ou o “de
nariz pequeno”, o nasetto- v. 103) e Henrique de Navarra. O primeiro “morreu fugindo e deflorando o lírio” (morì
fuggendo e disfiorando il giglio- v. 105). O lírio simboliza a França. Dante se refere aqui à sua
derrota fragorosa na guerra que empreendeu contra Pedro III de Aragão (2). Esses dois, Felipe e Henrique, “Pai e sogro são da peste de França” (Padre e
suocero son del mal di Francia- v. 109), i.e. pai e sogro de Felipe IV o Belo (1268-1314). Este monarca
é assim caracterizado porque Dante não o
perdoa por ser responsável pela morte de um papa (ainda que criticado por ele,
Bonifácio VIII) e tutelar outro, Clemente V, tão sob seu controle que
transferiu a sede do papado para Avignon em 1309, aí permanecendo até 1377 (3).
A seguir são
citados Pedro III de Aragão e Charles I
d’ Anjou, sendo que o primeiro “cingiu a corda de todas as virtudes” (d’ogne
valor portò cinta la corda- v. 114). Esses dois, que foram inimigos em vida, no Purgatório cantam
juntos o “Salve, Regina”. Ocorreu o
mesmo com Rodolfo e Ottokar, citados acima. Ottokar morreu em batalha contra o
primeiro, por não concordar com que ele assumisse o Sacro Império Germânico-Romano.
No Purgatório esses ex-inimigos compartilham a mesma esperança, vivendo em
harmonia e cantando juntos aquele hino religioso em que os devotos, neste “vale de lágrimas” (mencionado no hino,
uma associação ao local onde estão), pedem a intercessão de Maria para
auxiliá-los a ganhar o Paraíso.
São citados
ainda o jovem Alfonso III de Aragão e seus irmãos Jaime II rei de Aragão e
Frederico II rei da Sicília, filhos de Pedro III de Aragão. Se aquele jovem,
que morreu cedo, fosse (ainda) rei “bem
andava o valor de vaso em vaso” (ben andava il valor di vaso in
vaso- v. 117)
, o que não se pode dizer de seus irmãos. Dante, embora aceite a doutrina da origem
divina dos reis, não acha que os descendentes destes herdem necessariamente as suas
qualidades. Estas não são distribuídas de modo igual por Deus:
Rade volte risurge per li rami
l’umana probitate; e questo vole
quei che la dà, perché da lui si
chiami. (VII, 121-123)
Raras
vezes renasce pelos ramos/ a humana probidade; e isto quer/ Quem a dá, para que
se lhe peça.
Os últimos
governantes citados são:
--Henrique III de Inglaterra -“este tem em seus ramos melhor rebento” (questi
ha ne’ rami suoi migliore uscita- v.132) pois seu filho Eduardo I é
melhor governante que ele (4), ao contrário dos casos antes apontados, em que “a planta é menor que sua semente” (Tant’ è
del seme suo minor la pianta,/ quanto /.../ v. 127-128) (cf. o efeito de
paradoxo que Dante explora aqui);
--Guilherme VII, marquês de Monferrato. Ao tentar sufocar uma
rebelião em Alessandia, na região do Piemonte, Guilherme foi preso, e assim
mantido durante 17 meses, até morrer em 1292.
Seu filho, numa guerra de vingança mal sucedida contra Alessandria, envolveu Monferrato e Canavese (5). Por isso,
ele as faz (ainda) chorar, conforme o último verso do Canto (v. 136).
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p.332.
(2) Id.
ib, p. 333
(3) Id.
ib, p. 333. Cf também CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics,
2009- p. 68-69.
(4) CIARDI,
John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 70.
(5) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 334.
Amos Nattini |
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