quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Canto VII

PURGATÓRIO


Canto VII 


            Após Virgílio dizer quem era, o trovador Sordello -- que já se entusiasmara com o recém-chegado pelo simples fato dele também ser de Mântua -- maravilha-se agora por estar na presença de um tão grande poeta. E o saúda nestes termos:

“O gloria di Latin”, disse, “per cui
mostrò ciò che potea la lingua nostra,
o pregio etterno del loco ond’io fui,   (VII, 16-18)

“Ó glória dos latinos”, disse, “por quem/ a língua nossa mostrou tudo o que podia,/ ó eterna honra da minha terra,”    

G.Doré- Sordello e Virgílio

            Sordello quer saber então de qual círculo do Inferno ele vem. Virgílio explica que, por um “poder do céu” (virtù del ciel- v. 24), percorreu todos os círculos, mas sua origem é o primeiro deles, o Limbo, assim caracterizado:

Luogo è là giù non tristo di martìri,
ma di tenebre solo, ove i lamenti
non suonan come guai, ma son sospiri.  (VII, 28-30)

Há um lugar lá embaixo, não triste pelos martírios,/ mas pelas sombras somente, onde os lamentos/ não soam como ais mas como suspiros.

            Para o Limbo foram todos os que morreram antes da vinda de Cristo, o qual, conforme a doutrina católica, abriu as portas do Céu para os seres humanos, fechadas pelo pecado original.  Para lá vão os pagãos, inclusive as crianças inocentes.  Diz Virgílio:

Quivi sto io coi pargoli innocenti
dai denti morse de la morte avante
che fosser de l’umana colpa essenti  (VII, 31-33)

Ali estou eu com crianças inocentes/ mordidas pelos dentes da morte antes/ que fossem da humana culpa isentos”

            Note-se a metáfora associada à morte, considerada implicitamente como uma fera, pois tem dentes hostis.

            Quando Cristo morreu levou consigo para o Paraíso os que estavam no Limbo. Mas Virgílio, que estava lá há pouco mais de 50 anos (uma vez que  morreu em 19 a.C., no reinado do primeiro imperador romano, Augusto) (1), não teve essa sorte:

Io son Virgilio; e per null’ altro rio
lo ciel perdei che per non aver fe’.  (VII, 7-8)

Eu sou Virgílio; e por nenhuma outra falta/ salvo a de não ter fé perdi o céu.

            Na resposta a Sordello, Virgílio diz:

Non per far, ma per non fare ho perduto
a veder l’alto Sol che tu disiri
e che fu tardi per me conosciuto. (VII, 25-27)

Não por fazer mas por não fazer perdi/ a visão do alto Sol que tu desejas / e que tarde foi por mim conhecido.

            Deus está assim associado à imagem do Sol, ou da luz. Já vimos há pouco que na caracterização do Limbo o autor da “Eneida” diz que ali é triste não porque haja tormentos mas pelas “sombras”, i.e., pela ausência da luz ou da visão de Deus.  

S.Dalí- Sordello

            Virgílio pede a Sordello que lhe indique o caminho para chegar mais depressa “lá onde o Purgatório verdadeiramente começa” (là dove purgatorio ha dritto inizio- v.39). Eles ainda estão, como se vê, no Antepurgatório.  Sordello lhe informa que não há um lugar fixo para os espíritos que no Purgatório expiam seus pecados. Podem (durante o dia) mover-se à vontade. E oferece-se para ser seu guia. Mas observa que não é possível subir à noite (v.44), quando o Sol se põe. Essa lei do Purgatório reforça a associação da imagem antes referida. A purificação dos espíritos -- expressa alegoricamente pela ascensão na montanha -- só é possível com a luz do Sol, com a fé em Deus, ou melhor, com as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade). Apenas com as quatro virtudes cardeais (prudência, justiça, coragem e temperança), possuídas pelos pagãos justos, não é possível chegar ao Paraíso. Virgílio se deu conta disso tarde demais...

            Como o dia já declina, Sordello propõe que eles passem a noite, descansando, num local próximo, onde há almas apartadas que será interessante conhecer.  Seguindo por um caminho irregular, de uma saliência elevada da montanha eles avistam um vale de beleza estranha, cuja cor das flores e grama supera o conjunto multicolorido de alguns refinados recursos naturais de nosso mundo:  

Oro e argento fine, cocco e biacca,
indaco, legno lucido e sereno,
fresco smeraldo in l’ora che si fiacca,

da l’erba e da li fior, dentr’ a quel seno
posti, ciascun saria di color vinto,
come dal suo maggiore è vinto il meno.  (VII, 73-78)

Ouro e prata fina, carmim e alvaiade,/ índigo, madeira clara e resplandecente,/ fresca esmeralda na hora em que se parte,
se colocados naquele vale seriam todos vencidos/ em sua cor pelas flores e a grama,/ como o menor é vencido pelo maior.           

            A esses versos relacionados ao sentido da visão, seguem-se outros, citados abaixo, que se referem aos do olfato e da audição, pois mencionam o perfume “único e desconhecido” do vale, derivado “da suavidade de mil odores”, e o “Salve, Regina” cantado pelos espíritos que ali estão. Assim, nos versos 73-84, Dante busca evocar três dos nossos cinco sentidos para melhor caracterizar essa região peculiar, estranha, do segundo reino do mundo dos mortos.  

Non avea pur natura ivi dipinto,
ma di soavità di milli odori
vi facea uno incognito e indistinto.

Salve , Regina” in sul verde e ‘n su’ fiori
quindi seder cantando anime vidi,
che per la valle  non parean di fuori.   (VII, 79-84)

A natureza ali não apenas pintara/ mas da suavidade de mil odores/ criava um outro (odor),  desconhecido e indistinto.
Sobre o verde e sobre as flores/ vi espíritos sentados cantando “Salve, Regina”,/ que não eram visíveis fora do vale.

G. Doré-  O vale
            Nesse vale estão, como se deduz pelas pessoas citadas nos versos seguintes, os príncipes e reis que só se arrependeram no final da vida, dedicando toda ela a preocupações outras, que não as de sua religião. São eles:

--o imperador Rodolfo de Absburgo, que “teria podido sanar as chagas que matam a Itália” (sanar le piaghe c’hanno Italia morta- v. 95);

-o rei da Boêmia Ottokar, pai de Venceslau: aquele, “nos cueiros/ valia mais que Venceslau, seu filho/ barbudo, que se nutre de luxúria e ócio” (/.../ ne le fasce/ fu meglio assai che Vincislao suo figlio/ barbuto, cui lussuria e ozio pasce- v. 100-102);

Rodolfo de Absburgo

Ottokar da Boêmia
--Felipe III o Audaz (ou o “de nariz pequeno”, o nasetto- v. 103) e Henrique de Navarra. O primeiro “morreu fugindo e deflorando o lírio” (morì fuggendo e disfiorando il giglio- v. 105). O lírio simboliza a França. Dante se refere aqui à sua derrota fragorosa na guerra que empreendeu contra Pedro III de Aragão (2).  Esses dois, Felipe e Henrique, “Pai e sogro são da peste de França” (Padre e suocero son del mal di Francia- v. 109), i.e. pai e sogro de Felipe IV o Belo (1268-1314). Este monarca é assim caracterizado porque  Dante não o perdoa por ser responsável pela morte de um papa (ainda que criticado por ele, Bonifácio VIII) e tutelar outro, Clemente V, tão sob seu controle que transferiu a sede do papado para Avignon em 1309, aí permanecendo até 1377 (3).

            A seguir são citados Pedro III de Aragão e  Charles I d’ Anjou, sendo que  o primeiro “cingiu a corda de todas as virtudes” (d’ogne valor portò cinta la corda- v. 114). Esses dois, que foram inimigos em vida, no Purgatório cantam juntos o “Salve, Regina”. Ocorreu o mesmo com Rodolfo e Ottokar, citados acima. Ottokar morreu em batalha contra o primeiro, por não concordar com que ele assumisse o Sacro Império Germânico-Romano. No Purgatório esses ex-inimigos compartilham a mesma esperança, vivendo em harmonia e cantando juntos aquele hino religioso em que os devotos, neste “vale de lágrimas” (mencionado no hino, uma associação ao local onde estão), pedem a intercessão de Maria para auxiliá-los a ganhar o Paraíso.

            São citados ainda o jovem Alfonso III de Aragão e seus irmãos Jaime II rei de Aragão e Frederico II rei da Sicília, filhos de Pedro III de Aragão. Se aquele jovem, que morreu cedo, fosse (ainda) rei “bem andava o valor de vaso em vaso” (ben andava il valor di vaso in vaso- v. 117) , o que não se pode dizer de seus irmãos.  Dante, embora aceite a doutrina da origem divina dos reis, não acha que os descendentes destes herdem necessariamente as suas qualidades. Estas não são distribuídas de modo igual por Deus:

Rade volte risurge per li rami
l’umana probitate; e questo vole
quei che la dà, perché da lui si chiami.  (VII, 121-123)

Raras vezes renasce pelos ramos/ a humana probidade; e isto quer/ Quem a dá, para que se lhe peça.

            Os últimos governantes citados são:

--Henrique III de Inglaterra -“este tem em seus ramos melhor rebento” (questi ha ne’ rami suoi migliore uscita- v.132)  pois seu filho Eduardo I é melhor governante que ele (4), ao contrário dos casos antes apontados, em que “a planta é menor que sua semente” (Tant’ è del seme suo minor la pianta,/ quanto /.../ v. 127-128) (cf. o efeito de paradoxo que Dante explora aqui);

--Guilherme VII, marquês de Monferrato. Ao tentar sufocar uma rebelião em Alessandia, na região do Piemonte, Guilherme foi preso, e assim mantido durante 17 meses, até morrer em 1292.  Seu filho, numa guerra de vingança mal sucedida contra Alessandria,  envolveu Monferrato e Canavese (5). Por isso, ele as faz (ainda) chorar, conforme o último verso do Canto (v. 136). 


NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.332.

(2) Id. ib, p. 333

(3) Id. ib, p. 333. Cf também CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 68-69.   

(4) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 70.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 334.


Amos Nattini

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