PURGATÓRIO
Canto IV
O Canto inicia com versos que contestam uma concepção antiga (de
Platão, segundo os comentaristas), a de que o ser humano possui mais de uma
alma. Nesse caso, a alma não seria tomada exclusivamente pela dor ou o prazer,
quando um sentimento forte dessa natureza a monopoliza (v.1-4). Dante, como bom
católico, afirma que a alma é única. Caso contrário, a pessoa poderia concentrar-se
simultaneamente em várias questões, e não é isso o que ocorre, como a sua
própria experiência demonstra agora. Ele não sente a passagem do tempo,
concentrado no que lhe dissera há pouco Manfredo (sobre a influência benéfica
ali das preces dos vivos- cf. final do Canto III) até que o bando dos espíritos
dos excomungados, antes de se retirar, lhes indique o caminho para prosseguir na subida
da montanha do Purgatório, conforme a sua solicitação.
G.Doré- A subida |
Mas o caminho é
muito difícil de escalar:
Noi salavam per entro ‘l sasso roto,
e d’ogne lato ne stringea lo stremo,
e piedi e man volea il suol di sotto. (IV, 31-33)
Nós
subíamos por dentro da rocha fendida,/ de cada lado premidos pelos extremos,/ o
solo embaixo requeria pés e mãos.
Dante faz antes
uma comparação, inspirada no meio rural. Afirma que tal caminho é mais estreito
que a abertura (na cerca-viva) que o camponês fecha com um forcado de espinhos
quando suas uvas escurecem (para evitar a entrada de ladrões). Mais adiante, Virgílio
dirá que essa dificuldade é só do início. Depois, a escalada tende a ficar mais
leve, à medida que os penitentes se aproximarem do cume da montanha:
Ed elli a me: “Questa montagna è tale,
che sempre al cominciar di sotte è grave;
e quant’ om più va sù, e men fa male.” (IV,
88-90)
E ele
para mim: “Esta montanha é de tal modo/ que subi-la no começo é mais difícil;/
e quanto mais para cima vamos, menos faz mal”.
O fim da jornada será tão fácil “como navegar correnteza abaixo” (com’a seconda giù andar
per nave- v. 93),
mais uma comparação.
Assim,
alegoricamente, a maior dificuldade está em iniciar de fato, por parte da
pessoa (Dante) interessada em ver Deus, essa árdua jornada de
autoaperfeiçoamento pela penitência, pré-requisito indispensável para concretizar
o seu desejo.
Mas o cume é
tão alto que a vista de Dante não o alcança, “e a encosta bem mais íngreme/
que a linha traçada ao centro, a meio do quadrante” (e la
costa superba più assai/ che da mezzo quadrante a centro lista- v.41-42), quer dizer, a encosta
era mais inclinada que 45º. Por isso, já
ao fim de uma primeira etapa na montanha ele está exausto (lembremo-nos que só
ele tem peso, por estar vivo ainda). Virgílio sugere então que Dante avance só
um pouco mais, até um terraço próximo. Ali sentam-se; olham para o oriente e o
trecho já vencido, o que é motivo de satisfação. Dante admira-se de que o sol
os atingisse pela esquerda. Na explicação do guia está implícito que isso é uma
peculiaridade do hemisfério sul (ou austral) em que estão. O poeta usa aqui sua linguagem peculiar: o sol é chamado de “carro da luz” (carro
de la luce- v. 59) e o norte, de “Aquilão”
(Aquilone- v. 60), o nome romano do Vento Norte na mitologia clássica (1). Mais
adiante, o sol é chamado de “espelho”
(specchio- v.62) e sua trajetória, de estrada “que Faetonte não soube dirigir” (che mal non seppe carreggiar
Fetòn- v.72),
mais uma referência de Dante-autor à mitologia (Faetonte pediu a seu pai, Apolo, o condutor do carro do
sol, para dirigi-lo por um dia; mas perdeu o controle das rédeas e tirou o sol
de seu curso, ameaçando os Céus e a Terra, sendo por isso fulminado por Zeus)
(2). Nesse contexto, Dante usa um longo
circunlóquio, destinado a demonstrar seu conhecimento de astronomia, apenas
para dizer que a montanha do Purgatório, no hemisfério austral, está numa
localização antípoda à do monte Sião (ou a Jerusalém), no hemisfério boreal. Também
para dizer que ambos os montes fazem parte do mesmo meridiano, pois eles têm “um só horizonte” (un solo
orizzòn- v. 70).
E que estão equidistantes do Equador (v.
79).
G.Doré- Os arrependidos tardiamente |
Depois, o Canto
relata o encontro dos poetas com Belacqua, um artesão florentino amigo de Dante
que fabricava alaúdes. Ficamos sabendo disso pelos comentários, não pelos
versos em si, que apenas acentuam a sua preguiça de avançar na jornada (ele já
era preguiçoso quando vivo, conforme o v. 126).
Dante ao observá-lo, personaliza a preguiça, ao afirmar para Virgílio:
/.../ adocchia
colui che mostra sé più negligente
che se pigrizia fosse sua serocchia (IV,
109-111)
/.../ olha/
aquele que se mostra mais negligente/ do que se fosse a preguiça sua irmã.
Ele, juntamente
com outros espíritos, está sentado à sombra, atrás de uma grande pedra.
Belacqua, como interlocutor de Dante, passa a representar o seu grupo, conforme
o padrão usado pelo poeta desde o “Inferno” para caracterizar as diversas
turmas de almas que vai encontrando pelo caminho. Ele está sentado abraçando os próprios joelhos,
com a cabeça baixa, que só ergue, lentamente, para dizer algumas palavras ao
conterrâneo. Pela sua manifestação, deduzimos que esse grupo é o segundo
daqueles espíritos que se arrependeram tardiamente em vida, o dos indolentes (o
primeiro foi o dos excomungados, como vimos). Ele explica a Dante que não vale
a pena se apressar pois será barrado lá em cima pelo “anjo de Deus que, no alto, guarda a porta” (l’angel
di Dio che siede in su la porta- v. 129), ou a entrada do Purgatório propriamente dito (estamos assim
no Antepurgatório). Pois segundo as normas celestes, antes de entrar -- para
começar a cumprir sua penitência – deverá aguardar fora tanto tempo quanto
viveu sem arrepender-se dos pecados:
Prima convien che tanto il ciel m’aggiri
di fuor da essa, quanto fece in vita,
per
ch’io ‘ndugiai al fine i buon sospiri,
se orazïone in prima non m’aita
che surga sù di cuor che in grazia viva;
l’altra che val, che ‘n ciel non è
udita? (IV, 130-135)
Antes é
preciso que fora dela (da entrada no Purgatório) os céus girem/ tantas vezes quantas fizeram
enquanto eu vivi/ uma vez que eu posterguei os bons suspiros até o fim,
a menos
que eu seja ajudado por oração/ que se erga de coração que em graça viva;/ que
vale uma outra, se no céu não é ouvida?
Virgílio retoma
a escalada e pede para seu discípulo segui-lo, pois o sol ali já toca o
meridiano, quer dizer, já é meio-dia. E afirma que começa a anoitecer em
Marrocos. Nestes últimos versos, Dante-autor continua a ver os dois peregrinos com
a ótica do globo terrestre, coerente com as extensas considerações astronômicas contidas antes no Canto. Também
aqui há uma personalização: é a da noite, que tem pés... Diz Virgílio:
/.../ “Vienne omai; vedi ch’è tocco
meridïan dal sole, e a la riva
cuopre la notte già col piè Morrocco” (IV,
137-139)
/.../ “Vem
agora; vê que o meridiano/ é tocado pelo sol, e na beira do oceano/ a noite já
com o pé cobre Marrocos”.
NOTAS
(1) O nome grego é Bóreas. Cf. ZIMMERMAN, J.E.- “Dictionary of Classical
Mythology” . Bantam Books, 1985, p. 27 e 43.
(2) ZIMMERMAN,
J.E.- “Dictionary of Classical Mythology”, op cit, p. 202
Amos Nattini |
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