sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Canto IV

PURGATÓRIO


Canto IV 


            O Canto inicia com versos que contestam uma concepção antiga (de Platão, segundo os comentaristas), a de que o ser humano possui mais de uma alma. Nesse caso, a alma não seria tomada exclusivamente pela dor ou o prazer, quando um sentimento forte dessa natureza a monopoliza (v.1-4). Dante, como bom católico, afirma que a alma é única. Caso contrário, a pessoa poderia concentrar-se simultaneamente em várias questões, e não é isso o que ocorre, como a sua própria experiência demonstra agora. Ele não sente a passagem do tempo, concentrado no que lhe dissera há pouco Manfredo (sobre a influência benéfica ali das preces dos vivos- cf. final do Canto III) até que o bando dos espíritos dos excomungados, antes de se retirar, lhes indique o caminho para prosseguir na subida da montanha do Purgatório, conforme a sua solicitação.


G.Doré- A subida

            Mas o caminho é muito difícil de escalar:

Noi salavam per entro ‘l sasso roto,
e d’ogne lato ne stringea lo stremo,
e piedi e man volea il suol di sotto.  (IV, 31-33)

Nós subíamos por dentro da rocha fendida,/ de cada lado premidos pelos extremos,/ o solo embaixo requeria pés e mãos.

            Dante faz antes uma comparação, inspirada no meio rural. Afirma que tal caminho é mais estreito que a abertura (na cerca-viva) que o camponês fecha com um forcado de espinhos quando suas uvas escurecem (para evitar a entrada de ladrões). Mais adiante, Virgílio dirá que essa dificuldade é só do início. Depois, a escalada tende a ficar mais leve, à medida que os penitentes se aproximarem do cume da montanha:

Ed elli a me: “Questa montagna è tale,
che sempre al cominciar di sotte è grave;
e quant’ om più va sù, e men fa male.” (IV, 88-90)

E ele para mim: “Esta montanha é de tal modo/ que subi-la no começo é mais difícil;/ e quanto mais para cima vamos, menos faz mal”.

            O fim da jornada será tão fácil “como navegar correnteza abaixo” (com’a seconda giù andar per nave- v. 93), mais uma comparação.

            Assim, alegoricamente, a maior dificuldade está em iniciar de fato, por parte da pessoa (Dante) interessada em ver Deus, essa árdua jornada de autoaperfeiçoamento pela penitência, pré-requisito indispensável para concretizar o seu desejo.     

            Mas o cume é tão alto que a vista de Dante não o alcança, “e a encosta bem mais íngreme/ que a linha traçada ao centro, a meio do quadrante” (e la costa superba più assai/ che da mezzo quadrante a centro lista- v.41-42), quer dizer, a encosta era mais inclinada que 45º.  Por isso, já ao fim de uma primeira etapa na montanha ele está exausto (lembremo-nos que só ele tem peso, por estar vivo ainda). Virgílio sugere então que Dante avance só um pouco mais, até um terraço próximo. Ali sentam-se; olham para o oriente e o trecho já vencido, o que é motivo de satisfação. Dante admira-se de que o sol os atingisse pela esquerda. Na explicação do guia está implícito que isso é uma peculiaridade do hemisfério sul (ou austral) em que estão.  O poeta usa aqui sua  linguagem peculiar: o sol é chamado de “carro da luz” (carro de la luce- v. 59) e o norte, de “Aquilão” (Aquilone- v. 60), o nome romano do Vento Norte na mitologia clássica (1). Mais adiante, o sol é chamado de “espelho” (specchio- v.62) e sua trajetória, de estrada “que Faetonte não soube dirigir” (che mal non seppe carreggiar Fetòn- v.72), mais uma referência de Dante-autor à mitologia (Faetonte  pediu a seu pai, Apolo, o condutor do carro do sol, para dirigi-lo por um dia; mas perdeu o controle das rédeas e tirou o sol de seu curso, ameaçando os Céus e a Terra, sendo por isso fulminado por Zeus) (2).  Nesse contexto, Dante usa um longo circunlóquio, destinado a demonstrar seu conhecimento de astronomia, apenas para dizer que a montanha do Purgatório, no hemisfério austral, está numa localização antípoda à do monte Sião (ou a Jerusalém), no hemisfério boreal. Também para dizer que ambos os montes fazem parte do mesmo meridiano, pois eles têm “um só horizonte” (un solo orizzòn- v. 70). E que estão equidistantes  do Equador (v. 79).  

G.Doré- Os arrependidos tardiamente

            Depois, o Canto relata o encontro dos poetas com Belacqua, um artesão florentino amigo de Dante que fabricava alaúdes. Ficamos sabendo disso pelos comentários, não pelos versos em si, que apenas acentuam a sua preguiça de avançar na jornada (ele já era preguiçoso quando vivo, conforme o v. 126).  Dante ao observá-lo, personaliza a preguiça, ao afirmar para Virgílio:

/.../ adocchia
colui che mostra sé più negligente
che se pigrizia fosse sua serocchia (IV, 109-111)

/.../ olha/ aquele que se mostra mais negligente/ do que se fosse a preguiça sua irmã.


            Ele, juntamente com outros espíritos, está sentado à sombra, atrás de uma grande pedra. Belacqua, como interlocutor de Dante, passa a representar o seu grupo, conforme o padrão usado pelo poeta desde o “Inferno” para caracterizar as diversas turmas de almas que vai encontrando pelo caminho.  Ele está sentado abraçando os próprios joelhos, com a cabeça baixa, que só ergue, lentamente, para dizer algumas palavras ao conterrâneo. Pela sua manifestação, deduzimos que esse grupo é o segundo daqueles espíritos que se arrependeram tardiamente em vida, o dos indolentes (o primeiro foi o dos excomungados, como vimos). Ele explica a Dante que não vale a pena se apressar pois será barrado lá em cima pelo “anjo de Deus que, no alto,  guarda a porta” (l’angel di Dio che siede in su la porta- v. 129), ou a entrada do Purgatório propriamente dito (estamos assim no Antepurgatório). Pois segundo as normas celestes, antes de entrar -- para começar a cumprir sua penitência – deverá aguardar fora tanto tempo quanto viveu sem arrepender-se dos pecados:

Prima convien che tanto il ciel m’aggiri
di fuor da essa, quanto fece in vita,
per ch’io ‘ndugiai al fine i buon sospiri,

se orazïone in prima non m’aita
che surga sù di cuor che in grazia viva;
l’altra che val, che ‘n ciel non è udita?  (IV, 130-135)

Antes é preciso que fora dela (da entrada no Purgatório) os céus girem/ tantas vezes quantas fizeram enquanto eu vivi/ uma vez que eu posterguei os bons suspiros até o fim,
a menos que eu seja ajudado por oração/ que se erga de coração que em graça viva;/ que vale uma outra, se no céu não é ouvida?

            Virgílio retoma a escalada e pede para seu discípulo segui-lo, pois o sol ali já toca o meridiano, quer dizer, já é meio-dia. E afirma que começa a anoitecer em Marrocos. Nestes últimos versos, Dante-autor continua a ver os dois peregrinos com a ótica do globo terrestre, coerente com as extensas considerações  astronômicas contidas antes no Canto. Também aqui há uma personalização: é a da noite, que tem pés... Diz Virgílio:   

/.../ “Vienne omai; vedi ch’è tocco
meridïan dal sole, e a la riva

cuopre la notte già col piè Morrocco” (IV, 137-139)

/.../ “Vem agora; vê que o meridiano/ é tocado pelo sol, e na beira do oceano/ a noite já com o pé cobre Marrocos”.


NOTAS         

(1) O nome grego é Bóreas. Cf. ZIMMERMAN, J.E.- “Dictionary of Classical Mythology” . Bantam Books, 1985, p. 27 e 43.

(2) ZIMMERMAN, J.E.- “Dictionary of Classical Mythology”, op cit, p. 202

Amos Nattini
S.Dalí- Ilustração para o canto IV do Purgatório


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