terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Canto III

PURGATÓRIO


Canto III 

       
            Dante nota que Virgílio ficou alterado com a censura de Catão às almas que se esqueceram de seu objetivo de estar ali, enlevados com o canto de Casella. A censura também incluía seu discípulo, e isso significava, indiretamente, uma crítica a ele. Por isso, Dante faz este comentário relativo a seu guia:

o dignitosa coscïenza e netta,
come t’è picciol fallo amaro morso!  (III, 8-9)

ó consciência nobre e pura,/ como uma pequena falta é para ti amargo remorso!

            Essa observação é feita após “seus pés (de Virgílio) abandonarem a pressa” (li piedi suoi lasciar la fretta- v. 10) que tinham, “pela qual todos os atos perdem o seu decoro” (che l’onestade ad ogn’ atto dismaga, - v. 11).

            Virgílio, que representa a razão humana no poema, perde um pouco a sua importância neste segundo reino do além-túmulo. Além de estar sujeito a críticas, ele não saberá dizer, por si mesmo, o caminho a seguir, para escalar a montanha, como se verá adiante (v. 62-63). Pois a razão humana, por si só, não é suficiente, segundo o autor da “Comédia”, para a desejada ascensão espiritual do ser humano. Será necessária também a fé...

            Dante, porém, não pode prescindir de Virgílio. Fica atemorizado, nessa manhã ensolarada do Purgatório, quando constata que só há uma sombra no chão, a sua própria. Olha logo para o lado, para ver se não tinha sido abandonado pelo seu guia.  Mas ele está lá, e lembra a Dante que deixou “o corpo com o qual fazia sombra” (lo corpo dentro al quale io facea ombra- v. 25 ) em Bríndisi, depois trasladado para Nápoles (ele morreu, segundo nota  do comentarista, no ano 19 a.C. e seus restos mortais foram depois transferidos para esta cidade por ordem do imperador Augusto) (1). Naturalmente, só Dante tem sombra, porque é o único vivo ali. Seu corpo assim é um obstáculo à luz solar, o que pode ser entendido, alegoricamente, como o impedimento da matéria não evoluída -- que ainda não sofreu a purgação dos seus pecados --  para a fruição de toda essa luz...

            Todavia, no sentido literal, os versos nos dizem que, a fim de se purificarem, as almas que ali estão sofrerão dor e desconforto em seus corpos “sui generis” (que não produzem sombra e são semelhantes aos dos diversos céus, que não obstaculizam os raios solares):

A sofferir tormenti, caldi e geli
simile corpi la Virtù dispone
che, come fa, non vuol ch’ a noi si sveli. (III, 31-33)

Sofrer tormentos, quentes e frios,/ a Virtude dispõe a tais corpos;/ e como o faz não quer que a nós se revele.
 
            Assim, a visão católica de Dante-autor faz Virgílio dizer que o ser humano não deve querer saber demais: ele deve contentar-se em conhecer só o que as coisas são, a argumentação “quia” (v. 37) dos efeitos da criação divina, e não o porquê dessa criação, as suas causas últimas, que é exclusividade de Deus (2).

Matto è chi spera che nostra ragione
possa trascorrer la infinita via
che tiene una sustanza  in  tre persone.

State contenti, umana gente, al quia;     (III, 34-37)

Louco é quem espera que a nossa razão/ possa percorrer a infinita via/ que mantém unidas em  uma só substância três pessoas.
Contentai-vos, humana gente, só com o quia;

            Caso tivéssemos todas as respostas, seríamos como Deus (que é três e não um, i.e. a Santíssima Trindade) e “não teria sido necessário Maria parir” (mestier non era parturir Maria- v. 39), pois Adão e Eva foram expulsos do Éden por quererem saber demais. Em busca da cabal explicação, já se debruçaram os maiores pensadores da Antiguidade (são citados, nominalmente Aristóteles e Platão,  v. 43), sem que obtivessem fruto disso (sanza frutto- v. 40)...   


G.Doré-  ilustração para o canto III

            Chegando ao pé da montanha do Purgatório, os dois poetas ficam admirados com o que veem: uma parede de rocha tão íngreme que as falésias da Riviera italiana (entre Lerice e Turbìa)  pareciam “uma escada/ fácil e ampla, comparada àquela” (/.../ una scala,/ verso di quella, agevole e aperta- v. 50-51).  É então que Dante – vendo aproximar-se, a passos muito lentos, um bando de almas – sugere a Virgílio aconselhar-se com elas sobre o melhor caminho a seguir, “se não puderes fazê-lo por ti mesmo” (se tu da te medesmo aver nol puoi- v. 63) (Virgílio estava de cabeça baixa, absorto em suas reflexões sobre como escalar aquela montanha, “de modo que possa subir quem não tem asas” ( sì che possa salir chi va sanz’ala - v. 54) ). O mestre segue então o conselho de seu discípulo.  E indaga logo aos espíritos o melhor caminho, “pois perder tempo a quem mais sabe mais desagrada” (ché perder tempo a chi più sa più spiace- v.78).

            Esses espíritos de andar muito lento arrependeram-se tardiamente de  seus pecados no final da vida. Por isso, também, seu passo é tardo.  

            Ocorre aqui mais uma comparação, esta relacionada ao meio rural: Dante usa a imagem das ovelhas saindo do aprisco, aos poucos, ao referir-se ao comportamento daquele “afortunado” bando de espíritos, que se aproxima vagarosamente dos dois poetas. Os da frente param e todos os que vêm atrás, como as ovelhas, fazem o mesmo, sem saber o porquê. Os que vêm primeiro param, intrigados, ao ver que Dante faz sombra. Virgílio então, sem que isso lhe seja perguntado, apressa-se em dar-lhes a razão, afirmando também:

Non vi maravigliate, ma credete
che non sanza virtù che da ciel vegna
cerchi di soverchiar  questa parete.        (III, 97-99)

Não vos espanteis, mas crede/ que não é sem força vinda do céu/ que ele procura vencer esta parede.

            Note-se a incidência de sons duros, ásperos, nestes versos (te, que, cre) certamente empregados pelo poeta para salientar a aspereza da parede de rocha.

            Após as palavras de Virgílio, aqueles espíritos, imediatamente, indicam o caminho a seguir.

            Um deles pede a Dante que, sem se deter em sua marcha para o alto, volte sua face para ele, para ver se o reconhece.  “Louro era, e belo, e de gentil aspecto,/ mas uma das sobrancelhas um golpe (de espada) havia dividido   (biondo era e bello e di gentile aspetto,/ ma un de’ cigli un colpo avea diviso-  v.107-108- cf. o polissíndeto).  Ante a resposta negativa do poeta, ele diz, que é Manfredo, neto da imperatriz Constança. Trata-se do rei da Sicília e da Apúlia, gibelino e epicurista, filho natural do imperador Frederico II, que foi morto em 1266 por Charles d’Anjou, aliado do papa Clemente IV,  na campanha  de Benevento (3).


Manfredo 

            Manfredo, que é quem fala a partir do v.103 até o fim do Canto, pede a Dante que quando retornar a este mundo informe a sua filha (também chamada Constança, como a bisavó) onde ele está agora, quer dizer, apesar de ter sido excomungado e de ter cometido pecados “horríveis” (v.121), não foi para o Inferno e sim veio para cá, para o Purgatório, a caminho da salvação, portanto:

Poscia ch’io ebbi rotta la persona
di due punte mortali, io mi rendei,
piangendo, a quei che volontier perdona. (III, 118-120)

Depois que meu corpo foi transpassado/ por dois golpes mortais, eu me rendi,/ chorando, Àquele que perdoa de bom grado.

            Ele, que integra o bando dos que se arrependeram muito tarde na vida, pertence assim ao subgrupo dos “contumazes” ou desobedientes da Igreja, i.e. os excomungados.  Mas a condenação da Igreja não prevalece sobre a Bondade Divina, que “tem braços tão grandes/ que aceita quem quer que se volte para ela” ( /.../ ha sì gran braccia,/ che prende ciò che si rivolge a lei- v. 122-123).  

            Por causa da excomunhão, o “pastor di Cosenza” (o bispo) mandou que seus restos mortais fossem exumados de onde estavam, perto de Benevento, e jogados às margens do rio Verde, fora dos limites do reino de Nápoles e dos Estados Pontifícios (4):

Or le bagna la pioggia e move il vento
di fuor dal regno, quasi lungo ‘l Verde,
dov’e’ le trasmutò a lume spento.   (III, 130-132)

Agora a chuva banha meus ossos, e o vento os move/ para fora do reino, ao longo do Verde,/ aonde ele os transportou a círios apagados,
           
            Os restos mortais foram assim transportados a “círios apagados” (a lume spento- v. 132) porque esse era o tratamento usual da época aos que recebiam a excomunhão (5). A propósito, essa sugestiva expressão -- “A lume spento”, é o título do primeiro livro de poemas de Ezra Pound.

            O que Manfredo quer, na realidade, ao encarregar Dante daquela missão é que sua filha, sabendo em que reino do além-túmulo ele está, ore por ele, pois assim abreviará a sua permanência ali. Segundo as normas celestes,  os que foram excomungados devem permanecer no Purgatório trinta vezes o tempo que permaneceram em “contumácia” com a Igreja,

/.../ se tal decreto
più corto per buon prieghi non diventa. (III, 140-141)  

se tal decreto/ não se tornar mais curto pelas boas preces.

            O último verso do Canto (v. 145) reafirma essa característica do Purgatório: 

ché  qui per quei di là molto s’avanza. (III, 145)


pois aqui, pelos que estão lá, muito se avança.



NOTAS


(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 34

(2) Segundo comentário ao v. 37 do Canto III in SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, Aristóteles e os escolásticos distinguiam a demonstração quia da demonstração propter quid. No primeiro caso, o conhecimento volta-se para o que uma coisa é, pela argumentação a posteriori, partindo-se do efeito para a causa; no outro caso, o conhecimento se refere ao porquê uma coisa é como é, e a argumentação é a priori, da causa para o efeito. (Cf. SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 93). 

(3) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”- op cit, p. 94.

(4) Id., ib, p. 94

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p. 324



Amos Nattini 

S.Dalí- Ilustração para o canto III do Purgatório

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