PURGATÓRIO
Canto III
Dante nota que
Virgílio ficou alterado com a censura de Catão às almas que se esqueceram de
seu objetivo de estar ali, enlevados com o canto de Casella. A censura também
incluía seu discípulo, e isso significava, indiretamente, uma crítica a ele. Por
isso, Dante faz este comentário relativo a seu guia:
o dignitosa coscïenza e netta,
come
t’è picciol fallo amaro morso! (III,
8-9)
ó consciência
nobre e pura,/ como uma pequena falta é para ti amargo remorso!
Essa observação
é feita após “seus pés (de Virgílio) abandonarem a pressa” (li
piedi suoi lasciar la fretta- v. 10) que tinham, “pela qual
todos os atos perdem o seu decoro” (che l’onestade ad ogn’ atto
dismaga, - v. 11).
Virgílio, que
representa a razão humana no poema, perde um pouco a sua importância neste segundo
reino do além-túmulo. Além de estar sujeito a críticas, ele não saberá dizer,
por si mesmo, o caminho a seguir, para escalar a montanha, como se verá adiante
(v. 62-63). Pois a razão humana, por si só, não é suficiente, segundo o autor
da “Comédia”, para a desejada ascensão espiritual do ser humano. Será
necessária também a fé...
Dante, porém,
não pode prescindir de Virgílio. Fica atemorizado, nessa manhã ensolarada do
Purgatório, quando constata que só há uma sombra no chão, a sua própria. Olha logo
para o lado, para ver se não tinha sido abandonado pelo seu guia. Mas ele está lá, e lembra a Dante que deixou “o corpo com o qual fazia sombra” (lo
corpo dentro al quale io facea ombra- v. 25 ) em Bríndisi, depois trasladado para
Nápoles (ele morreu, segundo nota do
comentarista, no ano 19 a.C. e seus restos mortais foram depois transferidos
para esta cidade por ordem do imperador Augusto) (1). Naturalmente, só Dante tem
sombra, porque é o único vivo ali. Seu corpo assim é um obstáculo à luz solar, o
que pode ser entendido, alegoricamente, como o impedimento da matéria não
evoluída -- que ainda não sofreu a purgação dos seus pecados -- para a fruição de toda essa luz...
Todavia, no
sentido literal, os versos nos dizem que, a fim de se purificarem, as almas que
ali estão sofrerão dor e desconforto em seus corpos “sui generis” (que não produzem sombra e são semelhantes aos dos
diversos céus, que não obstaculizam os raios solares):
A sofferir tormenti, caldi e geli
simile corpi la Virtù dispone
che, come fa, non vuol ch’ a noi si sveli.
(III, 31-33)
Sofrer
tormentos, quentes e frios,/ a Virtude dispõe a tais corpos;/ e como o faz não
quer que a nós se revele.
Assim, a visão
católica de Dante-autor faz Virgílio dizer que o ser humano não deve querer saber
demais: ele deve contentar-se em conhecer só o que as coisas são, a
argumentação “quia” (v. 37) dos
efeitos da criação divina, e não o porquê dessa criação, as suas causas
últimas, que é exclusividade de Deus (2).
Matto è chi spera che nostra ragione
possa trascorrer la infinita via
che
tiene una sustanza in tre persone.
State contenti, umana gente, al quia;
(III, 34-37)
Louco é
quem espera que a nossa razão/ possa percorrer a infinita via/ que mantém
unidas em uma só substância três pessoas.
Contentai-vos,
humana gente, só com o quia;
Caso tivéssemos
todas as respostas, seríamos como Deus (que é três e não um, i.e. a Santíssima
Trindade) e “não teria sido necessário
Maria parir” (mestier non era parturir Maria- v. 39), pois Adão e Eva foram
expulsos do Éden por quererem saber demais. Em busca da cabal explicação, já se
debruçaram os maiores pensadores da Antiguidade (são citados, nominalmente
Aristóteles e Platão, v. 43), sem que
obtivessem fruto disso (sanza frutto- v. 40)...
G.Doré- ilustração para o canto III |
Chegando ao pé
da montanha do Purgatório, os dois poetas ficam admirados com o que veem: uma
parede de rocha tão íngreme que as falésias da Riviera italiana (entre Lerice e
Turbìa) pareciam “uma escada/ fácil e ampla, comparada àquela” (/.../
una scala,/ verso di quella, agevole e aperta- v. 50-51). É então que Dante – vendo aproximar-se, a
passos muito lentos, um bando de almas – sugere a Virgílio aconselhar-se com elas
sobre o melhor caminho a seguir, “se não
puderes fazê-lo por ti mesmo” (se tu da te medesmo aver nol puoi-
v. 63)
(Virgílio estava de cabeça baixa, absorto em suas reflexões sobre como escalar
aquela montanha, “de modo que possa subir
quem não tem asas” ( sì che possa salir chi va sanz’ala - v. 54) ). O mestre segue então
o conselho de seu discípulo. E indaga
logo aos espíritos o melhor caminho, “pois
perder tempo a quem mais sabe mais desagrada” (ché
perder tempo a chi più sa più spiace- v.78).
Esses espíritos
de andar muito lento arrependeram-se tardiamente de seus pecados no final da vida. Por isso,
também, seu passo é tardo.
Ocorre aqui
mais uma comparação, esta relacionada ao meio rural: Dante usa a imagem das
ovelhas saindo do aprisco, aos poucos, ao referir-se ao comportamento daquele “afortunado” bando de espíritos, que se
aproxima vagarosamente dos dois poetas. Os da frente param e todos os que vêm
atrás, como as ovelhas, fazem o mesmo, sem saber o porquê. Os que vêm primeiro
param, intrigados, ao ver que Dante faz sombra. Virgílio então, sem que isso lhe
seja perguntado, apressa-se em dar-lhes a razão, afirmando também:
Non vi maravigliate, ma credete
che non sanza virtù che da ciel vegna
cerchi di soverchiar questa parete. (III, 97-99)
Não vos
espanteis, mas crede/ que não é sem força vinda do céu/ que ele procura vencer
esta parede.
Note-se a incidência
de sons duros, ásperos, nestes versos (te,
que, cre) certamente empregados pelo poeta para salientar a aspereza da
parede de rocha.
Após as
palavras de Virgílio, aqueles espíritos, imediatamente, indicam o caminho a
seguir.
Um deles pede a
Dante que, sem se deter em sua marcha para o alto, volte sua face para ele,
para ver se o reconhece. “Louro era, e belo, e de gentil aspecto,/ mas
uma das sobrancelhas um golpe (de espada) havia dividido (biondo era e bello e di gentile
aspetto,/ ma un de’ cigli un colpo avea diviso-
v.107-108- cf. o polissíndeto). Ante a resposta
negativa do poeta, ele diz, que é Manfredo, neto da imperatriz Constança. Trata-se
do rei da Sicília e da Apúlia, gibelino e epicurista, filho natural do
imperador Frederico II, que foi morto em 1266 por Charles d’Anjou, aliado do
papa Clemente IV, na campanha de Benevento (3).
Manfredo |
Manfredo, que é
quem fala a partir do v.103 até o fim do Canto, pede a Dante que quando
retornar a este mundo informe a sua filha (também chamada Constança, como a
bisavó) onde ele está agora, quer dizer, apesar de ter sido excomungado e de
ter cometido pecados “horríveis” (v.121), não foi para o Inferno e sim veio para
cá, para o Purgatório, a caminho da salvação, portanto:
Poscia ch’io ebbi rotta la persona
di due punte mortali, io mi rendei,
piangendo, a quei che volontier perdona. (III,
118-120)
Depois
que meu corpo foi transpassado/ por dois golpes mortais, eu me rendi,/
chorando, Àquele que perdoa de bom grado.
Ele, que integra
o bando dos que se arrependeram muito tarde na vida, pertence assim ao subgrupo
dos “contumazes” ou desobedientes da Igreja, i.e. os excomungados. Mas a condenação da Igreja não prevalece
sobre a Bondade Divina, que “tem braços
tão grandes/ que aceita quem quer que se volte para ela” ( /.../
ha sì gran braccia,/ che prende ciò che si rivolge a lei- v. 122-123).
Por causa da
excomunhão, o “pastor di Cosenza” (o bispo) mandou que seus restos mortais
fossem exumados de onde estavam, perto de Benevento, e jogados às margens do
rio Verde, fora dos limites do reino de Nápoles e dos Estados Pontifícios (4):
Or le bagna la pioggia e move il vento
di fuor dal regno, quasi lungo ‘l Verde,
dov’e’ le trasmutò a lume spento. (III, 130-132)
Agora a
chuva banha meus ossos, e o vento os move/ para fora do reino, ao longo do
Verde,/ aonde ele os transportou a círios apagados,
Os restos
mortais foram assim transportados a “círios
apagados” (a lume spento- v. 132) porque esse era o tratamento usual da época aos que recebiam a
excomunhão (5). A propósito, essa sugestiva expressão -- “A lume spento”, é o
título do primeiro livro de poemas de Ezra Pound.
O que Manfredo
quer, na realidade, ao encarregar Dante daquela missão é que sua filha, sabendo
em que reino do além-túmulo ele está, ore por ele, pois assim abreviará a sua
permanência ali. Segundo as normas celestes, os que foram excomungados devem permanecer no
Purgatório trinta vezes o tempo que permaneceram em “contumácia” com a Igreja,
/.../ se tal decreto
più
corto per buon prieghi non diventa. (III, 140-141)
se tal
decreto/ não se tornar mais curto pelas boas preces.
O último verso
do Canto (v. 145) reafirma essa característica do Purgatório:
ché
qui per quei di là molto s’avanza. (III, 145)
NOTAS
(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II:
Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 34
(2) Segundo comentário ao v. 37 do Canto III in SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”, Aristóteles e os escolásticos
distinguiam a demonstração quia da
demonstração propter quid. No
primeiro caso, o conhecimento volta-se para o que uma coisa é, pela
argumentação a posteriori,
partindo-se do efeito para a causa; no outro caso, o conhecimento se refere ao porquê
uma coisa é como é, e a argumentação é a
priori, da causa para o efeito. (Cf. SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine
Comedy- II. Purgatory”. Translated by
Dorothy L. Sayers. Penguin Classics,
1963, p. 93).
(3)
SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”- op cit, p. 94.
(4)
Id., ib, p. 94
(5) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-
p. 324
Amos Nattini |
S.Dalí- Ilustração para o canto III do Purgatório |
Nenhum comentário:
Postar um comentário