terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Canto V

PURGATÓRIO


Canto V 

           
            Dante está subindo a montanha, seguindo Virgílio, quando ouve uma das almas que deixaram para trás comunicar às outras que ele faz sombra, o que causa nelas admiração.  Virgílio o censura por desacelerar o passo e preocupar-se com isso. Só deve preocupar-se com seu objetivo último, que é avançar na sua jornada para o alto. Faz então esta comparação:

Vien dietro a me, e lascia dir le genti:
sta come torre ferma, che non crolla
già mai la cima per soffiar di venti;  (V, 13-15)

Segue-me e deixa falar as gentes:/ mantém-te como torre firme, que não balança/ jamais o cimo pelo soprar dos ventos;


G.Doré- Os arrependidos tardiamente

            Mais adiante, um grupo de espíritos avança, entoando o “Miserere”  (identificado como o Salmo 50). Estes também se admiram com o fato de Dante possuir sombra, i.e. de possuir um corpo material, de estar vivo. Então “mudaram seu canto para um “oh!” longo e rouco” (mutar lor canto in un “oh!” lungo e roco”- v.27). Dois deles correm ao encontro dos poetas e pedem que estes informem sobre sua condição. Virgílio lhes diz então que o corpo de Dante “é vera carne” , num terceto em que o som duro dos k é suavizado pelo dos v:

E ‘l mio maestro: “Voi potete andarne
e ritrarre a color che vi mandaro
che ‘l color di costui è vera carne”. (V, 31-33)

E o meu mestre: “Podeis retornar/ e dizer a quem vos enviou/ que o corpo deste aqui é vera carne.

            E aconselha: “honra lhe façam, pode lhes ser bom” (fàccianli onore, ed esser può lor caro- v. 36), querendo dizer com isso que Dante, ao retornar ao mundo dos vivos, poderá informar que eles estão no Purgatório e assim obter preces em sua intenção. Dante compara a rapidez com que essas duas sombras “mensageiras” (v. 28) retornam para avisar as outras a “vapores inflamados” (vapori accesi- v. 37) fendendo o céu sereno ou as nuvens de verão (v. 37- 40), estrelas cadentes ou relâmpagos. Compara também o retorno imediato de todas elas a “uma fileira de soldados a correr” (come schiera che scorre sanza freno- v. 42), que no original italiano é mais um dos inúmeros versos que joga com a sonoridade dos fonemas, no caso alternando sons sibilantes (s, z) e duros (k)  para a obtenção do ritmo ou do efeito estético desejado. Virgílio previne Dante que esse bando vem para lhe suplicar recomendação no mundo dos vivos. Ele pode escutá-los, mas não deve parar por causa disso (però pur va, e in andando ascolta- v. 45).

            Eles então lamentam que Dante não se detenha para ouvi-los. Pelo que dizem, ficamos sabendo que os integrantes desse grupo tiveram morte violenta; sua vida foi pecaminosa, mas na hora final se arrependeram e perdoaram quem lhes fez mal (v.52-55).  Dante ouve-os e compromete-se a fazer o que estiver ao seu alcance por esses “espíritos bem nascidos”  (spiriti ben nati- v.60), pois um dia chegarão ao Paraíso.

            Na sequência três deles se manifestam. E suas palavras se estendem até o último verso do Canto.

            O primeiro a falar não diz o seu nome, apenas cita fatos de sua vida, o que segundo os comentaristas permitiria que fosse facilmente identificado  pelos contemporâneos. Ele deseja que Dante, se alguma vez vir

/.../ quel paese
che siede tra Romagna e quel di Carlo,

che tu mi sie di tuoi prieghi cortese
in Fano, sì che ben per me s’adori
pur ch’i’ possa purgar le gravi offese. (V, 68-72)

/.../ aquela terra/ situada entre a Romagna e o reino de Carlos/ que tu me sejas cortês pedindo/ em Fano preces por mim/ para que eu possa purgar graves pecados.

            O reino de Carlos é o de Nápoles, na época governado por Charles d’Anjou, e a terra entre tal reino e a Romagna é Fano (1). Note-se a aliteração em p do v.72, consoante que também ocorre nos versos anteriores a este, talvez para enfatizar o purgar, que é o anseio de todos que ali estão. 

            A seguir, essa alma fala de suas “profundas feridas” (v.73), “feitas no meio dos filhos de Antenor” (fatti mi fuoro in grembo a li Antenori- v. 75), isto é, em Pádua, “lá onde eu pensava estar mais seguro” (là dov’io più sicuro esser credea- v. 76). Pádua foi fundada, de acordo com a lenda, por esse troiano que traiu sua cidade em favor dos interesses gregos (por isso Dante chama uma das quatro divisões do mais baixo círculo do Inferno, onde estão os traidores da pátria, de “Antenora”). Naquela região, em Orïaco, num pântano para onde fugira, ele foi morto por alguém a mandado de seu inimigo, “aquele de Este” (quel da Esti- v.77). Trata-se de Azzo VIII d’Este, conforme os comentaristas, que identificam por esses dados a pessoa que fala como Jacopo del Cassero, “podestà” ou principal magistrado de Bolonha. Note-se que Dante indica quem é esse primeiro espírito a se manifestar apenas pela menção à sua terra natal, ao local e circunstâncias de sua morte e ao inimigo dele, autor intelectual do crime.

            O segundo a falar é identificado pelo poeta, no v. 88: trata-se de Bonconte de Montefeltro. Sua narrativa é extensa, abrange os versos 85 a 129.

G.Doré- Buonconte da Montefeltro

          Ele pede a intercessão de Dante junto aos seus conterrâneos, em Fano, pois Giovanna (sua esposa) e outros não se preocupam com ele. Esse era um líder militar gibelino, que comandou os aretinos contra os guelfos de Florença na batalha de Campaldino em 1289. Dante, que quando jovem (aos 24 anos) também participou dessa batalha, está intrigado com um mistério, que aparentemente persistiu ao longo do tempo e que devia intrigar também os seus contemporâneos, o do desaparecimento do corpo de Bonconte. E pergunta o que ocorreu com ele, pois “jamais se soube de tua sepultura?” (che non si seppe mai tua sepultura?- v. 93).  A maior parte dos versos seguintes, na realidade, consiste numa explicação do que teria acontecido a esse cadáver.   

            Bonconte começa dizendo que no vale do Casentino passa um riacho chamado Arquiano, que nasce nos Apeninos e deságua no rio Arno. Foi nessa foz do rio que ele morreu, pronunciando o nome de Maria:

Là ‘ve ‘l vocabol suo diventa vano,
arriva’ io forato ne la gola,
fuggendo a piede e sanguinando il piano.

Quivi perdei la vista e la parola;
nel nome di Maria fini’, e quivi
caddi, e rimase la mia carne sola. (V, 97-102)

Lá onde aquela corrente perde o nome/ cheguei, com a garganta perfurada,/ fugindo a pé e ensanguentando o chão.
Ali perdi a visão e a fala,/ ao pronunciar o nome de Maria, e ali/ onde caí ficou somente minha carne.

            O “anjo de Deus” então o tomou, enquanto o do Inferno, ressentido, protestou de que ele levava a sua “parte eterna”, i.e. a alma, apenas “por uma pequena lágrima” (per una lagrimetta- v. 107),  enquanto ele ficou com o corpo. O demônio, dotado de inteligência e vontade orientadas para o mal, “moveu o fumo e o vento” (mosse il fummo e ‘l vento- v. 113) para causar uma chuva torrencial que encheu os rios.

Lo corpo mio gelato in su la foce
trovò l’Archian rubesto; e quel sospinse
ne l’Arno, e sciolse al mio petto la croce

ch’ i’ fe’ di me quando  ‘l dolor mi vinse;
voltòmmi per le ripe e per lo fondo,
poi di sua preda mi coperse e cinse. (V,124-129)
   

O avolumado Arquiano encontrou, em sua foz,/ o corpo meu gelado; e o lançou/ no Arno, e desfez no meu peito a cruz/
que eu fizera com os braços quando a dor me venceu;/ rolou-me pelas beiras e pelo fundo,/ depois cobriu-me com seu butim de entulho.

            Bonconte era filho de Guido de Montefeltro, líder gibelino, protagonista do canto XXVII do “Inferno”, onde estão os “falsos conselheiros”. No final da vida, ele se tornou franciscano. Após a morte, S. Francisco veio buscá-lo, mas ao contrário do que ocorreu aqui com o seu filho, foi o diabo quem saiu vitorioso na disputa pela sua alma. 


G.Doré- Pia
  
            O Canto encerra com a fala de Pia. O autor da “Divina Comédia” é elogiado por conseguir sugerir, em tão poucos versos (os transcritos abaixo), todo o drama dessa mulher, que teve morte violenta, causada pelo próprio marido. Sua doçura é indicada pelos versos que antecedem o pedido pelas preces. Diferentemente dos anteriores, ela primeiro pensa no bem-estar de Dante, no seu repouso, e depois faz o pedido, que aliás é dirigido a ele próprio, e não a terceiros, parentes ou amigos, o que indica também a sua solidão (2):  

Deh, quando tu sarai tornato ao mondo
e riposato de la lunga via,”
seguitò ‘l terzo spirito al secondo,

“ricorditi di me, che son la Pia;
Siena me fé, disfecemi Maremma:
salsi colui che ‘nnanellata pria

disposando m’avea con la sua gemma.” (V, 130-136)

 “Ah, quando retornares ao mundo/ e repousares desta longa jornada”, / o terceiro espírito, seguindo o segundo, disse,/ “recorda-te de mim que sou a Pia./ Siena me fez, e Maremma me desfez:/ bem o sabe aquele que me deu um dia/ o anel de esposa, com a sua gema”. 

            Pia era possivelmente da família Tolomei, de Siena, e foi jogada do balcão de um castelo em Maremma pelo marido, principal magistrado de Volterra e Lucca, por suspeita de adultério ou para poder se casar com uma rica mulher (3).  
  
D.Gabriel Rossetti- Pia de' Tolomei

NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p. 327

(2) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.108-109

(3) MANDELBAUM, Allen- op cit, p. 328.


Amos Nattini


S.Dalí- Ilustração para o canto V do Purgatório




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