PURGATÓRIO
Canto V
Dante está subindo a montanha, seguindo Virgílio, quando ouve
uma das almas que deixaram para trás comunicar às outras que ele faz sombra, o
que causa nelas admiração. Virgílio o
censura por desacelerar o passo e preocupar-se com isso. Só deve preocupar-se
com seu objetivo último, que é avançar na sua jornada para o alto. Faz então
esta comparação:
Vien dietro a me, e lascia dir le genti:
sta
come torre ferma, che non crolla
già mai la cima per soffiar di venti; (V, 13-15)
Segue-me e deixa falar
as gentes:/ mantém-te como torre firme, que não balança/ jamais o cimo pelo
soprar dos ventos;
G.Doré- Os arrependidos tardiamente |
Mais adiante,
um grupo de espíritos avança, entoando o “Miserere”
(identificado como o Salmo 50). Estes
também se admiram com o fato de Dante possuir sombra, i.e. de possuir um corpo
material, de estar vivo. Então “mudaram
seu canto para um “oh!” longo e rouco” (mutar lor canto in un “oh!”
lungo e roco”- v.27). Dois deles correm ao encontro dos poetas e pedem que estes informem
sobre sua condição. Virgílio lhes diz então que o corpo de Dante “é vera carne” , num terceto em que o som
duro dos k é suavizado pelo dos v:
E ‘l mio maestro: “Voi potete
andarne
e ritrarre a color che vi
mandaro
che ‘l color
di costui è vera carne”. (V, 31-33)
E o meu
mestre: “Podeis retornar/ e dizer a quem vos enviou/ que o corpo deste aqui é
vera carne”.
E aconselha: “honra
lhe façam, pode lhes ser bom” (fàccianli onore, ed esser può
lor caro- v. 36),
querendo dizer com isso que Dante, ao retornar ao mundo dos vivos, poderá informar
que eles estão no Purgatório e assim obter preces em sua intenção. Dante
compara a rapidez com que essas duas sombras “mensageiras” (v. 28) retornam
para avisar as outras a “vapores
inflamados” (vapori accesi- v. 37) fendendo o céu sereno ou as nuvens de verão (v. 37- 40),
estrelas cadentes ou relâmpagos. Compara também o retorno imediato de todas
elas a “uma fileira de soldados a correr”
(come schiera che scorre sanza
freno- v. 42),
que no original italiano é mais um dos inúmeros versos que joga com a sonoridade
dos fonemas, no caso alternando sons sibilantes (s, z) e duros (k) para a obtenção do ritmo ou do efeito estético
desejado. Virgílio previne Dante que esse bando vem para lhe suplicar
recomendação no mundo dos vivos. Ele pode escutá-los, mas não deve parar por
causa disso (però pur va, e in andando ascolta- v. 45).
Eles então
lamentam que Dante não se detenha para ouvi-los. Pelo que dizem, ficamos
sabendo que os integrantes desse grupo tiveram morte violenta; sua vida foi
pecaminosa, mas na hora final se arrependeram e perdoaram quem lhes fez mal (v.52-55). Dante ouve-os e compromete-se a fazer o que
estiver ao seu alcance por esses “espíritos
bem nascidos” (spiriti
ben nati- v.60),
pois um dia chegarão ao Paraíso.
Na sequência
três deles se manifestam. E suas palavras se estendem até o último verso do
Canto.
O primeiro a falar
não diz o seu nome, apenas cita fatos de sua vida, o que segundo os
comentaristas permitiria que fosse facilmente identificado pelos contemporâneos. Ele deseja que Dante, se
alguma vez vir
/.../ quel paese
che siede tra Romagna e quel di Carlo,
che tu mi sie di tuoi prieghi
cortese
in
Fano, sì che ben per me s’adori
pur
ch’i’ possa purgar le gravi offese. (V, 68-72)
/.../ aquela
terra/ situada entre a Romagna e o reino de Carlos/ que tu me sejas cortês
pedindo/ em Fano preces por mim/ para que eu possa purgar graves pecados.
O reino de
Carlos é o de Nápoles, na época governado por Charles d’Anjou, e a terra entre
tal reino e a Romagna é Fano (1). Note-se a aliteração em p do v.72,
consoante que também ocorre nos versos anteriores a este, talvez para enfatizar
o purgar, que é o anseio de todos que
ali estão.
A seguir, essa alma fala de suas “profundas feridas” (v.73), “feitas
no meio dos filhos de Antenor” (fatti mi fuoro in grembo a li
Antenori- v. 75),
isto é, em Pádua, “lá onde eu pensava
estar mais seguro” (là dov’io più sicuro esser credea- v. 76). Pádua foi fundada, de
acordo com a lenda, por esse troiano
que traiu sua cidade em favor dos interesses gregos (por isso Dante chama uma
das quatro divisões do mais baixo círculo do Inferno, onde estão os traidores
da pátria, de “Antenora”). Naquela região, em Orïaco, num pântano para onde
fugira, ele foi morto por alguém a mandado de seu inimigo, “aquele de Este” (quel da
Esti- v.77).
Trata-se de Azzo VIII d’Este, conforme os comentaristas, que identificam por
esses dados a pessoa que fala como Jacopo
del Cassero, “podestà” ou principal
magistrado de Bolonha. Note-se que Dante indica quem é esse primeiro espírito a
se manifestar apenas pela menção à sua terra natal, ao local e circunstâncias
de sua morte e ao inimigo dele, autor intelectual do crime.
O segundo a
falar é identificado pelo poeta, no v. 88: trata-se de Bonconte de Montefeltro. Sua narrativa é extensa, abrange os versos
85 a 129.
G.Doré- Buonconte da Montefeltro |
Ele pede a intercessão de Dante junto aos seus conterrâneos, em
Fano, pois Giovanna (sua esposa) e outros não se preocupam com ele. Esse era um
líder militar gibelino, que comandou os aretinos contra os guelfos de Florença
na batalha de Campaldino em 1289. Dante, que quando jovem (aos 24 anos) também
participou dessa batalha, está intrigado com um mistério, que aparentemente
persistiu ao longo do tempo e que devia intrigar também os seus contemporâneos,
o do desaparecimento do corpo de Bonconte. E pergunta o que ocorreu com ele, pois
“jamais se soube de tua sepultura?” (che non
si seppe mai tua sepultura?- v. 93). A maior parte dos
versos seguintes, na realidade, consiste numa explicação do que teria
acontecido a esse cadáver.
Bonconte começa
dizendo que no vale do Casentino passa um riacho chamado Arquiano, que nasce
nos Apeninos e deságua no rio Arno. Foi nessa foz do rio que ele morreu,
pronunciando o nome de Maria:
Là ‘ve ‘l vocabol suo diventa vano,
arriva’ io forato ne la gola,
fuggendo a piede e sanguinando il piano.
Quivi perdei la vista e la parola;
nel nome di Maria fini’, e quivi
caddi, e rimase la mia carne sola. (V,
97-102)
Lá onde
aquela corrente perde o nome/ cheguei, com a garganta perfurada,/ fugindo a pé
e ensanguentando o chão.
Ali
perdi a visão e a fala,/ ao pronunciar o nome de Maria, e ali/ onde caí ficou
somente minha carne.
O “anjo de Deus” então o tomou, enquanto o do Inferno,
ressentido, protestou de que ele levava a sua “parte eterna”, i.e. a alma,
apenas “por uma pequena lágrima” (per una
lagrimetta- v. 107), enquanto ele ficou com o corpo. O demônio,
dotado de inteligência e vontade orientadas para o mal, “moveu o fumo e o vento” (mosse il fummo e ‘l vento- v.
113) para
causar uma chuva torrencial que encheu os rios.
Lo corpo mio gelato in su la foce
trovò l’Archian rubesto; e quel sospinse
ne l’Arno, e sciolse al mio petto la croce
ch’ i’ fe’ di me quando ‘l dolor mi vinse;
voltòmmi per le ripe e per lo fondo,
poi di sua preda mi coperse e cinse. (V,124-129)
que eu
fizera com os braços quando a dor me venceu;/ rolou-me pelas beiras e pelo
fundo,/ depois cobriu-me com seu butim de entulho.
Bonconte era
filho de Guido de Montefeltro, líder gibelino, protagonista do canto XXVII do “Inferno”,
onde estão os “falsos conselheiros”. No final da vida, ele se tornou
franciscano. Após a morte, S. Francisco veio buscá-lo, mas ao contrário do que
ocorreu aqui com o seu filho, foi o diabo quem saiu vitorioso na disputa pela
sua alma.
G.Doré- Pia |
O Canto encerra
com a fala de Pia. O autor da “Divina
Comédia” é elogiado por conseguir sugerir, em tão poucos versos (os transcritos
abaixo), todo o drama dessa mulher, que teve morte violenta, causada pelo
próprio marido. Sua doçura é indicada pelos versos que antecedem o pedido pelas
preces. Diferentemente dos anteriores, ela primeiro pensa no bem-estar de
Dante, no seu repouso, e depois faz o pedido, que aliás é dirigido a ele
próprio, e não a terceiros, parentes ou amigos, o que indica também a sua
solidão (2):
“Deh, quando tu sarai tornato ao mondo
e riposato de la lunga via,”
seguitò ‘l terzo spirito al secondo,
“ricorditi di me, che son la Pia;
Siena me fé, disfecemi Maremma:
salsi colui che ‘nnanellata pria
disposando m’avea con la sua gemma.” (V,
130-136)
“Ah, quando retornares ao mundo/ e repousares
desta longa jornada”, / o terceiro espírito, seguindo o segundo, disse,/
“recorda-te de mim que sou a Pia./ Siena me fez, e Maremma me desfez:/ bem o
sabe aquele que me deu um dia/ o anel de esposa, com a sua gema”.
Pia era possivelmente
da família Tolomei, de Siena, e foi jogada do balcão de um castelo em Maremma
pelo marido, principal magistrado de Volterra e Lucca, por suspeita de adultério
ou para poder se casar com uma rica mulher (3).
(1) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-
p. 327
(2) SAYERS,
Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p.108-109
(3) MANDELBAUM,
Allen- op cit, p. 328.
Amos Nattini |
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