sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Canto VI

PURGATÓRIO


Canto VI 


            Este Canto abre com uma imagem curiosa, a dos jogadores de zara, um jogo medieval apoiado no lançamento de dados. Quando acaba, todos se reúnem em torno do vitorioso, pressionando-o para obter dele algum dinheiro, enquanto o perdedor fica sozinho num canto, refazendo todos os lances e aprendendo a lição. O poeta se compara ao vitorioso, que só se livra da pressão dos que o rodeiam atendendo à sua expectativa. Também ele só se livrará dos espíritos que o pressionam fazendo-lhes promessas, as de recomendá-los aos vivos, em nosso mundo, para que façam preces em sua intenção. Como ele diz mais adiante, explicitamente.

Come libero fue da tutte quante
quell’ ombre che pregar pur ch’altri prieghi,
sì che s’avacci lor divenir sante,

io cominciai: /.../    (VI, 25-28)

Logo que fiquei livre daquelas sombras/ que pediam as preces alheias/ para apressar a sua santificação,/

comecei: /.../

Amos Nattini
             O poeta pergunta a Virgílio sobre uma passagem da “Eneida” em que os deuses parecem inflexíveis, sem se dobrar às súplicas dos homens, negando assim que “a oração dobre decreto do céu” (che decreto del ciel orazion pieghi- v. 30), como acreditam todos os que estão ali, purgando as suas faltas. Mas Virgílio lhe diz que “a esperança deles não é ilusória” (e la speranza di costor non falla- v. 35), deixando implícito que isso só valia para o paganismo, a época anterior à vinda de Cristo. Mas Beatriz lhe esclarecerá melhor essa questão, diz ele, ela “que será lume entre a verdade e o teu intelecto” (che lume fia tra ‘l vero e lo ’ntelletto- v. 45).   

            Antes disso, porém, Dante cita meia dúzia daqueles espíritos que o pressionavam, os quais são referidos rapidamente, em poucas palavras. Na época, deviam ser facilmente identificados pelos leitores/ouvintes do poema. Hoje precisamos das notas dos comentadores para saber quem eram eles. Todos tiveram morte violenta: 1) um juiz aretino assassinado pelo bandido Ghino di Tacco porque condenou um parente deste;  2) um outro aretino que se afogou no Arno, perseguindo os inimigos, ou sendo perseguido por eles (o verso é ambíguo); 3) Federigo Novello, citado nominalmente, morto pelos guelfos de Arezzo; 4) um nativo de Pisa, assassinado pelo Conde Ugolino (personagem do Canto XXIII do “Inferno”), perdoado pelo pai de Federigo, Marzucco, que havia se tornado franciscano;  5) o Conde Orso, morto pelo primo, em decorrência da luta que travavam os pais de ambos; e finalmente 6) Pier de la Broccia, também citado nominalmente, médico e ecônomo de Frederico III de França, com quem caiu em desgraça, e acabou sendo enforcado, por causa das intrigas da  segunda esposa do rei, a “dama de Brabante” (1).  Aliás, quanto a esta, que ainda estava viva em 1300 (ano em que se passa a ação da “Comédia”), Dante a adverte nestes termos, pois ela corre o risco de ir para o Inferno:  

Pier da la Broccia dico; e qui proveggia,
mentr’ è di qua, la donna di Brabante,
sì che però non sia di peggior greggia. (VI, 22-24)   

Era Pier de la Broccia; e que/ a dama de Brabante, enquanto estiver aqui (no mundo dos vivos),  providencie/ para que não acabe em pior grei!

            Prosseguindo em sua jornada, quando o movimento do Sol indica que a tarde avança, os dois poetas avistam uma alma sozinha, que olha para eles. Diz Virgílio: “ela nos indicará a via mais curta” (quella ne ‘nsegnerà la via più tosta- v.60). Dante compara essa alma -- que vai se identificar como Sordello no v. 74 (um famoso trovador do século XIII, que escreveu em provençal) (2) -- a um leão em repouso:

Venimmo a lei: o anima lombarda,
come ti stavi altera e disdegnosa
e nel mover de li occhi onesta e tarda!

Ella non ci dicëa alcuna cosa,
ma lasciavane gir, solo sguardando
a guisa di leon quando si posa.  (VI, 61-66)

Fomos até ela: ó alma lombarda,/ como tu estavas altiva e desdenhosa/ e no mover dos olhos digna e lenta!/
Ela não nos disse nada./ Deixou-nos passar, só nos olhando/ à guisa de leão quando repousa. 

            Quando Sordello fica sabendo que Virgílio é de Mântua, ele se ergue no mesmo instante para se confraternizar com o conterrâneo: “O mantuano, eu sou Sordello, da tua terra!” (O Mantoano, io son Sordello/ de la tua terra!”- v.74-75).  



Cesare  Zocchi- Dante e Virgílio encontram Sordello, 1896, Trento

Logo na sequência, em contraste a essa manifestação de entusiasmo entre os dois pelo simples fato de serem da mesma terra, Dante-autor inicia seu longo discurso crítico à Itália de seu tempo, cujos cidadãos viviam em conflito permanente, como seres irracionais, pois “um ao outro rói(/../.e l’un l’altro si rode- v.83). Sua crítica à Itália e depois a Florença estende-se até o final do Canto. A partir do v. 76 ele passa a dirigir-se diretamente à Itália, chamada sucessivamente de “albergue da dor” (di dolore ostello- v.76), “navio sem piloto em grande tempestade” (nave sanza nocchiere in gran tempesta- v.77), “senhora não de províncias mas de bordel” (non donna di provincie, ma bordello!- v.78),  animal rebelde “por não ser corrigido pelas esporas” (per non esser corretta da li sproni- v.95)  de um César que deveria sentar na sela vazia, carente de um imperador. Dante lembra aqui Justiniano, o imperador romano do Oriente, do séc. VI  e cristão, que codificou as leis do Império:

Che val perché ti racconciasse il freno
Iustinïano , se la sella è vòta?
Sanz’esso fora la vergogna meno.  (VI, 88-90)

De que valeu Justiniano consertar teu freio/ se a sela está vazia?/ Sem ele a vergonha seria menor.  

            Mas a Itália estava agora subordinada ao Sacro Império Germânico-Romano, cujo imperador, negligente, não se interessava por ela. Essa é a essência da crítica do poeta a “Alberto tedesco” (v.97), que também se aplicava ao pai deste (Rodolfo). Ambos (pertencentes à dinastia Habsburgo)  abandonaram o “jardim do Império” (giardin de lo ‘mperio- v. 105) à sua própria sorte, mais preocupados com outros territórios sob seu domínio. Temos aqui mais uma das diversas imagens (metáforas) que Dante evoca para caracterizar a Itália “serva” e “mísera” (v. 76 e 85) de seu tempo, cuja situação anárquica ele quer ver mudada pela ação efetiva de um imperador. Dante crítica também a gente que devia “ser devota”, i.e. a Igreja, por imiscuir-se em assuntos temporais, sem atender ao que “Deus ordena” (v.93), vale dizer, sem observar o princípio evangélico (Marcos, 12: 16-17) da separação entre os poderes temporais e espirituais (“Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”).  

            Nos versos seguintes (a partir do v. 106), iniciados por anáforas (repetição de “vem ver” – viene a veder -- três vezes) o poeta dirige-se ao imperador Alberto (“ó homem negligente”- v.107;  “ó cruel”-v.109). Convida-o a vir para ver representantes de diversas famílias aí citadas em luta permanente, pois são guelfas e gibelinas segundo os comentadores; convida-o ainda a vir curar os males de seus nobres, a ver como está sua Roma, a ver como o povo se ama (cf. a ironia, que será explorada mais adiante), convida-o a vir para se envergonhar da situação que encontrará.  Na referência a Roma, ela é assim personalizada:

Vieni a veder la tua Roma che piagne
vedova e sola, e dì e notte chiama:
“Cesare mio, perché non m’accompagne?”  (VI, 112-114)

Vem ver a tua Roma que chora,/ viúva e só, que dia e noite chama:/ “Ó César meu, por que não estás aqui comigo?”  

            Dada a situação crítica que mostrou, o poeta pergunta a Deus/ Cristo (invocado pela expressão “ó sumo Jove”- o sommo Giove- v. 118) se ele desviou  “os justos olhos” (li giusti occhi- v. 120) de sua terra. Ou então esse é mais um dos mistérios que mostram os limites da razão humana, cuja insuficiência é reconhecida pelo poeta florentino:

O è preparazion che ne l’abisso
del tuo consiglio fai per alcun bene
in tutto de l’accorger nostro scisso?  (VI, 121-123)

Ou preparas, no abismo/ de tua mente, algum bem,/ em tudo distante da nossa compreensão?  

            A partir do v. 127, até o fim do Canto, Dante volta-se para a sua  Florença natal, usando intensamente a ironia, bem evidente nas observações abaixo, contidas nos versos citados:

-- a crítica antes feita à Itália não diz respeito a ela:
Fiorenza mia, ben puoi esser contenta/ di questa digression che non ti tocca- v. 127-128
Florença minha, bem podes ficar contente/ por esta digressão, que não te toca

-- seu povo tem a justiça no coração, na boca, mas é cauteloso em colocá-la  em prática:
Molti han giustizia in cuore, e tardi scocca/ per non venir sanza consiglio a l’arco; v. 130-132)
Muitos têm a justiça no coração, e são lentos/ para não se precipitarem em disparar o arco;

-- seu povo é solícito e assume logo encargos públicos (na realidade, seu povo é ávido pelo poder):
ma il popol tuo solicito risponde/ sanza chiamare, e grida: “I’ mi sobbarco!”- v. 134-135
ma o povo teu, solícito, responde/ sem ser chamado, e grita: “Eu assumo!”

-- é rica, vive em paz e é sensata (é rica mas não vive em paz nem é sensata):
--tu ricca, tu con pace e tu con senno!- v. 137
tu rica, tu com paz e tu com bom senso!

-- o progresso de Florença quanto ao bem viver é superior ao de Atenas e Esparta, que foram tão civilizadas:
Atene e Lacedemona, che fenno/ l’antiche leggi e furon sì civili,/ fecero al viver bene un picciol cenno/ verso di te /.../ - v. 139-142
Atenas e Esparta, que promulgaram/ as antigas leis e foram tão civilizadas,/ fizeram quanto ao bem viver um progresso pequeno/ comparado ao teu /.../   

            Nos últimos versos, Florença -- que apesar de sua prosperidade, sofre dos males antes apontados -- é comparada a uma mulher rica (cf seu “leito de plumas”- v. 150) (3) mas doente, que se revira na cama, para atenuar a dor desses males:

E se ben ti ricordi e vedi lume,
vedrai te somigliante a quella inferma
che non può trovar posa in su le piume,

ma con dar volta suo dolore scherma.  (VI, 148-151)

E se bem te recordas e vês claro/ verás a ti semelhante àquela enferma/ que não encontra repouso em seu leito de plumas/

e se defende da dor mudando de posição.



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.329.

(2) Id. ibid, p.330  

(3) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 59.    



John Flaxman- Encontro com Sordello 

Salvador Dalí



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