sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Canto II

PURGATÓRIO


Canto II 

           
            Nos versos iniciais deste Canto, para dizer que nascia o sol no Purgatório, Dante usa uma longa perífrase. Refere-se aí a Jerusalém, situado no mesmo meridiano que a montanha do Purgatório (embora diametralmente oposta a esta), e também à noite, que se opõe ao sol, ou à aurora personificada (ela é a deusa do amanhecer na mitologia clássica) presente nessa hora naquele lugar. De onde Dante estava, ele a vê mudando de cor, à medida que o tempo passa:

/.../ le bianche  e le vermiglie guance,
là dov’ i’ era, de la bella Aurora
per troppa etate divenivan rance.   (II, 7-9)

/.../ do lugar onde eu estava,/ as faces brancas e rubras da bela Aurora/ por muita idade tornavam-se amareladas.

            A noite também é personificada. Os versos afirmam que a Balança (ou Libra, a constelação) “cai de suas mãos quando ela vence o dia” (che le caggion di man quando soverchia- v. 6), quer dizer, quando a primavera atual passar, e a extensão da noite for maior que a do dia (i.e.“vencê-lo”), no equinócio de outono no hemisfério Norte. A noite então não estará mais em Libra e sim o sol  (no equinócio de primavera a noite é aproximadamente igual ao dia em extensão, o sol está em Áries e a noite, oposta a ele, está em Libra) (1).  Essa passagem dá uma ideia de como Dante faz uso, às vezes, do saber astronômico/astrológico de sua época...  


G.Doré- O barco

            Os dois poetas estão junto ao mar, na base da montanha do Purgatório. Dante diz que sua visão é atingida então por uma luz muito forte e veloz, que vem do mar, e também por uma alvura intensa, que vai se definindo aos poucos, começando por identificar-se como as asas de um anjo. Trata-se de um “anjo de Deus” (angel di Dio- v.29), um “barqueiro celestial” (celestial nocchiero- v. 43), que traz mais de cem almas para o Purgatório (v.45). Ele as transporta desde a foz do Tibre (v. adiante, v. 101), o rio que banha Roma, a cidade sagrada para Dante, sede da Igreja e do Império, em cujo âmbito geográfico e de dominação política nasceu Jesus Cristo. Para esse local vão os mortos que se arrependeram dos pecados em tempo. Eles aguardam ali o seu traslado, do hemisfério Norte onde está Roma, para a montanha do Purgatório, no hemisfério Sul.

            Quando Virgílio reconhece o timoneiro, manda rapidamente seu discípulo ajoelhar-se e juntar as mãos, pois trata-se de um anjo de Deus. À medida que este se aproxima dos dois, Dante é obrigado a abaixar os olhos, por não suportar a intensidade da luz que dele emanava:

Poi, come più e più verso noi venne
l’uccel divino, più chiaro appariva;
per che l’occhio da presso nol sostenne,

ma chinail giuso; /.../   (II, 37-40)

Depois, como mais e mais se aproximava de nós/ a ave divina, mais clara parecia;/ de modo que meus olhos não podiam sustentar tal visão/ e fui forçado a abaixá-los; /.../


G.Doré- O barqueiro celestial

            Os comentaristas destacam o sentido alegórico desses versos. Dante é obrigado a baixar os olhos porque ainda não está em condições de defrontar-se com a Graça (2). No final do canto, quando Catão reaparece para censurar os recém-chegados, ele vai dizer a eles:  “Correi ao monte a despojar-vos da casca” (Correte al monte a spogliarvi lo scoglio- v. 122), entendendo-se assim que para ascender ao Paraíso e desfrutar da visão da bem-aventurança é necessário toda uma purgação dos pecados que é feita justamente neste secondo regno. A propósito, o termo scoglio, traduzido normalmente por “casca”, em sua forma arcaica é o mesmo que scoglia e significa pele de cobra, que o réptil abandona todos os anos (3).  Assim também o ser humano, para Dante, deve perder tal pele, renovar-se, vale dizer, purificar-se, para evoluir espiritualmente. Esse é o sentido dessa bela metáfora.

            Os mais de cem espíritos que chegam no barco cantam em uníssono (mostrando a sua união por um ideal comum) o salmo 133 que começa com “In exitu Isräel de Aegypto” (v. 46). O salmo é sobre a saída dos judeus do Egito, rumo à Terra Prometida. Aqui também deve ser ressaltado o sentido alegórico: assim como os judeus rumam para esse destino, livres da escravidão no Egito, aos recém-chegados está prometida a sua salvação, o acesso ao Paraíso, uma vez purgados dos pecados, ou seja, libertados deles.   

            O anjo deposita-os na praia, após fazer o sinal da cruz sobre eles, e retorna veloz.  Eles ficam por ali, olhando em torno, “como quem experimenta coisas novas” (come colui che nove cose assaggia- v. 54), uma comparação. Alguns deles perguntam a Virgílio qual é o caminho para subir o monte. Mas este lhes responde que os dois poetas também não conhecem o lugar, que são peregrinos como eles. As almas dão-se conta que Dante ainda é vivo, pela sua respiração, e ficam espantadas com isso, aglomerando-se diante dele. E ocorre aqui uma comparação interessante. A atração que esse fato exerce sobre aquelas almas é semelhante à do mensageiro que traz notícias, portando um ramo de oliveira (antigo costume, símbolo de boas notícias):

E come a messager che porta ulivo
tragge la gente per udir novelle,
e di calcar nessun si mostra schivo,

così al viso mio s’affisar quelle
anime fortunate tutte quante,
quasi oblïando d’ire a farsi belle. (II, 70-75)

E como um mensageiro que porta um ramo de oliveira/ atrai as pessoas para ouvir as novas,/ não se esquivando à aglomeração,/ assim fitaram o meu rosto aquelas/ almas afortunadas, todas elas,/ quase esquecendo de irem fazer-se belas.

            É de se destacar, no v. 75, a identificação da ética com a estética:  as almas libertas do pecado tornam-se belas...    

            Dante então vê uma sombra avançar em sua direção, com grande afeto,  para abraçá-lo. E, ao fazer o mesmo, admira-se porque nas três vezes que tentou fazer isso, suas mãos vieram dar no seu próprio peito (v.80-81), quer dizer, o amigo era apenas uma aparência, sem um corpo sólido. Essa é uma passagem impressiva que Dante-autor inclui para certamente nos relembrar da natureza sobrenatural do ambiente em que eles estão agora. Essa passagem é imitada de uma outra, da “Eneida” de Virgílio, que é assim homenageado pelo poeta florentino.  (4)  

            A sombra em questão é o músico Casella, amigo e colaborador de Dante, que se supõe colocou em música várias de suas “canções”. Dante, ao responder a uma pergunta dele, afirma que faz esta viagem “a fim de retornar/ para lá de onde eu sou”:

“Casella mio, per tornar altra volta
là dov’ io son, fo io questo viaggio” ,
diss’ io; /.../                                         (II, 91-93)


            Isso tem um sentido ambíguo, segundo os comentaristas, pois significa tanto o que é dito literalmente como que Dante acreditava que virá (retornará) ao Purgatório após a sua morte.  Aliás, já antes, no v.16, ele expressara seu desejo de ver de novo aquela luz intensa e veloz, a do anjo de Deus trazendo as almas para o Purgatório:

cotal m’apparve, s’io ancor lo veggia,
un lume per lo mar venir sì ratto,
che ‘l muover suo nessun volar pareggia (II, 16-18)  

assim me pareceu – e possa eu vê-la de novo --/ uma luz vinda pelo mar tão rapidamente/ que nenhum voo de pássaro a igualaria

            Casella lhe explica depois que foi recolhido lá “onde a água do Tibre se salga” (dove l’acqua di Tevero s’insala- v. 101), quer dizer, onde o rio romano desemboca no mar, e que o anjo de Deus sempre recolheu ali aqueles que não foram condenados ao Inferno (aqui referido pelo rio utilizado por Caronte, uma metonímia):

A quella foce ha elli  or dritta l’ala,
però che sempre quivi si ricoglie
qual verso Acheronte non si cala. (II, 103-105)

Àquela foz ele endireita a asa/ uma vez que sempre ali se recolhem/ aqueles que não descem ao Aqueronte.

            Note-se que, no início tanto do Inferno quanto do Purgatório as situações são equivalentes. Iniciam pelo transporte dos mortos, uns desesperados e outros, esperançosos de salvação. Porém há diferenças não só quanto à figura do barqueiro mas também quanto ao comportamento das almas transportadas.

            Na sequência, Dante pede a Casella para ouvir o canto deste “que costumava aquietar os meus anseios” (che mi solea quetar tutte mie voglie- v.108) Casella então começa a cantar “Amor que na mente me fala” (Amor che ne la mente mi ragiona- v. 112), início de uma “canzone” de Dante que integra seu livro “Convivio” (“Banquete”).  Ele canta tão suavemente que atrai a atenção de todos que estão ali, esquecidos do  propósito de sua jornada, o que provoca a repreensão do “veglio onesto”.  Dante via a Arte como capaz de aliviar as nossas aflições, como mostra a observação que faz a Casella, ao formular o seu pedido. Mas certamente acreditava que esse era um conforto passageiro. O conforto permanente para a sua alma inquieta só seria dado num plano superior, transcendental, quando a estética se fundisse com a ética, no Paraíso. É por isso que ele e seu mestre fazem o mesmo que o bando de espíritos, após serem repreendidos por Catão, vale dizer, também partem rapidamente em busca da montanha do Purgatório (v. 133), interrompendo o desfrute do canto de Casella.   

            O canto conclui com outra bela imagem (a partir do v. 124). Dante compara o que ocorre em seguida à censura de Catão -- a rápida dispersão daquele bando de espíritos, em busca da encosta da montanha -- com pombos que inicialmente estão bicando grãos ou ervas e de repente, ao surgir uma ameaça, alçam voo, deixando para trás sua comida.  
       

NOTAS

(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p. 321

(2) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri- “La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini,  2013-  p. 406  

(3) Id., ib., p. 409

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 321-322.



Amos Nattini
S.Dalí- Ilustração para o canto II do Purgatório.

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