A segunda parte
da “Comédia” inicia situando Dante e seu guia, recém saídos do Inferno, em
determinado ponto da montanha do Purgatório, na madrugada do Domingo de Páscoa
de 1300 (1). Dali eles contemplam novamente o céu. Essa montanha ergue-se na
única ilha do hemisfério Sul, pois todo o restante dele é tomado pela água. A
ilha localiza-se em região antípoda a Jerusalém. Toda a população do nosso mundo
vive no hemisfério Norte.
O autor cantará
agora o Purgatório, o “segundo reino”, onde se purgam da mácula do pecado as
almas daqueles que morreram arrependidos, possibilitando assim que elas sejam
dignas de subir ao Paraíso:
e canterò di quel secondo regno
dove l’umano spirito si purga
e di salire al ciel diventa degno (I,
4-6)
e
cantarei aquele segundo reino/ onde a alma humana se purga/ e se torna digna de
subir ao céu
Dante invoca as
musas para ajudá-lo nessa tarefa, especialmente Calíope, a musa da poesia
épica. Explora, nesses versos iniciais, duas metáforas, a do seu engenho (navicella-
v. 2) e a
do Inferno (mar sì crudelle- v. 3):
Per correr miglior acque alza le vele
omai la navicella del mio ingegno,
che lascia dietro a sé mar sì crudele; (I,
1-3)
Para
singrar melhores águas alça as velas/ agora o naviozinho do meu engenho,/
deixando atrás de si mar tão cruel;
O poeta rejubila-se em admirar novamente o céu, a “doce cor da oriental safira” (Doce color d’orïental zaffiro- v. 13), o planeta do amor (Vênus, que “fazia sorrir todo o oriente”- faceva tutto rider l’orïente- v. 20, uma personificação deste), a constelação de Peixes e as “quatro estrelas”, interpretadas como o Cruzeiro do Sul, pois o hemisfério Norte, personificado, é chamado de “viúvo” (vedovo- v. 26) por estar impedido de apreciá-las (outra metáfora).
Gustave Doré- Vênus |
O poeta rejubila-se em admirar novamente o céu, a “doce cor da oriental safira” (Doce color d’orïental zaffiro- v. 13), o planeta do amor (Vênus, que “fazia sorrir todo o oriente”- faceva tutto rider l’orïente- v. 20, uma personificação deste), a constelação de Peixes e as “quatro estrelas”, interpretadas como o Cruzeiro do Sul, pois o hemisfério Norte, personificado, é chamado de “viúvo” (vedovo- v. 26) por estar impedido de apreciá-las (outra metáfora).
Depois disso, Dante nota a presença ali
de um velho, com barba e cabelos longos e grisalhos. Seu rosto é iluminado
pelos raios das “quatro luzes santas”
(e não pelo Sol). Segundo alguns comentaristas, le quattro luci sante (v.37) seriam uma alegoria das quatro
virtudes cardeais (prudência, justiça, coragem e temperança), as virtudes dos
pagãos justos, que viveram antes de Cristo, desconhecendo portanto as virtudes
teologais (fé, esperança e caridade). O velho é identificado como o estoico
Catão de Útica, que se integrou às forças políticas adversárias de Júlio César e
que foram derrotadas por este. Catão prezava
tanto sua liberdade que preferiu suicidar-se a viver sob a ditadura de César, responsável
pela extinção da República romana.
Catão pergunta quem são eles que ali
estão, vindos do Inferno, e se indaga se não valem mais as leis do céu,
tornando isso possível agora:
Son le leggi d’abisso così rotte?
o è mutato in ciel novo consiglio,
che, dannati, venite a le mie grotte? (I,
46-48)
São as
leis do abismo assim quebradas?/ ou há no céu novo conselho/ que permite aos
danados vir às minhas grotas?
Virgílio, reconhecendo o guardião do
Purgatório, antes de lhe responder, toma seu discípulo pelo braço “e com palavras, mãos e acenos” (e con parole e con
mani e con cenni - v. 50,
um polissíndeto) o faz reverente ao
velho.
O guia de Dante explica a Catão porque estão ali. Afirma que ele atende ao pedido de uma dama que desceu do céu (Beatriz) para lhe externar sua preocupação com a salvação de seu protegido, que andava extraviado do bom caminho. Este, ainda vivo, já percorreu o Inferno e agora deve seguir em frente, avançando assim em sua evolução espiritual. Este é o único caminho que Dante deve seguir para alcançar aquele objetivo:
Gustave Doré- Catão de Útica |
O guia de Dante explica a Catão porque estão ali. Afirma que ele atende ao pedido de uma dama que desceu do céu (Beatriz) para lhe externar sua preocupação com a salvação de seu protegido, que andava extraviado do bom caminho. Este, ainda vivo, já percorreu o Inferno e agora deve seguir em frente, avançando assim em sua evolução espiritual. Este é o único caminho que Dante deve seguir para alcançar aquele objetivo:
/.../ e non lì era altra via
che questa per la quale i’ mi son messo (I, 62-63)
/.../ e
não havia outra via/ senão esta que tomei
Esses versos reiteram aqui o sentido
alegórico de toda a “Comédia”, em suas três partes: a jornada de Dante
representa, na realidade, o itinerário percorrido pela sua alma para alcançar a
salvação.
Assim, Virgílio pede que Catão lhes
permita agora percorrer o Purgatório, “os
seus sete reinos” (li
tuoi sette reigni- v. 82), reino
aqui equivalendo a cada um dos terraços da montanha correspondentes aos sete
pecados capitais), possibilitando a Dante a libertação dos seus pecados
(sentido alegórico de sua jornada). Ele pede isso a alguém que valoriza tanto a
liberdade a ponto de renunciar a viver uma vida em que ela não mais existisse.
Tu ‘l sai, ché non ti fu per lei amara
in Utica la morte, ove lasciasti
la vesta ch’al gran dì sarà sì chiara (I,
73-75)
Tu o
sabes, pois não te foi amara/ em Útica a morte, onde deixaste, por ela,/ a
veste que no grande dia será tão clara.
Temos aqui outra metáfora, ao Dante
considerar o corpo de Catão como vestimenta (invólucro da alma), que no “grande dia” -- i.e. no dia do Juízo
Final -- será clara, brilhante, será o corpo transcendental com que os mortos
ressuscitarão (2).
Virgílio faz o seu pedido apelando
pelo amor de Catão por Márcia, sua esposa, que também está no Limbo. Quando
Virgílio retornar para lá, ele diz, elogiará para ela a atitude de Catão
(Virgílio também pertence a essa região do Inferno, no 1º círculo, local dos
pagãos justos que viveram antes da vinda de Cristo, e por isso não foram
beneficiados pela abertura das portas do Paraíso aos seres humanos que o seu sacrifício
propiciou). Mas Catão lhe diz que, na
condição atual (ao contrário de quando vivia em nosso mundo), isso lhe é
indiferente, pois quem está onde ele está agora, de acordo com as leis celestes,
é indiferente ao que se passa além do “mau
rio” (mal
fiume- v.88, o rio
Aqueronte, do Inferno). Não é necessário lisonjeá-lo. Catão atenderá ao pedido
de Virgílio já que este segue as ordens daquela dama do céu. Manda-o assim
prosseguir sua jornada e faz, ao mesmo tempo, uma recomendação:
Va dunque, e fa che tu costui ricinghe
d’un giunco schietto e che li lavi ‘l viso,
sì ch’ogne sucidume quindi stinghe; (I,94-96)
Vá,
pois; cinge este homem/ de um junco limpo, e seu rosto lave,/ de modo que toda
sujeira dali se extinga;
O junco, segundo antigos
comentaristas (3), era o símbolo da humildade. Assim, Dante, para percorrer o
Purgatório deve humilhar-se, i.e. submeter-se à lei divina e reconhecer a sua
condição de pecador, lavando do rosto todas as marcas deixadas nele pela sua
travessia do Inferno.
Catão, nessa mesma oportunidade, informa
que eles encontrarão juncos na base da montanha, e é por lá que eles deverão
iniciar a sua subida na montanha do Purgatório, num caminho iluminado pelo Sol
(o simbolismo deste está sempre associado a Deus):
le sol vi mosterrà, che surge omai,
prendere il monte a più lieve salita. (I,
107-108)
o sol,
que surge agora, vos mostrará/ mais leve subida neste monte.
Após dizer isso, Catão desaparece. Os dois poetas fazem
então o que ele dissera. Descem à base da montanha. Lá, Virgílio estende as
mãos sobre a relva úmida de orvalho e as passa sobre “as faces lacrimosas” (le guance lagrimose- v. 127) de Dante, revelando nelas “a cor que o Inferno escondera” (quel color che
l’inferno mi nascose- v. 129).
Chegando à praia deserta, Virgílio cinge
Dante com junco.
O canto é concluído com uma
referência mágica, que tem a graça própria das histórias infantis: tão logo
Virgílio arranca a planta, para cingir Dante com ela, outro junco nasce no mesmo lugar, imediatamente...
S.Dalí- Ilustração para o canto I do Purgatório |
(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an
Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p.7
(2) SINCLAIR, John D.-- “The Divine Comedy of Dante Alighieri” with
translation and comment by John D. Sinclair- II. Purgatorio- New York: Oxford University Press, 1961- p.
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Estou lendo a Divina Comédia e descobri seu blog! Seus comentários têm me ajudado a compreender melhor a obra de Dante. Sóleio com o seu blog junto. Obrigada por partilhar aeu conhecimento!
ResponderExcluirEstou fazendo o mesmo e descobrir esse blog foi uma maravilhosa surpresa. Um primor os comentários e a reunião das imagens. Tornou a experiência de ler outra.
ExcluirEstou lendo também o livro nesse momento. Este blog torna a experiência ainda mais gratificante. Sou muito grato ao autor.
ResponderExcluirEstou lendo o Purgatório e sua ajuda é essencial!
ResponderExcluirFiquei contente com o seu comentário, e os anteriores. Eles são a melhor retribuição que eu poderia ter ao trabalho de elaborar os textos do blog.
ResponderExcluirTerminei o "Inferno" acompanhando cada Canto pelo outro blog. Que desespero, não localizar lá os comentários para o Purgatório! E que felicidade me deparar com este blog próprio, ao procurar os demais sites do sr. Domingos. Muito obrigado, seu auxílio é fundamental a um bom aproveitamento da obra!
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