quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Canto XII

PURGATÓRIO


Canto XII


Os orgulhosos, Oderisi- G. Doré 
  
            O Canto XII inicia com uma comparação: a situação de Dante curvado, acompanhando Oderisi, andando emparelhado a ele, é comparada à de “bois andando sob a canga” (Di pari, come buoi che vanno a giogo- v.1). Mas isso dura o tempo que Virgílio lhe concede. Quando porém seu mestre -- o “doce pedagogo” (il dolce pedagogo- v.3) -- lhe diz que deve deixar Oderisi para trás e avançar, “pois aqui é bom cada um, com asas e com remos,/ impelir sua barca o quanto pode” (ché qui è buono con l’ali e coi remi,/ quantunque può, ciascun pinger sua barca- v. 5-6), ajudado pela graça (asas) e pelo esforço próprio (remos) (1), Dante endireita o corpo de novo e recomeça a marcha, seguindo o seu guia. Sente-se contudo mais humilde, com pensamentos “submissos e esvaziados” (do orgulho) (/.../ i pensieri/ mi rimanessero e chinati e scemi- v. 8-9), como decorrência, certamente, de sua “purgação” simbólica (o tempo em que acompanhou, curvado, Oderisi), no âmbito da alegoria proposta pelos versos em questão.  

            Este Canto conclui a abordagem do primeiro terraço (ou “cornija”), onde estão os que purgam o pecado da soberba, considerado o pior dos sete pecados capitais, abordagem essa iniciada no Canto X.  O Canto XII apresenta treze exemplos de notórios orgulhosos punidos, extraídos da mitologia clássica, da história, da literatura ou da Bíblia, cujas imagens representativas estão gravadas no pavimento do caminho percorrido pelos penitentes, obrigados a olhar para o chão pelo peso que carregam. Assim, enquanto purgam seu pecado, são-lhes apresentados esses treze casos para reflexão (no canto anterior, ao chegar, os penitentes viram três casos de humildade – a virtude oposta ao pecado do orgulho -- esculpidos na parede da cornija).  

W. Blake
            Assim como no piso das igrejas antigas as pessoas leem informações sobre aqueles que ali embaixo estão sepultados, também os penitentes do primeiro terraço veem as imagens gravadas no pavimento por onde caminham.  A partir do v. 25, cada terceto corresponderá a um desses casos (Dante fará aqui, nos vv. 25-63,  uma demonstração de sua maestria formal).  Os quatro primeiros tercetos, cujos versos iniciais começam com V (Vedëa...), referem-se a Lúcifer, Briareu, outros gigantes que ousaram atacar os deuses no monte Olimpo e ao presunçoso Nemrod, que construiu a Torre de Babel para assim alcançar o céu. Lúcifer, o mais belo dos anjos, liderou uma rebelião contra Deus e por isso foi punido:  

Vedëa colui che fu nobil creato
più ch’altra creatura, giù dal cielo
folgoreggiando scender, da l’un lato.  (XII, 25-27)

Via, de um lado, aquele que foi criado/ mais nobre do que outras criaturas,/ cair do céu como um raio.

Níobe e seus filhos- A.Bloemart, 1591
             No grupo seguinte, os quatro tercetos, que começam com o vocativo O, tratam respectivamente de Níobe, Saul, Aracne e Roboão, dois personagens mitológicos e dois bíblicos. Níobe, mulher do rei de Tebas, mãe de sete filhos e sete filhas, vangloriou-se de ser superior à deusa Latona, que só havia gerado Apolo e Diana.  Estes então mataram a flechadas todos os filhos de Níobe, que foi transformada em estátua de pedra, sempre a chorar  (2):

O Nïobè, con che occhi dolenti
vedea io te segnata in su la strada,
tra sette e sette tuoi figliuoli spenti!   (XII, 37-39)

Ó Níobe, com que olhos plangentes/ eu te via gravada no pavimento da estrada/ entre teus sete filhos e sete filhas mortos!

Aracne- G. Doré

            Aracne, por sua vez, orgulhosa de seus trabalhos de tecelagem, desafiou Minerva para uma competição. A deusa, enraivecida por não poder superá-la, levou-a ao desespero e ela acabou se enforcando. Minerva transformou-a  então em aranha, e a corda utilizada, em sua teia (3). 

            Quanto aos personagens bíblicos, Saul, primeiro rei de Israel, que desobedeceu Deus, aparece caído sobre a própria espada, pois foi assim que ele se suicidou, após ser derrotado numa batalha (4). E Roboão, filho de Salomão, aparece fugindo num carro. Sua arrogância no reinado de Israel fez com que a população se rebelasse contra ele (5).

            Nos quatro tercetos seguintes, que iniciam pela letra M (Mostrava...), aparecem nas cenas, em primeiro lugar, Alcmeón, que matou a sua vaidosa mãe Erifile porque ela revelou, em troca de um colar, o local em que estava escondido o pai dele, marido dela, o que levaria à morte deste na guerra de Tebas (6). 

            Em seguida, é mostrada a morte, pelas mãos dos próprios filhos, do rei assírio Senaqueribe, outro personagem bíblico, que lutou contra o reino de Judá. Também está representada na pedra a vingança da rainha dos citas, Tamíris, que decapitou Ciro, rei dos persas (assassino do filho dela), e mergulhou sua cabeça num vaso cheio de sangue, dizendo as palavras que constam abaixo:

Mostrava la ruina e ‘l crudo scempio
che fé Tamiri , quando disse a Ciro:
“Sangue sitisti, e io di sangue t’empio.”   (XII, 55-57)

Mostrava a devastação e o massacre/ que fez Tamíris, quando disse a Ciro:/ “Tiveste sede de sangue, e eu de sangue te sacio”.

            O último caso desse grupo de tercetos, também extraído da Bíblia,  mostra a fuga dos assírios, depois da morte de Holofernes, general do exército do rei Nabucodonosor, inimigo dos judeus e seu Deus. Quando estes  estavam sitiados em Bethulia, a bela viúva Judite entrou em sua tenda e enquanto ele dormia, cortou-lhe a cabeça (7).

            O décimo-terceiro, e último exemplo, é dado por Troia (ou Ilium), também arruinada pela sua soberba, como ocorreu em todos os outros casos.  Cada verso do terceto relativo à cidade (v.61-63) começa com as letras V, O, M, que antes iniciaram, como vimos, os quatro grupos de tercetos. Como V é equivalente a U, o acróstico forma “uom” (uomo) ou seja “homem”. Assim, nesse terceto-síntese, o orgulho segundo Dante é tão presente no ser humano, tão associado a ele, que a palavra “uom” é utilizada como seu sinônimo.  

            Dante admira-se com a qualidade e o realismo das cenas entalhadas, em que “os mortos pareciam mortos e os vivos, vivos” (Morti li morti e i vivi parean vivi:-v.67), e se pergunta, retoricamente (pois sabe de sua autoria divina),

Qual di pennel fu maestro o di stile
che ritraesse l’ombre e ‘ tratti ch’ ivi
mirar farieno uno ingegno sottile?    (XII, 64-66)  

Qual foi o mestre do pincel ou do estilete/ que traçou essas sombras e contornos/ para a admiração de um engenho sutil?

            Na sequência, Virgílio lembra ao seu discípulo, distraído por essas cenas, que “retorna/ do serviço do dia a sexta serva” (/.../ vedi che torna/ dal servigio del dì l’ancella sesta- v.80-81), indicando assim que já era meio-dia daquela segunda-feira de Páscoa, pois nos pressupostos do poema cada hora é considerada uma “serva” do Sol, e  cada dia inicia às seis horas. A referência a “ancella” é sugestão de humildade e está contida nas palavras de Maria para o Anjo da Anunciação: “Ecce ancilla Dei” (cf. Canto X, v. 44) como assinala um comentarista (8). Essa menção ocorre justamente quando Virgílio manda Dante ficar atento porque vem na direção deles um anjo (o “anjo da humildade”) e por isso ele deve mostrar-se reverente, “para que lhe agrade mandar-nos para cima” (sì che i diletti lo ‘nvïarci in suso;- v. 83). O anjo porém mostra-se bastante receptivo:

Le braccia aperse, e indi aperse l’ale;
disse: “Venite: qui son presso i gradi,
e agevolemente omai si sale”.   (XII, 91-93)

Abriu os braços e depois, as asas;/ então disse: “Vinde, os degraus estão próximos/ e doravante se sobe facilmente

            Após o penitente vencer o seu orgulho, a subida será mais fácil. O anjo se admira que poucos aceitem o convite divino para o reino dos céus e Dante, explorando a imagem de fenômenos da natureza (voo de pássaro, efeito do vento), põe na boca do anjo estas palavras: “ó gênero humano, nascido para voar alto,/ por que cais assim com pouco vento?” (o gente umana, per volar sù nata,/ perché a poco vento cosi cadi?- v. 95-96)

Amos Nattini
             O anjo os leva para um local “onde a rocha era talhada” (/.../ ove la roccia era tagliata- v. 97), que, embora estreita, representa acesso ao terraço superior. E se retira, após bater com a asa na fronte do poeta (v. 98). Dante-autor aqui compara esse caminho com o do monte onde está a igreja de San Miniato que domina a sua “bem governada” (la ben guidata- v. 102) cidade (cf. a  ironia)...  Ali

si rompe del montar l’ardita foga
per le scalee che si fero ad etade
ch’era sicuro il quaderno e la doga;   (XII, 103-105)

a subida se torna menos áspera/ pelos degraus que foram construídos numa época/ em que eram certos os livros e as medidas

(cf. a crítica social, pois o v. 105 refere-se a casos de corrupção ocorridos na administração de Florença na época de Dante).    

            Os dois poetas se voltam então para aquele caminho enquanto ouvem “Beati pauperes spiritu!” (“Bem aventurados os pobres em espírito”, conforme o Sermão da Montanha), cantado “de um modo tal que não se pode expressar em palavras” (cantaron sì, che nol diria sermone- v. 111). 

            Enquanto sobem os “santos degraus” (li scaglion santi- v. 115), Dante diz a seu guia que se sente agora muito mais leve do que antes. Virgílio lhe explica que isso se deve ao fato de que um dos P da sua testa foi apagado. Subentende-se que isso ocorreu há pouco, quando o anjo a golpeou com a asa. Dante faz, neste final do Canto, mais uma comparação. Após aquelas palavras de Virgílio, ele se compara a uma pessoa que não sabe que tem alguma coisa sobre a cabeça e é alertado pelos outros. Ele então a tateia com a mão “e procura e encontra e executa o serviço/ que a visão não pode prover” (e cerca e truova e quello officio adempie/ che non si può fornir per la veduta;- v. 131-132). Note-se o polissíndeto do v. 131 e o aspecto fortemente visual da imagem.    

            Dante, tateando, leva a mão direita a testa e só encontra seis P gravados, dos sete inscritos pelo anjo que guarda a entrada do Purgatório propriamente dito, como se viu anteriormente. Os seis P que permanecem já estão meio apagados (v.122), o que indica que, segundo Dante, o pecado do orgulho, uma vez vencido, pela submissão a Deus, reduz também o peso dos outros, de acordo com a interpretação dos comentaristas.


NOTAS


(1) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 116.

(2) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.163

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.346

(4) Id., ib, p. 345-346

(5) Id., ib, p. 346

(6) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p.164

(7) Id. ib., p. 164. Cf também MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 346.

(8) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 135-136.



San Miniato al Monte, Florença

Salvador Dalí

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