PURGATÓRIO
Canto XII
Os orgulhosos, Oderisi- G. Doré |
O Canto XII
inicia com uma comparação: a situação de Dante curvado, acompanhando Oderisi, andando
emparelhado a ele, é comparada à de “bois
andando sob a canga” (Di pari, come buoi che vanno a giogo- v.1). Mas isso dura o tempo
que Virgílio lhe concede. Quando porém seu mestre -- o “doce pedagogo” (il dolce pedagogo- v.3) -- lhe diz que deve
deixar Oderisi para trás e avançar, “pois
aqui é bom cada um, com asas e com remos,/ impelir sua barca o quanto pode”
(ché qui è buono con l’ali e coi remi,/ quantunque può, ciascun
pinger sua barca- v. 5-6), ajudado pela graça (asas) e pelo esforço próprio (remos) (1),
Dante endireita o corpo de novo e recomeça a marcha, seguindo o seu guia.
Sente-se contudo mais humilde, com pensamentos “submissos e esvaziados” (do orgulho) (/.../ i pensieri/ mi
rimanessero e chinati e scemi- v. 8-9), como decorrência, certamente, de sua “purgação” simbólica (o
tempo em que acompanhou, curvado, Oderisi), no âmbito da alegoria proposta pelos
versos em questão.
Este Canto conclui
a abordagem do primeiro terraço (ou “cornija”), onde estão os que purgam o
pecado da soberba, considerado o pior dos sete pecados capitais, abordagem essa
iniciada no Canto X. O Canto XII
apresenta treze exemplos de notórios orgulhosos punidos, extraídos da mitologia
clássica, da história, da literatura ou da Bíblia, cujas imagens
representativas estão gravadas no pavimento do caminho percorrido pelos
penitentes, obrigados a olhar para o chão pelo peso que carregam. Assim,
enquanto purgam seu pecado, são-lhes apresentados esses treze casos para
reflexão (no canto anterior, ao chegar, os penitentes viram três casos de
humildade – a virtude oposta ao pecado do orgulho -- esculpidos na parede da
cornija).
W. Blake |
Assim como no
piso das igrejas antigas as pessoas leem informações sobre aqueles que ali
embaixo estão sepultados, também os penitentes do primeiro terraço veem as
imagens gravadas no pavimento por onde caminham. A partir do v. 25, cada terceto corresponderá
a um desses casos (Dante fará aqui, nos vv. 25-63, uma demonstração de sua maestria formal). Os quatro primeiros tercetos, cujos versos
iniciais começam com V (Vedëa...), referem-se a
Lúcifer, Briareu, outros gigantes que ousaram atacar os deuses no monte Olimpo
e ao presunçoso Nemrod, que construiu a Torre de Babel para assim alcançar o
céu. Lúcifer, o mais belo dos anjos, liderou uma rebelião contra Deus e por
isso foi punido:
Vedëa colui che fu nobil creato
più ch’altra creatura, giù dal cielo
folgoreggiando scender, da l’un lato. (XII, 25-27)
Via, de
um lado, aquele que foi criado/ mais nobre do que outras criaturas,/ cair do
céu como um raio.
Níobe e seus filhos- A.Bloemart, 1591 |
No grupo
seguinte, os quatro tercetos, que começam com o vocativo O, tratam respectivamente de Níobe, Saul, Aracne e Roboão, dois
personagens mitológicos e dois bíblicos. Níobe, mulher do rei de Tebas, mãe de sete
filhos e sete filhas, vangloriou-se de ser superior à deusa Latona, que só
havia gerado Apolo e Diana. Estes então mataram
a flechadas todos os filhos de Níobe, que foi transformada em estátua de pedra,
sempre a chorar (2):
O Nïobè, con che occhi dolenti
vedea io te segnata in su la strada,
tra sette e sette tuoi figliuoli
spenti! (XII, 37-39)
Ó
Níobe, com que olhos plangentes/ eu te via gravada no pavimento da estrada/
entre teus sete filhos e sete filhas mortos!
Aracne- G. Doré |
Aracne, por sua
vez, orgulhosa de seus trabalhos de tecelagem, desafiou Minerva para uma
competição. A deusa, enraivecida por não poder superá-la, levou-a ao desespero
e ela acabou se enforcando. Minerva transformou-a então em aranha, e a corda utilizada, em sua
teia (3).
Quanto aos
personagens bíblicos, Saul, primeiro rei de Israel, que desobedeceu Deus, aparece
caído sobre a própria espada, pois foi assim que ele se suicidou, após ser
derrotado numa batalha (4). E Roboão, filho de Salomão, aparece fugindo num
carro. Sua arrogância no reinado de Israel fez com que a população se rebelasse
contra ele (5).
Nos quatro
tercetos seguintes, que iniciam pela letra M
(Mostrava...), aparecem nas cenas, em primeiro lugar, Alcmeón, que matou
a sua vaidosa mãe Erifile porque ela revelou, em troca de um colar, o local em
que estava escondido o pai dele, marido dela, o que levaria à morte deste na
guerra de Tebas (6).
Em seguida, é
mostrada a morte, pelas mãos dos próprios filhos, do rei assírio Senaqueribe,
outro personagem bíblico, que lutou contra o reino de Judá. Também está
representada na pedra a vingança da rainha dos citas, Tamíris, que decapitou
Ciro, rei dos persas (assassino do filho dela), e mergulhou sua cabeça num vaso
cheio de sangue, dizendo as palavras que constam abaixo:
Mostrava la ruina e ‘l crudo scempio
che fé Tamiri , quando disse a Ciro:
“Sangue sitisti, e io di sangue
t’empio.” (XII, 55-57)
Mostrava
a devastação e o massacre/ que fez Tamíris, quando disse a Ciro:/ “Tiveste sede
de sangue, e eu de sangue te sacio”.
O último caso
desse grupo de tercetos, também extraído da Bíblia, mostra a fuga dos assírios, depois da morte de
Holofernes, general do exército do rei Nabucodonosor, inimigo dos judeus e seu
Deus. Quando estes estavam sitiados em
Bethulia, a bela viúva Judite entrou em sua tenda e enquanto ele dormia,
cortou-lhe a cabeça (7).
O
décimo-terceiro, e último exemplo, é dado por Troia (ou Ilium), também arruinada
pela sua soberba, como ocorreu em todos os outros casos. Cada verso do terceto relativo à cidade (v.61-63)
começa com as letras V, O, M, que antes iniciaram, como vimos, os quatro grupos
de tercetos. Como V é equivalente a U, o acróstico forma “uom” (uomo) ou seja
“homem”. Assim, nesse terceto-síntese, o orgulho segundo Dante é tão presente
no ser humano, tão associado a ele, que a palavra “uom” é utilizada como seu sinônimo.
Dante admira-se
com a qualidade e o realismo das cenas entalhadas, em que “os mortos pareciam mortos e os vivos, vivos” (Morti
li morti e i vivi parean vivi:-v.67), e se pergunta, retoricamente (pois sabe de sua autoria
divina),
Qual di pennel fu maestro o di stile
che ritraesse l’ombre e ‘ tratti ch’ ivi
mirar farieno uno ingegno sottile? (XII, 64-66)
Qual
foi o mestre do pincel ou do estilete/ que traçou essas sombras e contornos/
para a admiração de um engenho sutil?
Na sequência, Virgílio
lembra ao seu discípulo, distraído por essas cenas, que “retorna/ do serviço do dia a sexta serva” (/.../
vedi che torna/ dal servigio del dì l’ancella sesta- v.80-81), indicando assim que já
era meio-dia daquela segunda-feira de Páscoa, pois nos pressupostos do poema cada
hora é considerada uma “serva” do Sol, e
cada dia inicia às seis horas. A referência a “ancella” é sugestão de
humildade e está contida nas palavras de Maria para o Anjo da Anunciação: “Ecce ancilla Dei” (cf. Canto X, v. 44)
como assinala um comentarista (8). Essa menção ocorre justamente quando Virgílio
manda Dante ficar atento porque vem na direção deles um anjo (o “anjo da
humildade”) e por isso ele deve mostrar-se reverente, “para que lhe agrade mandar-nos para cima” (sì che
i diletti lo ‘nvïarci in suso;- v. 83). O anjo porém mostra-se bastante receptivo:
Le braccia aperse, e indi aperse l’ale;
disse: “Venite: qui son presso i gradi,
e agevolemente omai si sale”. (XII, 91-93)
Abriu
os braços e depois, as asas;/ então disse: “Vinde, os degraus estão próximos/ e
doravante se sobe facilmente”
Após o
penitente vencer o seu orgulho, a subida será mais fácil. O anjo se admira que
poucos aceitem o convite divino para o reino dos céus e Dante, explorando a
imagem de fenômenos da natureza (voo de pássaro, efeito do vento), põe na boca
do anjo estas palavras: “ó gênero humano,
nascido para voar alto,/ por que cais assim com pouco vento?” (o gente
umana, per volar sù nata,/ perché a poco vento cosi cadi?- v. 95-96)
Amos Nattini |
O anjo os leva
para um local “onde a rocha era talhada”
(/.../ ove la roccia era tagliata- v. 97), que, embora estreita,
representa acesso ao terraço superior. E se retira, após bater com a asa na
fronte do poeta (v. 98). Dante-autor aqui compara esse caminho com o do monte
onde está a igreja de San Miniato que domina a sua “bem governada” (la ben guidata- v. 102) cidade (cf. a ironia)... Ali
si rompe del montar l’ardita foga
per le scalee che si fero ad etade
ch’era sicuro il quaderno e la doga; (XII, 103-105)
a
subida se torna menos áspera/ pelos degraus que foram construídos numa época/
em que eram certos os livros e as medidas
(cf. a crítica social, pois o v. 105 refere-se a casos de
corrupção ocorridos na administração de Florença na época de Dante).
Os dois poetas se
voltam então para aquele caminho enquanto ouvem “Beati pauperes spiritu!” (“Bem aventurados os pobres em espírito”,
conforme o Sermão da Montanha), cantado “de
um modo tal que não se pode expressar em palavras” (cantaron
sì, che nol diria sermone- v. 111).
Enquanto sobem
os “santos degraus” (li
scaglion santi- v. 115), Dante diz a seu guia que se sente agora muito mais leve do
que antes. Virgílio lhe explica que isso se deve ao fato de que um dos P da sua
testa foi apagado. Subentende-se que isso ocorreu há pouco, quando o anjo a
golpeou com a asa. Dante faz, neste final do Canto, mais uma comparação. Após aquelas
palavras de Virgílio, ele se compara a uma pessoa que não sabe que tem alguma
coisa sobre a cabeça e é alertado pelos outros. Ele então a tateia com a mão “e procura e encontra e executa o serviço/
que a visão não pode prover” (e cerca e truova e quello
officio adempie/ che non si può fornir per la veduta;- v. 131-132). Note-se o
polissíndeto do v. 131 e o aspecto fortemente visual da imagem.
Dante,
tateando, leva a mão direita a testa e só encontra seis P gravados, dos sete inscritos
pelo anjo que guarda a entrada do Purgatório propriamente dito, como se viu
anteriormente. Os seis P que permanecem já estão meio apagados (v.122), o que
indica que, segundo Dante, o pecado do orgulho, uma vez vencido, pela submissão
a Deus, reduz também o peso dos outros, de acordo com a interpretação dos
comentaristas.
NOTAS
(1) CIARDI, John- “Dante- The
Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 116.
(2) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The
Divine Comedy- II. Purgatory”.
Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin
Classics, 1963, p.163
(3)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p.346
(4)
Id., ib, p. 345-346
(5)
Id., ib, p. 346
(6) SAYERS,
Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”, op cit, p.164
(7) Id.
ib., p. 164. Cf também MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 346.
(8) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985,
p. 135-136.
San Miniato al Monte, Florença |
Salvador Dalí |
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