quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Canto X

PURGATÓRIO


Canto X


            Após entrarem no Purgatório, Dante e Virgílio seguem por um caminho tortuoso, difícil, entre as rochas que avançam e se retraem “como faz a onda que foge e se aproxima” (sì come l’onda che fugge e s’appressa- v. 9). Mais adiante, essa árdua trilha é associada a uma outra imagem, a do “buraco de agulha” (cruna- v.16), a primeira das diversas referências bíblicas implícitas do Canto X  (neste caso, a expressão nos remete às palavras de Cristo de que é mais fácil um camelo entrar no buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus) (1). Como se sabe, a Bíblia e a mitologia clássica são duas fontes permanentes de referência para o poeta. 

            Os comentaristas alertam para o contraste entre essa entrada difícil no Purgatório e a facilidade com que se entra no Inferno. Por ser difícil, poucos são os que por ela entram. Sua porta é “pouco usada porque o mau amor das almas/ faz parecer direita a via torta” (che ‘l mal amor de l’anime disusa,/ perché fa parer dritta la via torta- v.2-3). O “mau amor” é o amor ao pecado, conforme Mandelbaum, pois na “Comédia” o amor está na origem de todas as ações humanas, quer sejam virtuosas ou não (2). O Purgatório é também reino dos martírios, da purificação dos espíritos, em que os pecadores todavia mantêm a esperança, ao contrário do Inferno, que é o lugar dos desesperados. Enquanto este existirá para sempre, aquele é temporário, tanto em relação a si mesmo (não mais existirá após o Juízo Final) como em relação aos tormentos do pecador, pois seu período de purgação é limitado no tempo, depende da “dívida” do pecador para com Deus.     

            Vencido o “buraco de agulha”, Dante e seu mestre saem num espaço aberto acima, onde o monte recua e forma um terraço, que  “mediria três vezes um corpo humano” (misurrebbe in tre volte un corpo umano- v.24) de largura entre a sua extremidade e a encosta de pedra. E essa largura é uniforme, até onde a vista do poeta-narrador alcança, à esquerda e à direita. Na realidade, o terraço contorna a montanha do Purgatório. Dante-autor o chama de “cornija” (cornice- v.27), um termo que ele empresta da arquitetura clássica (3). Dante-personagem percebe que aquela encosta alta, impossível de ser escalada, era de mármore branco, em que algumas cenas haviam sido entalhadas com altíssima perfeição. O mármore havia sido “adornado/ de entalhes tais que derrotariam/ não apenas Policleto/ mas a própria natureza” (/.../ e addorno/ d’intagli sì, che non pur Policleto/ ma la natura lì avrebbe scorno- v. 31-33). Policleto é o famoso escultor grego do século V a.C. e a natureza, para Dante, é obra de Deus (4). Esses baixos-relevos também são fruto da arte divina, mas por serem do outro mundo, ou do Além, superam, na visão do poeta, o que Deus criou de mais belo na natureza neste nosso mundo.  

            Três são as cenas ali esculpidas, conforme o desenrolar deste Canto, todas elas exemplos de humildade, uma virtude oposta ao pecado do orgulho, em que incorreram, como se verá, os que habitam esta 1ª. cornija ou terraço.

            A primeira cena refere-se à Anunciação, mostrando a visita do anjo a Maria para lhe dizer que seria a mãe de Cristo. Ele obedece ao decreto divino “que abriu o céu após longo interdito” (ch’aperse il ciel del suo lungo divieto- v. 36). A representação do anjo é “tão veraz” (sì verace- v.37) “que não parecia ser uma imagem muda” (che non sembiava imagine che tace-v.39). Também a de Maria, “aquela/ que virou a chave para liberar o alto amor” (/.../ quella/ ch’ ad aprir l’alto amor volse la chiave-  v.41-42), ou seja aquela que gerou Cristo, o qual segundo a mitologia católica abriu as portas do céu aos homens, fechadas desde a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. A representação é tão perfeita que os personagens parecem falar. Assim, o anjo parece saudar Maria e esta parece lhe responder com as palavras bíblicas, de submissão à vontade do Senhor: “Eis a serva de Deus” (“Ecce ancilla Dei”- v. 44) (5).
 
            Atendendo a uma recomendação de Virgílio, Dante observa “uma outra história gravada na rocha” (un’altra storia ne la roccia imposta- v. 52), também de inspiração bíblica: o mármore esculpido mostrava “o carro e os bois trazendo a arca santa” (lo carro e ‘ buoi traendo l’arca santa- v.56) (a Arca da Aliança) e as   pessoas presentes estavam divididas em sete coros. Na frente da arca, dançava Davi, “menos que rei” porque agia sem a dignidade do cargo, e “mais que rei”, porque sua humildade era bem vista pelo Senhor:  

Lì precedeva al benedetto vaso,
trescando alzato, l’umile salmista,
e più e men che re era in quel caso.   (X, 64-66)

Lá precedia o bendito vaso,/ dançando com as vestes levantadas, o humilde salmista, / e era então mais e menos que rei.

            Essa manifestação espontânea de Davi porém não agradou Micol, filha de Saul, a sua orgulhosa esposa (5). Dante nessa passagem faz uma menção interessante (sinestésica, pois trata-se, como se verá abaixo, de um “falar -- ou cheirar -- visível”) a dois de seus sentidos: enquanto o da visão – dada a excelência da representação – “ouvia” as pessoas cantarem, o da audição o contradizia; da mesma forma, ao mencionar a fumaça dos incensos a visão, que “sentia” seu perfume, era negada pelo olfato:

Dinanzi parea gente; e tutta quanta,
partita in sette cori, a’ due mie’ sensi
faceva dir l’un “No”, l’altro “Sì, canta”.

Similemente, al fummo de li ‘ncensi
che v’era imaginato, li occhi e ‘l naso
e al sì e al no discordi fensi.              (X, 58-63)

Na frente, apareciam as pessoas; e todas elas,/divididas em sete coros, a dois dos meus sentidos/ faziam um dizer  “Não” , e o outro “Sim, elas cantam”.
Da mesma forma, a fumaça dos incensos/ que ali era mostrada fazia discordar/ os olhos do nariz com sim e não.  

            Depois, uma terceira cena ilustrativa da humildade lhe atrai a atenção. Entretanto, Dante não se expressa nestes termos meus, prosaicos, mas afirma, em sua linguagem peculiar, que, além de Micol, “uma outra história” lhe “branquejava” (mi biancheggiava- v. 72). Realçando desse modo a cor do mármore, tratando-a como se brilhasse, produz, por meio do estranhamento linguístico, o efeito desejado, que é acentuar o caráter especial e estranho ao nosso mundo dessas cenas, reforçando a sua singularidade, já  presente no “falar visível” (visibile parlare- v. 95).

G. Doré- As esculturas  
             Na terceira cena, a representação é elaborada de tal forma que faz Dante ver/ouvir todo um diálogo entre o imperador Trajano e uma pobre viúva, cujo filho foi assassinado, diálogo esse reproduzido ao longo dos versos 83-93.  Ela detém o Imperador, acompanhado de muitos cavaleiros, quando estão prestes a partir, com os estandartes romanos tremulando ao vento (“e as águias em campo de ouro/ sobre esses moviam-se ao vento”: /.../  e l’aguglie ne l’oro/ sovr’ essi in vista al vento si movieno- v. 80-81). Ela, aflita, pede que ele faça justiça. Após ela muito insistir, Trajano cede ao seu apelo. Decide adiar a viagem para primeiro cumprir o seu dever de imperador:

/.../ “Or ti conforta; ch’ ei convene
ch’ i’ solva il mio dovere anzi ch’ i’ mova:
giustizia vuole e pietà mi ritene”.               (X, 91-93)

/.../ “Agora, consola-te; convém/ que eu cumpra o meu dever antes de partir: / a justiça o quer e a piedade me retém”.  

            Nos versos 74-75, o poeta já mencionara essa ação nobre, “gloriosa” de Trajano, “cujo valor / levou Gregório a obter sua grande vitória” (/.../ il cui valore/ mosse Gregorio a la sua gran vittoria). Segundo uma lenda, S. Gregório (papa do ano 590 ao 604),  pediu aos céus que ele fosse retirado do Inferno (i.e., do Limbo) e levado para o Paraíso, no que foi atendido. Essa foi a sua “grande vitória” referida no v. 75 (7)  

            O artífice dessas três cenas esculpidas no mármore branco é o próprio Deus, conforme a clara afirmação destes versos:

Colui che mai non vide cosa nova
produsse esto visibile parlare,
novello a noi perché qui non si trova.   (X, 94-96)

Aquele que jamais viu coisas novas/ produziu esse falar visível,/ novo para nós porque aqui não se encontra.

            Na sequência, Dante-autor fala com o leitor, apelando para que este não se desvie do bom caminho ao saber o que ele está prestes a lhe contar, ou seja, sobre o martírio dos que ali padecem (mas “no pior dos casos, ele não poderá ir além da grande sentença”: /.../ al peggio/ oltre la gran sentenza non può ire- v. 110-111, i.e. o martírio não irá além do Juízo Final).  Virgílio dissera há pouco a seu discípulo que se aproxima agora muita gente a passos lentos, e que eles lhes orientarão em sua subida. Dante percebe então que algo vem se movendo na direção deles.  Diz que não parecem pessoas, mas não sabe dizer o que seja. Virgílio lhe manda olhar fixamente e ver o que há abaixo daquelas pedras. Dante vê então os penitentes, arcados até o chão com o peso delas. Ele vê “como cada um se pune” (come ciascun si picchia- v.120). Seu sofrimento, ao contrário dos condenados no Inferno, é desejado, uma vez que eles querem se purificar para poderem entrar no Paraíso. Uns estavam mais curvados do que outros, pois o peso das pedras é variável, i.e. a pena assumida também varia.  
            Virgílio, comovido, dirige esta apóstrofe aos cristãos que incorreram no pecado do orgulho, o pecado expiado neste terraço:  

O superbi cristian, miseri lassi,
che, de la vista de la mente infermi,
fidanza avete ne’ rettosi passi,

non v’accorgete voi che noi siam vermi
nati a formar l’angelica farfalla,
che vola a la giustizia sanza schermi?    (X, 121-126)


Ó cristãos soberbos, míseros, exaustos,/ doentes da vista da mente,/ que pondes vossa confiança em andar para trás,
não percebeis que somos vermes/ nascidos para formar a angélica borboleta,/ que voa rumo à justiça sem defesas?

            Dante aqui explora a imagem sugestiva do verme que, em sua evolução, resulta na borboleta, associando o primeiro ao corpo humano (com as conotações relativas à sua decomposição após a morte)  e a segunda à alma. Tal imagem é citação implícita de Santo Agostinho, conforme assinala nota a esses versos numa tradução da “Comédia” para o espanhol (8).
            Logo a seguir, Dante faz outra comparação. Ele, como personagem,  ao ver os penitentes, os compara a certas mísulas (outro termo da Arquitetura) (9), em que, às vezes, “se vê uma figura/ juntar os joelhos ao peito” (/.../ una figura/ si vede giugner le ginocchia al petto- v. 131-132) e que, embora sendo irreais, nos fazem sofrer verdadeiramente. Com mais razão ele se condói ao ver ali os que  purgam o pecado do orgulho.


Salvador Dalí 

NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.340

(2) Id. ib, p. 340.

(3) A cornija é assim definida no dicionário Houaiss: “1. na arquitetura clássica, a parte superior do entablamento (...) que assenta sobre o friso 2. moldura saliente que serve de arremate superior à fachada de um edifício, ocultando o telhado e impedindo que as águas escorram pela parede”

(4) MANDELBAUM, Allen- op cit, p.340

(5) MARTINS, Cristiano-  “A Divina Comédia- Dante Alighieri”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins-  5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v. 2, p.93

(6) Id. ib, p. 96

(7) MANDELBAUM, Allen- op cit, p.341

(8) “Dante Alighieri- La Divina Comedia”. Buenos Aires: Centro Editor de Cultura, 2012, p.215. A nota deve ser de Ángel Crespo, que consta aí erradamente como tradutor. Essa tradução para o espanhol é, na realidade, de Luis Martínez de Merlo, conforme consta em  “Divina Comedia”. Edición de Giorgio Petrocchi. Ediciones Cátedra (Grupo Anaya, S.A), Madrid, 14ª edición, 2012.  

(9) Mísula é “o ornato saliente preso à parede, estreito na parte inferior e largo na superior, que sustenta um arco de abóboda, cornija, púlpito, suporte para vaso, estátua etc”. (cf. “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”. 1ª. ed.- Rio de Janeiro: Objetiva, 2002).


 
Amos Nattini

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