PURGATÓRIO
Canto X
Após entrarem no Purgatório,
Dante e Virgílio seguem por um caminho tortuoso, difícil, entre as rochas que
avançam e se retraem “como faz a onda que
foge e se aproxima” (sì come l’onda che fugge e s’appressa- v. 9). Mais adiante, essa
árdua trilha é associada a uma outra imagem, a do “buraco de agulha” (cruna- v.16), a primeira das diversas referências
bíblicas implícitas do Canto X (neste
caso, a expressão nos remete às palavras de Cristo de que é mais fácil um
camelo entrar no buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus)
(1). Como se sabe, a Bíblia e a mitologia clássica são duas fontes permanentes
de referência para o poeta.
Os
comentaristas alertam para o contraste entre essa entrada difícil no Purgatório
e a facilidade com que se entra no Inferno. Por ser difícil, poucos são os que por
ela entram. Sua porta é “pouco usada
porque o mau amor das almas/ faz parecer direita a via torta” (che ‘l
mal amor de l’anime disusa,/ perché fa parer dritta la via torta- v.2-3). O “mau amor” é o amor
ao pecado, conforme Mandelbaum, pois na “Comédia” o amor está na origem de
todas as ações humanas, quer sejam virtuosas ou não (2). O Purgatório é também
reino dos martírios, da purificação dos espíritos, em que os pecadores todavia
mantêm a esperança, ao contrário do Inferno, que é o lugar dos desesperados. Enquanto
este existirá para sempre, aquele é temporário, tanto em relação a si mesmo (não
mais existirá após o Juízo Final) como em relação aos tormentos do pecador, pois
seu período de purgação é limitado no tempo, depende da “dívida” do pecador para
com Deus.
Vencido o “buraco de agulha”, Dante e seu mestre
saem num espaço aberto acima, onde o monte recua e forma um terraço, que “mediria
três vezes um corpo humano” (misurrebbe in tre volte un
corpo umano- v.24) de largura entre a sua extremidade e a encosta de pedra. E essa
largura é uniforme, até onde a vista do poeta-narrador alcança, à esquerda e à
direita. Na realidade, o terraço contorna a montanha do Purgatório. Dante-autor
o chama de “cornija” (cornice- v.27), um termo que ele empresta da arquitetura clássica (3). Dante-personagem percebe que aquela
encosta alta, impossível de ser escalada, era de mármore branco, em que algumas
cenas haviam sido entalhadas com altíssima perfeição. O mármore havia sido “adornado/ de entalhes tais que derrotariam/
não apenas Policleto/ mas a própria natureza” (/.../ e
addorno/ d’intagli sì, che non pur Policleto/ ma la natura lì avrebbe scorno- v.
31-33).
Policleto é o famoso escultor grego do século V a.C. e a natureza, para Dante,
é obra de Deus (4). Esses baixos-relevos também são fruto da arte divina, mas por
serem do outro mundo, ou do Além, superam, na visão do poeta, o que Deus criou
de mais belo na natureza neste nosso mundo.
Três são as
cenas ali esculpidas, conforme o desenrolar deste Canto, todas elas exemplos de
humildade, uma virtude oposta ao pecado do orgulho, em que incorreram, como se
verá, os que habitam esta 1ª. cornija ou terraço.
A primeira cena
refere-se à Anunciação, mostrando a visita do anjo a Maria para lhe dizer que
seria a mãe de Cristo. Ele obedece ao decreto divino “que abriu o céu após longo interdito” (ch’aperse
il ciel del suo lungo divieto- v. 36). A representação do anjo é “tão veraz” (sì verace- v.37) “que não parecia ser uma
imagem muda” (che non sembiava imagine che tace-v.39). Também a de Maria, “aquela/ que virou a chave para liberar o
alto amor” (/.../ quella/ ch’ ad aprir l’alto amor volse la chiave- v.41-42), ou seja aquela que gerou Cristo, o qual segundo a mitologia católica
abriu as portas do céu aos homens, fechadas desde a expulsão de Adão e Eva do
Paraíso. A representação é tão perfeita que os personagens parecem falar.
Assim, o anjo parece saudar Maria e esta parece lhe responder com as palavras
bíblicas, de submissão à vontade do Senhor: “Eis a serva de Deus” (“Ecce ancilla Dei”- v. 44) (5).
Atendendo a uma
recomendação de Virgílio, Dante observa “uma
outra história gravada na rocha” (un’altra storia ne la roccia
imposta- v. 52),
também de inspiração bíblica: o mármore esculpido mostrava “o carro e os bois trazendo a arca santa”
(lo carro e ‘ buoi traendo l’arca santa- v.56) (a Arca da Aliança) e as
pessoas
presentes estavam divididas em sete coros. Na frente da arca, dançava Davi,
“menos que rei” porque agia sem a dignidade do cargo, e “mais que rei”, porque sua
humildade era bem vista pelo Senhor:
Lì precedeva al benedetto vaso,
trescando alzato, l’umile salmista,
e più e men che re era in quel caso. (X, 64-66)
Lá
precedia o bendito vaso,/ dançando com as vestes levantadas, o humilde salmista,
/ e era então mais e menos que rei.
Essa
manifestação espontânea de Davi porém não agradou Micol, filha de Saul, a sua orgulhosa
esposa (5). Dante nessa passagem faz uma menção interessante (sinestésica, pois
trata-se, como se verá abaixo, de um “falar
-- ou cheirar -- visível”) a dois de
seus sentidos: enquanto o da visão – dada a excelência da representação – “ouvia”
as pessoas cantarem, o da audição o contradizia; da mesma forma, ao mencionar a
fumaça dos incensos a visão, que “sentia” seu perfume, era negada pelo olfato:
Dinanzi parea gente; e tutta quanta,
partita
in sette cori, a’ due mie’ sensi
faceva dir l’un “No”, l’altro “Sì, canta”.
Similemente, al fummo de li ‘ncensi
che v’era imaginato, li occhi e ‘l naso
e al sì e al no discordi fensi. (X, 58-63)
Na frente,
apareciam as pessoas; e todas elas,/divididas em sete coros, a dois dos meus
sentidos/ faziam um dizer “Não” , e o
outro “Sim, elas cantam”.
Da
mesma forma, a fumaça dos incensos/ que ali era mostrada fazia discordar/ os
olhos do nariz com sim e não.
Depois, uma
terceira cena ilustrativa da humildade lhe atrai a atenção. Entretanto, Dante
não se expressa nestes termos meus, prosaicos, mas afirma, em sua linguagem
peculiar, que, além de Micol, “uma outra
história” lhe “branquejava” (mi
biancheggiava- v. 72). Realçando desse modo a cor do mármore, tratando-a como se
brilhasse, produz, por meio do estranhamento linguístico, o efeito desejado,
que é acentuar o caráter especial e estranho ao nosso mundo dessas cenas,
reforçando a sua singularidade, já
presente no “falar visível” (visibile parlare- v. 95).
G. Doré- As esculturas |
Na terceira
cena, a representação é elaborada de tal forma que faz Dante ver/ouvir todo um
diálogo entre o imperador Trajano e uma pobre viúva, cujo filho foi assassinado,
diálogo esse reproduzido ao longo dos versos 83-93. Ela detém o Imperador, acompanhado de muitos
cavaleiros, quando estão prestes a partir, com os estandartes romanos tremulando
ao vento (“e as águias em campo de ouro/
sobre esses moviam-se ao vento”: /.../ e
l’aguglie ne l’oro/ sovr’ essi in vista al vento si movieno- v. 80-81). Ela,
aflita, pede que ele faça justiça. Após ela muito insistir, Trajano cede ao seu
apelo. Decide adiar a viagem para primeiro cumprir o seu dever de imperador:
/.../ “Or ti conforta; ch’ ei convene
ch’ i’ solva il mio dovere anzi ch’ i’
mova:
giustizia vuole e pietà mi ritene”. (X, 91-93)
/.../
“Agora, consola-te; convém/ que eu cumpra o meu dever antes de partir: / a
justiça o quer e a piedade me retém”.
Nos versos 74-75,
o poeta já mencionara essa ação nobre, “gloriosa” de Trajano, “cujo valor / levou Gregório a obter sua
grande vitória” (/.../ il cui valore/ mosse Gregorio a la sua gran vittoria). Segundo uma lenda, S.
Gregório (papa do ano 590 ao 604), pediu
aos céus que ele fosse retirado do Inferno (i.e., do Limbo) e levado para o
Paraíso, no que foi atendido. Essa foi a sua “grande vitória” referida no v. 75 (7)
O artífice
dessas três cenas esculpidas no mármore branco é o próprio Deus, conforme a
clara afirmação destes versos:
Colui che mai non vide cosa nova
produsse esto visibile parlare,
novello a noi perché qui non si trova. (X, 94-96)
Aquele que jamais viu
coisas novas/ produziu esse falar visível,/ novo para nós porque aqui não se
encontra.
Na sequência, Dante-autor
fala com o leitor, apelando para que este não se desvie do bom caminho ao saber
o que ele está prestes a lhe contar, ou seja, sobre o martírio dos que ali
padecem (mas “no pior dos casos, ele não
poderá ir além da grande sentença”: /.../ al peggio/ oltre la gran
sentenza non può ire- v. 110-111, i.e. o martírio não irá além do Juízo Final). Virgílio dissera há pouco a seu discípulo que
se aproxima agora muita gente a passos lentos, e que eles lhes orientarão em
sua subida. Dante percebe então que algo vem se movendo na direção deles. Diz que não parecem pessoas, mas não sabe
dizer o que seja. Virgílio lhe manda olhar fixamente e ver o que há abaixo
daquelas pedras. Dante vê então os penitentes, arcados até o chão com o peso delas.
Ele vê “como cada um se pune” (come
ciascun si picchia- v.120). Seu sofrimento, ao contrário dos condenados no Inferno, é
desejado, uma vez que eles querem se purificar para poderem entrar no Paraíso. Uns
estavam mais curvados do que outros, pois o peso das pedras é variável, i.e. a
pena assumida também varia.
Virgílio,
comovido, dirige esta apóstrofe aos cristãos que incorreram no pecado do
orgulho, o pecado expiado neste terraço:
O superbi cristian, miseri lassi,
che, de la vista de la mente infermi,
fidanza avete ne’ rettosi passi,
non v’accorgete voi che noi siam vermi
nati a formar l’angelica farfalla,
che vola a la giustizia sanza schermi? (X,
121-126)
Ó
cristãos soberbos, míseros, exaustos,/ doentes da vista da mente,/ que pondes
vossa confiança em andar para trás,
não
percebeis que somos vermes/ nascidos para formar a angélica borboleta,/ que voa
rumo à justiça sem defesas?
Dante aqui
explora a imagem sugestiva do verme que, em sua evolução, resulta na borboleta,
associando o primeiro ao corpo humano (com as conotações relativas à sua
decomposição após a morte) e a segunda à
alma. Tal imagem é citação implícita de Santo Agostinho, conforme assinala nota
a esses versos numa tradução da “Comédia” para o espanhol (8).
Logo a seguir, Dante faz outra
comparação. Ele, como personagem, ao ver
os penitentes, os compara a certas mísulas (outro termo da Arquitetura) (9), em
que, às vezes, “se vê uma figura/ juntar os joelhos ao peito”
(/.../ una figura/ si vede giugner le ginocchia al petto- v.
131-132) e
que, embora sendo irreais, nos fazem sofrer verdadeiramente. Com mais razão ele
se condói ao ver ali os que purgam o
pecado do orgulho.
Salvador Dalí |
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p.340
(2) Id. ib, p. 340.
(3) A cornija é assim definida no
dicionário Houaiss: “1. na arquitetura clássica, a parte superior do
entablamento (...) que assenta sobre o friso 2. moldura saliente que serve de
arremate superior à fachada de um edifício, ocultando o telhado e impedindo que
as águas escorram pela parede”
(4) MANDELBAUM,
Allen- op cit, p.340
(5) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia- Dante Alighieri”. Tradução,
introdução e notas de Cristiano Martins-
5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v. 2, p.93
(6) Id. ib, p. 96
(7) MANDELBAUM, Allen- op cit, p.341
(8) “Dante
Alighieri- La Divina Comedia”. Buenos Aires: Centro Editor de Cultura,
2012, p.215. A nota deve ser de Ángel Crespo, que consta aí erradamente como
tradutor. Essa tradução para o espanhol é, na realidade, de Luis Martínez de
Merlo, conforme consta em “Divina
Comedia”. Edición de Giorgio Petrocchi. Ediciones
Cátedra (Grupo Anaya, S.A), Madrid, 14ª edición, 2012.
(9) Mísula é “o ornato saliente preso à
parede, estreito na parte inferior e largo na superior, que sustenta um arco de
abóboda, cornija, púlpito, suporte para vaso, estátua etc”. (cf. “Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa”. 1ª. ed.- Rio de Janeiro: Objetiva, 2002).
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