sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Canto XVII

PURGATÓRIO


Canto XVII



        No início deste Canto o poeta, dirigindo-se ao leitor, apela para uma  possível lembrança deste, vivida no alto de uma montanha envolta pela neblina. É uma situação como essa – “quando os vapores úmidos e espessos” (/.../ quando i vapori umidi e spessi-  v.4) começam a descondensar e o sol  “entra por eles debilmente” (/.../ debilemente entra per essi- v.6) -- que Dante encontra ao sair do terceiro terraço no fim da tarde daquela segunda feira da Páscoa de 1300. 

            A referência à imaginação do leitor é pretexto para Dante indagar sobre sua origem: “quem te move, se os sentidos não te incitam?” (chi move te, se ‘l senso non ti porge?- v. 16), quem move a imaginação se ela não é provocada pela experiência dos sentidos, como no caso dos arrebatamentos/ visões que o próprio poeta vem tendo, e terá na sequência. Dante, em sua resposta, afirma que sua origem é celeste ou divina:  “Move-te a luz que no céu toma forma/ por si, ou por uma vontade que para baixo a envia” (Moveti lume che nel ciel s’informa,/ per sé o per voler che giù lo scorge- v. 17-18).  Então, lhe aparecem “na fantasia” (ne l’imagine mia- v. 21) ou em sua “visão” (mia visione- v. 34)  três exemplos de pessoas tomadas pela ira que ele passa a relatar. Esses exemplos foram  extraídos da mitologia clássica, da Bíblia e da literatura latina (no caso, da “Eneida”), três fontes recorrentes de inspiração para os versos da “Divina Comédia” como temos constatado.  Os exemplos são os de Procne,  de Amã e  de Amata, respectivamente.

Rubens-  Procne e Tereus 
            Segundo a mitologia, Procne, cujo marido violentou a própria cunhada, serviu na sua refeição a carne do filho deles, assassinado por ela. Para evitar a vingança do esposo, os deuses a transformaram em rouxinol, e sua irmã e marido em outros pássaros (1).

            Dante refere-se a ela, sem mencioná-la explicitamente, nesta passagem:

De l’empiezza di lei che mutò forma
ne l’uccel ch’a cantar più si diletta,
ne l’imagine mia apparve l’orma;  (XVII, 19-21)

Da impiedade daquela que foi transformada/ em pássaro, que a cantar mais se deleita,/ me apareceu na fantasia a marca;

            Em seguida, vê uma outra cena, baseada em episódio bíblico:

Poi piovve dentro a l’alta fantasia
un crucifisso, dispettoso e fero
ne la sua vista, e cotal si moria;

intorno ad esso era il grande Assüero,
Estèr sua sposa e ‘l giusto Mardoceo,
che fu al dire e al far così intero.   (XVII,  25-30)

Depois choveu nesta alta fantasia/ um crucificado, desdenhoso e feroz/ na aparência, e assim morria;
em torno dele estava o grande Assuero,/ sua esposa Ester e o justo Mardoqueu/ que foi tão íntegro no dizer e no fazer.

            Note-se o uso insólito do verbo “chover” no v. 25... 

            Amã, enraivecido com Mardoqueu, ordenou a sua morte. Mas a rainha Ester, judia como este, conseguiu de Assuero, rei da Pérsia, que em vez dele fosse executado o próprio Amã, conselheiro do rei. Este seria enforcado e não crucificado, conforme Mandelbaum et al., que atribuem o equívoco de Dante ao modo como esse fato foi expresso em latim na Vulgata (2). 

            Por fim, surge na visão do poeta uma mocinha que, chorando, diz: “Ó rainha,/ por que, por ira, quiseste não mais ser?” (/.../ O regina,/ perché per ira hai voluto esser nulla?- v. 35-36). Trata-se de Lavínia que lamenta assim o suicídio de sua mãe, a rainha Amata, esposa do rei Latinus, do Lácio. Ela se mata por desespero e raiva, ao saber da (suposta) morte do noivo da filha, e ver o triunfo do invasor Enéias, que casará com Lavínia, conforme proposta do rei Latinus (3), episódio relatado na “Eneida” de Virgílio.  

            Então, cessam os devaneios de Dante quando uma luz estranha, “bem mais forte do que aquela a que estamos acostumados” (maggior assai che quel ch’ è in nostro uso- v.45), atinge seus olhos. Ele ouve uma voz dizer: “Sobe-se por aqui(“Qui si monta”- v.47).  Procura identificar quem falou mas não consegue. Suas faculdades de visão lhe faltam, como ofuscadas pelo Sol:

Ma come al sol che nostra vista grava
e per soverchio sua figura vela,
così la mia virtù quivi mancava.   (XVII,  52-54)

Mas como ao Sol que nossa vista ofusca/ e, por excessivo, sua figura vela,/ assim minhas faculdades me faltavam.    

Amos Nattini
           
            Novamente a figura do Sol é usada, associada a Deus ou aos seres que lhe estão mais próximos. No caso, indica a presença de um anjo (o Anjo da Mansidão) que vai orientar os dois poetas quanto ao caminho a seguir, em sua escalada da montanha do Purgatório. Virgílio refere-se a ele como um “espírito divino” (divino spirito- v. 55) em sua explicação ao discípulo. Não conseguem ver o Anjo, pois “com sua luz a si mesmo esconde” (e col suo lume sé medesmo cela- v. 57) -- um belo verso que reitera o que já foi dito no v. 53 -- mas seguem logo a sua indicação, expressa nas palavras que proferiu há pouco, uma vez que à noite não é possível avançar na subida da montanha (essa ascensão espiritual está associada sempre à luz, e não às trevas). Logo no primeiro degrau da escada para o próximo terraço que começam a subir, Dante sente um abanar de asas em seu rosto, o que significa (isso fica subentendido) que mais um “P” lhe é retirado da testa, agora que eles estão deixando o terraço dos iracundos. E ouvem as palavras: “Beati pacifici, os desprovidos da ira má!” (/.../ “Beati/ pacifici”, che son sanz’ ira mala!- v.68-69), mais uma bem-aventurança do Sermão da Montanha mencionada, aqui a dos pacíficos, os desprovidos da ira má, como diz o verso, o que nos leva a concluir que para Dante existe uma “ira boa”, certamente aquela da revolta contra a injustiça e o pecado, a de Cristo expulsando os vendilhões do templo...

            Chegam até o final dos degraus e ficam imóveis no topo. Dante-autor faz aqui uma comparação sugestiva: “ficamos imóveis/ como uma nau que toca a praia” (/.../ ed eravamo affissi,/ pur come nave ch’a la piaggia arriva- v. 77-78). Dante-personagem sente fugir do corpo todo o vigor. Pergunta então ao seu “doce pai” (Dolce mio padre- v. 82) em que “círculo” (giro- v.83) estão agora. E Virgílio lhe responde:

Ed elli a me: “L’amor del bene, scemo
del suo dover, quiritta si ristora;
qui si ribatte il mal tardato remo.  (XVII, 85-87)

E ele a mim: “O amor do bem, menor/ daquele que deveria ser, aqui se restaura;/ aqui se move o remo preguiçoso.   

            Neste novo terraço, ou cornija, que é o quarto, estão os que expiam o pecado da preguiça. Como Virgílio dirá mais adiante, todos os seres humanos são dotados de um amor natural a Deus, seu criador. Todos o desejam, nele querem aquietar “o ânimo” (l’animo- v. 128). Quando a intensidade desse amor é inferior ao que deveria ser, incorre-se no pecado da preguiça...Ou como Virgílio dirá: 

Se lento amore a lui veder vi tira
o a lui quistar, acquesta cornice,
dopo giusto penter, ve ne martira.   (XVII, 130-132)

Se lento é o amor que vos impele a conhecê-lO/ ou alcançá-lO, esta cornija,/ depois de justo arrependimento, pune isso.

Salvador Dalí
             A partir do v. 91, até o fim do Canto, Virgílio fará uma exposição sobre o amor e sua busca do bem (e do mal, também), indicando como está organizado o Purgatório (4) (não por acaso o assunto é tratado neste Canto XVII, bem no meio da segunda parte da “Divina Comédia”, com os seus 33 cantos; ademais, estamos também no meio do poema, no 51º dos seus 100 cantos). Virgílio, ao fazer essa exposição, atende a uma expectativa de Dante, que dissera “Se nossos passos param, não parem tuas palavras” (Se i piè si stanno, non stea tuo sermone- v. 84). Ele estará assim tirando proveito dessa demora forçada, uma vez que não podem avançar na subida da montanha agora que a noite caiu.

            Virgílio começa por diferenciar o “amor natural” do “amor de ânimo” (/.../ amore,/ o naturale o d’animo; /.../- v.92-93). O primeiro “é sempre sem erro” (Lo naturale è sempre sanza errore- v.94) e “é dirigido ao Primeiro Bem” (/.../ elli è nel primo ben diretto- v. 97) (i.e., Deus); é o amor que os seres têm por aquilo para o qual são inclinados pela natureza, é o amor da criatura pelo Criador.  O outro amor pressupõe “ânimo”, i.e. livre-arbítrio, é o amor do homens, que pode escolher o bem ou o mal. Dirigido aos bens “secundários” (secondi- v. 98), pode errar, “por excesso ou por falta de vigor” (o per troppo o per poco di vigore- v.96); se dirigido a eles com moderação, “não pode ser causa de prazer pecaminoso” (esser non può cagion di mal diletto- v. 99). No caso dos pecados da avareza/esbanjamento, gula e luxúria, esses bens foram buscados imoderadamente. Sua expiação ocorre nos terraços localizados acima deste em que os dois poetas acabam de chegar. Virgílio dirá isso no final do Canto, mas não especificará quais são esses pecados, deixando para Dante descobri-los por si mesmo. Mas dirá que esses bens (secundários) que os homens buscam não os fazem felizes, não são a felicidade (v. 133-134), como é, subentende-se, o Primeiro Bem. 

            A criatura, assim, age contra o Criador quando seu amor se volta ao bem “com mais ardor/ que deve, ou com menos”  (/.../ o con più cura/ o con men che non dee /.../ - v. 100-101), ou quando se volta para o mal.  

            Diz Virgílio a Dante:

Quinci comprender puoi ch’ esser convene
amor sementa in voi d’ogne virtute
e d’ogne operazion che merta pene.   (XVII,  103-105)
  
Daqui, podes compreender que, necessariamente,/ o amor é a semente em vós de todas virtudes/ e de todos os atos que merecem punição. (v. 103-105)

            Prossegue afirmando que “os seres estão livres do ódio a si mesmos” (da l’odio proprio son le cose tute- v.108), além de estarem impedidos de odiar o Primeiro Bem, pois a ele estão naturalmente ligados, e não existirem por si mesmos. O suicida não contradiz a afirmação de que o ser só pode querer o bem para si mesmo, uma vez que a própria morte representa para ele não um mal mas um bem, afastando-o de algum problema ou sofrimento insuportável.  Assim, como se quer para si sempre o bem, “o mal que se ama é o do próximo” (che ‘l mal che s’ama è del prossimo; /.../-  v. 113). Virgílio então passa a caracterizar as três formas desse amor pelo mal, que constituem o orgulho, a vaidade e a ira:

             “Há quem espera elevar-se anulando seu vizinho” (E chi, per esser suo vicin soppresso,/ spera eccellenza, /.../- v.115-116): assim é o orgulho; “há quem teme perder poder, graça, honra e fama/ quando o outro se eleva” (è chi podere, grazia, onore e fama/ teme di perder perch’ altri sormonti,- v.118-119), entristecendo-se com sua ascensão e rejubilando-se com sua queda: assim é a inveja;  “e há quem, por injúria recebida,/ se torne ansioso de vingança/ e busque o mal do outro”  (ed è chi per ingiuria par ch’ aonti,/ sì che si fa de la vendetta ghiotto,/ e tal convien che ‘l male altrui impronti.- v. 121-123): assim é a ira.

            Os pecados em questão são expiados nos três terraços abaixo, já percorridos pelos dois poetas.


NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.358 e 337. Cf também MARTINS, Cristiano-  “A Divina Comédia- Dante Alighieri”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins-  5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v. 2, p. 154-155.

(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 358

(3) Id., ib, p.358

(4) Cf. a esse respeito o útil quadro-síntese apresentado em SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.202-203.


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