PURGATÓRIO
Canto XVII
No início deste Canto o poeta, dirigindo-se ao leitor, apela
para uma possível lembrança deste, vivida
no alto de uma montanha envolta pela neblina. É uma situação como essa – “quando os vapores úmidos e espessos” (/.../
quando i vapori umidi e spessi- v.4) começam a descondensar
e o sol “entra por eles debilmente” (/.../ debilemente entra per
essi- v.6)
-- que Dante encontra ao sair do terceiro terraço no fim da tarde daquela
segunda feira da Páscoa de 1300.
A referência à
imaginação do leitor é pretexto para Dante indagar sobre sua origem: “quem te move, se os sentidos não te incitam?”
(chi move te, se ‘l senso non ti porge?- v. 16), quem move a imaginação
se ela não é provocada pela experiência dos sentidos, como no caso dos
arrebatamentos/ visões que o próprio poeta vem tendo, e terá na sequência. Dante,
em sua resposta, afirma que sua origem é celeste ou divina: “Move-te
a luz que no céu toma forma/ por si, ou por uma vontade que para baixo a envia”
(Moveti lume che nel ciel s’informa,/ per sé o per voler che giù
lo scorge- v. 17-18). Então, lhe aparecem
“na fantasia” (ne l’imagine mia- v. 21) ou em sua “visão” (mia visione- v. 34) três exemplos de pessoas tomadas pela ira que
ele passa a relatar. Esses exemplos foram
extraídos da mitologia clássica, da Bíblia e da literatura latina (no
caso, da “Eneida”), três fontes recorrentes de inspiração para os versos da “Divina
Comédia” como temos constatado. Os
exemplos são os de Procne, de Amã e de Amata, respectivamente.
Rubens- Procne e Tereus |
Segundo a
mitologia, Procne, cujo marido violentou a própria cunhada, serviu na sua refeição
a carne do filho deles, assassinado por ela. Para evitar a vingança do esposo,
os deuses a transformaram em rouxinol, e sua irmã e marido em outros pássaros
(1).
Dante refere-se
a ela, sem mencioná-la explicitamente, nesta passagem:
De l’empiezza di lei che mutò forma
ne l’uccel ch’a cantar più si diletta,
ne
l’imagine mia apparve l’orma; (XVII, 19-21)
Da
impiedade daquela que foi transformada/ em pássaro, que a cantar mais se
deleita,/ me apareceu na fantasia a marca;
Em seguida, vê
uma outra cena, baseada em episódio bíblico:
Poi piovve dentro a l’alta fantasia
un crucifisso, dispettoso e fero
ne la sua vista, e cotal si moria;
intorno ad esso era il grande Assüero,
Estèr sua sposa e ‘l giusto Mardoceo,
che fu al dire e al far così intero. (XVII, 25-30)
Depois
choveu nesta alta fantasia/ um crucificado, desdenhoso e feroz/ na aparência, e
assim morria;
em
torno dele estava o grande Assuero,/ sua esposa Ester e o justo Mardoqueu/ que
foi tão íntegro no dizer e no fazer.
Note-se o uso
insólito do verbo “chover” no v. 25...
Amã,
enraivecido com Mardoqueu, ordenou a sua morte. Mas a rainha Ester, judia como
este, conseguiu de Assuero, rei da Pérsia, que em vez dele fosse executado o
próprio Amã, conselheiro do rei. Este seria enforcado e não crucificado,
conforme Mandelbaum et al., que atribuem o equívoco de Dante ao modo como esse
fato foi expresso em latim na Vulgata (2).
Por fim, surge
na visão do poeta uma mocinha que, chorando, diz: “Ó rainha,/ por que, por ira, quiseste não mais ser?” (/.../ O
regina,/ perché per ira hai voluto esser nulla?- v. 35-36). Trata-se de Lavínia
que lamenta assim o suicídio de sua mãe, a rainha Amata, esposa do rei Latinus,
do Lácio. Ela se mata por desespero e raiva, ao saber da (suposta) morte do noivo
da filha, e ver o triunfo do invasor Enéias, que casará com Lavínia, conforme
proposta do rei Latinus (3), episódio relatado na “Eneida” de Virgílio.
Então, cessam os
devaneios de Dante quando uma luz estranha, “bem mais forte do que aquela a que estamos acostumados” (maggior
assai che quel ch’ è in nostro uso- v.45), atinge seus olhos. Ele ouve uma voz dizer: “Sobe-se por aqui” (“Qui
si monta”- v.47).
Procura identificar quem falou mas não
consegue. Suas faculdades de visão lhe faltam, como ofuscadas pelo Sol:
Ma come al sol che nostra vista grava
e per soverchio sua figura vela,
così la mia virtù quivi mancava. (XVII, 52-54)
Mas
como ao Sol que nossa vista ofusca/ e, por excessivo, sua figura vela,/ assim
minhas faculdades me faltavam.
Amos Nattini |
Novamente a figura do Sol é usada, associada a Deus ou aos
seres que lhe estão mais próximos. No caso, indica a presença de um anjo (o
Anjo da Mansidão) que vai orientar os dois poetas quanto ao caminho a seguir,
em sua escalada da montanha do Purgatório. Virgílio refere-se a ele como um “espírito divino” (divino
spirito- v. 55)
em sua explicação ao discípulo. Não conseguem ver o Anjo, pois “com sua luz a si mesmo esconde” (e col
suo lume sé medesmo cela- v. 57) -- um belo verso que reitera o que já foi dito no v. 53 -- mas
seguem logo a sua indicação, expressa nas palavras que proferiu há pouco, uma
vez que à noite não é possível avançar na subida da montanha (essa ascensão
espiritual está associada sempre à luz, e não às trevas). Logo no primeiro
degrau da escada para o próximo terraço que começam a subir, Dante sente um
abanar de asas em seu rosto, o que significa (isso fica subentendido) que mais
um “P” lhe é retirado da testa, agora que eles estão deixando o terraço dos iracundos.
E ouvem as palavras: “Beati pacifici, os
desprovidos da ira má!” (/.../ “Beati/ pacifici”, che son sanz’ ira
mala!- v.68-69),
mais uma bem-aventurança do Sermão da Montanha mencionada, aqui a dos
pacíficos, os desprovidos da ira má, como diz o verso, o que nos leva a
concluir que para Dante existe uma “ira boa”, certamente aquela da revolta
contra a injustiça e o pecado, a de Cristo expulsando os vendilhões do
templo...
Chegam até o
final dos degraus e ficam imóveis no topo. Dante-autor faz aqui uma comparação
sugestiva: “ficamos imóveis/ como uma nau
que toca a praia” (/.../ ed eravamo affissi,/ pur come nave ch’a la
piaggia arriva- v. 77-78). Dante-personagem sente fugir do corpo todo o vigor. Pergunta
então ao seu “doce pai” (Dolce
mio padre- v. 82) em que “círculo” (giro- v.83) estão agora. E
Virgílio lhe responde:
Ed elli a me: “L’amor del bene, scemo
del suo dover, quiritta si ristora;
qui si ribatte il mal tardato remo. (XVII, 85-87)
E ele a
mim: “O amor do bem, menor/ daquele que deveria ser, aqui se restaura;/ aqui se
move o remo preguiçoso.
Neste novo terraço, ou cornija, que é o quarto, estão os
que expiam o pecado da preguiça. Como Virgílio dirá mais adiante, todos os
seres humanos são dotados de um amor natural a Deus, seu criador. Todos o
desejam, nele querem aquietar “o ânimo” (l’animo- v. 128). Quando a intensidade
desse amor é inferior ao que deveria ser, incorre-se no pecado da preguiça...Ou
como Virgílio dirá:
Se lento amore a lui veder vi tira
o a lui quistar, acquesta cornice,
dopo giusto penter, ve ne martira. (XVII, 130-132)
Se
lento é o amor que vos impele a conhecê-lO/ ou alcançá-lO, esta cornija,/
depois de justo arrependimento, pune isso.
Salvador Dalí |
A partir do v.
91, até o fim do Canto, Virgílio fará uma exposição sobre o amor e sua busca do
bem (e do mal, também), indicando como está organizado o Purgatório (4) (não
por acaso o assunto é tratado neste Canto XVII, bem no meio da segunda parte da
“Divina Comédia”, com os seus 33 cantos; ademais, estamos também no meio do
poema, no 51º dos seus 100 cantos). Virgílio, ao fazer essa exposição, atende a
uma expectativa de Dante, que dissera “Se
nossos passos param, não parem tuas palavras” (Se i
piè si stanno, non stea tuo sermone- v. 84). Ele estará assim tirando proveito dessa demora forçada, uma
vez que não podem avançar na subida da montanha agora que a noite caiu.
Virgílio começa
por diferenciar o “amor natural” do “amor de ânimo” (/.../ amore,/ o naturale o d’animo; /.../- v.92-93).
O primeiro “é sempre sem erro” (Lo
naturale è sempre sanza errore- v.94) e “é dirigido ao Primeiro
Bem” (/.../ elli è nel primo ben diretto- v. 97) (i.e., Deus); é o amor
que os seres têm por aquilo para o qual são inclinados pela natureza, é o amor
da criatura pelo Criador. O outro amor
pressupõe “ânimo”, i.e. livre-arbítrio, é o amor do homens, que pode escolher o
bem ou o mal. Dirigido aos bens “secundários”
(secondi- v. 98), pode errar, “por
excesso ou por falta de vigor” (o per troppo o per poco di
vigore- v.96);
se dirigido a eles com moderação, “não
pode ser causa de prazer pecaminoso” (esser non può cagion di mal
diletto- v. 99).
No caso dos pecados da avareza/esbanjamento, gula e luxúria, esses bens foram
buscados imoderadamente. Sua expiação ocorre nos terraços localizados acima
deste em que os dois poetas acabam de chegar. Virgílio dirá isso no final do
Canto, mas não especificará quais são esses pecados, deixando para Dante
descobri-los por si mesmo. Mas dirá que esses bens (secundários) que os homens
buscam não os fazem felizes, não são a felicidade (v. 133-134), como é,
subentende-se, o Primeiro Bem.
A criatura,
assim, age contra o Criador quando seu amor se volta ao bem “com mais ardor/ que deve, ou com menos” (/.../ o con più cura/ o con men che
non dee /.../ - v. 100-101), ou quando se volta para o mal.
Diz Virgílio a
Dante:
Quinci comprender puoi ch’ esser convene
amor sementa in voi d’ogne virtute
e d’ogne operazion che merta pene. (XVII, 103-105)
Daqui,
podes compreender que, necessariamente,/ o amor é a semente em vós de todas
virtudes/ e de todos os atos que merecem punição. (v.
103-105)
Prossegue
afirmando que “os seres estão livres do
ódio a si mesmos” (da l’odio proprio son le cose tute- v.108), além de estarem
impedidos de odiar o Primeiro Bem, pois a ele estão naturalmente ligados, e não
existirem por si mesmos. O suicida não contradiz a afirmação de que o ser só
pode querer o bem para si mesmo, uma vez que a própria morte representa para
ele não um mal mas um bem, afastando-o de algum problema ou sofrimento
insuportável. Assim, como se quer para
si sempre o bem, “o mal que se ama é o do
próximo” (che ‘l mal che s’ama è del prossimo; /.../- v. 113). Virgílio então passa a caracterizar as três formas desse amor
pelo mal, que constituem o orgulho, a vaidade e a ira:
“Há quem
espera elevar-se anulando seu vizinho” (E chi, per esser suo vicin soppresso,/
spera eccellenza, /.../- v.115-116): assim é o orgulho; “há
quem teme perder poder, graça, honra e fama/ quando o outro se eleva” (è chi
podere, grazia, onore e fama/ teme di perder perch’ altri sormonti,- v.118-119), entristecendo-se com
sua ascensão e rejubilando-se com sua queda: assim é a inveja; “e há
quem, por injúria recebida,/ se torne ansioso de vingança/ e busque o mal do
outro” (ed è
chi per ingiuria par ch’ aonti,/ sì che si fa de la vendetta ghiotto,/ e tal
convien che ‘l male altrui impronti.- v. 121-123): assim é a ira.
Os pecados em
questão são expiados nos três terraços abaixo, já percorridos pelos dois
poetas.
NOTAS
(1) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p.358 e 337. Cf também MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia- Dante Alighieri”. Tradução,
introdução e notas de Cristiano Martins-
5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v. 2, p. 154-155.
(2) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 358
(3) Id., ib, p.358
(4) Cf. a esse respeito o útil
quadro-síntese apresentado em SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine
Comedy- II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p.202-203.
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