terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Canto XVI

PURGATÓRIO


Canto XVI
Amos Nattini

            O Canto inicia caracterizando a escuridão do fumo que envolvia os dois poetas, punição dos iracundos no terceiro terraço. Essa escuridão é para Dante pior que a do Inferno (de onde ele provém), da (sua) “noite privada de estrelas” (/.../ di notte privata/ d’ogne pianeto- v.1-2) e do céu “obscurecido pelas nuvens” (/.../ di nuvol tenebrata- v.3).  É para ele um “espesso véu” (grosso velo- v.4) que lhe feria o rosto (como se formado por pelos eriçados) e não permitia que abrisse os olhos, razão por que Virgílio lhe oferece o ombro para que nele apoie sua mão (1) e possa continuar andando (Dante sofre como os outros penitentes os efeitos dessa fumaça estranha, purgando-se também de um pecado que não lhe é estranho, relacionado ao orgulho, em que incorre). A seguir, vem essa comparação:

Sì come cieco va dietro a sua guida
per non smarrirsi e per non dar di cozzo
in cosa che ‘l molesti, o forse ancida,

m’andava io per l’aere amaro e sozzo,
ascoltando il mio duca che diceva
pur: “Guarda che da me tu non sia mozzo”.   (XVI, 10-15)

Assim como o cego vai atrás do seu guia/ para não se extraviar e não colidir/ em coisa que o fira ou mesmo o mate,
ia eu pelo ar amargo e sujo,/ escutando o meu guia, que dizia apenas:/ “Cuida para que não te separes de mim”. 

            A imagem (negra, sem luz) do fumo é assim associada à ira. Na escuridão espessa, as pessoas nada veem, são como cegos. Também os iracundos, que dominados pela ira, agem por impulsos emocionais e não racionalmente. É por isso que Virgílio, representante da Razão no poema, oferece seu apoio a Dante, que não pode abrir os olhos naquela escuridão peculiar (v.7). Tomado pela ira, ele não deve separar-se da razão (v.15)... (2)

            Na sequência, ouvem-se vozes entoando o “Agnus Dei” da liturgia da Missa (3), em que se pede paz e misericórdia ao Cordeiro de Deus, “que remove os pecados” (/.../ che le peccata leva- v.18) do mundo. A invocação do cordeiro -- símbolo da mansidão -- e os pedidos a ele feitos são bem apropriados nesse terceiro terraço, pois representam as virtudes de que os iracundos carecem. Quanto às manifestações dos penitentes, “todas eram uma só voz, de um modo tal/ que parecia haver plena concórdia entre elas” (una parola in tutte era e un modo,/ sì che parea tra esse  ogne concordia- v.20-21), agora que eles estão nesse estado de purificação. Essa unidade de voz, essa concordância entre eles, contrasta com a vida pregressa dos penitentes...

            Ao ouvir Dante dirigir-se a Virgílio na escuridão, um dos penitentes indaga:

“Or tu chi se’ che ‘l nostro fummo fendi,
e di  noi parli pur come se tue
partissi ancor lo tempo per calendi?”   (XVI, 25-27)

Quem és tu que fendes o nosso fumo/ e de nós falas como se ainda/ dividisses o tempo em calendas?”  

G.Doré-  Marco, o Lombardo
  
             Como “calenda” significa um dia de qualquer mês romano (na realidade, o primeiro dia), o formulador da pergunta quer saber quem é esse espírito que ali está, que ainda adota tal convenção terrena para medir o tempo, ou seja, que fala como se ainda fosse vivo...  Dante então lhe responde dizendo que se ele o seguir, ouvirá dele “maravilhas”. Seu interlocutor concorda com isso. 
G.Doré- Marco, o Lombardo segue os poetas 
Dante então lhe explica que a graça divina permitiu que ele faça essa jornada pelo Outro Mundo ainda vivo. Diz isso usando uma metáfora, em que seu corpo, o invólucro da alma, é chamado de “faixas”. Percorre o Outro Mundo ainda com essas faixas:  

/.../ Con quella fascia
che la morte dissolve men vo suso,
e venni qui per l’infernale ambascia.   (XVI, 37-39)

/.../ Com aquelas faixas/ que a morte desenrola, eu vou para cima, / e já passei pela angústia infernal 

            Vindo do Inferno, ele afirma que chegará a ver, pela graça que lhe foi concedida, a Corte celeste, “por modo inusitado atualmente” (per modo tutto fuor del moderno uso- v.42),  pois o último a fazer isso foi S.Paulo... (4) 

            O interlocutor enfim se identifica. Trata-se de Marco, da Lombardia ou da família dos Lombardi (5), sobre quem pouco se sabe:

Lombardo fui, e fu’ chiamato Marco;
del mondo seppi, e quel valore amai
al quale ha or ciascun disteso l’arco.   (XVI, 46-48)

Lombardo fui, e fui chamado Marco; o mundo conheci, e amei valores/ aos quais hoje ninguém estira o arco.

            A metáfora do arco retesado significa usá-lo para atingir um alvo, no caso, o das virtudes (ou dos valores morais). Para Marco, a maioria das pessoas já não visa esse alvo, haja vista a decadência atual da sociedade em que vive.

            Marco pede a Dante que rogue por ele “quando estiveres lá em cima” (/.../ “I’ ti prego/ che per me prieghi quando sù sarai.”- v.50- 51), e este compromete-se em atender tal pedido. Depois, Dante expressa a dúvida que o preocupa, pois ele associa as palavras do penitente, de condenação moral da sociedade lombarda, às de outro, que encontrou alhures (v.57). Sabemos ser ele Guido del Duca, do Canto XIV, autor de uma dura crítica às regiões da Toscana e da Romagna.  Esta é a questão que Dante propõe a Marco:

Lo mondo è ben così tutto diserto
d’ogne virtute, come tu mi sone,
e di malizia gravido e coverto;

ma priego che m’addite la cagione,
sì ch’i’ la veggia e ch’i’ la mostri altrui;
ché nel cielo uno, e un qua giù la pone.   (v. 58-63)

O mundo é bem assim, deserto/ de toda virtude, como tu dizes,/ e grávido e coberto de malícia;
mas rogo que me digas a causa,/ para que eu a veja e a mostre aos outros,/ pois uns a põem nos astros,  e outros, aqui embaixo.

            A resposta de Marco estende-se do v. 65 ao 129 e reflete as opiniões de Dante-autor sobre a questão do livre-arbítrio x determinismo e a necessidade da separação entre os poderes temporal e espiritual.   

            Marco constata inicialmente que o mundo de onde Dante provém é cego:

Voi che vivete ogne cagion recate
pur suso al cielo, pur come se  tutto
movesse seco di necessitate.     (XVI, 67-69)

Vós que viveis atribuem todas as causas/ somente aos astros, como se eles tudo/ movessem por necessidade.

            Mas se fosse assim, diz, não haveria livre-arbítrio e “nem seria justiça/ ter alegria pelo bem, e ter dor pelo mal” (/.../ e non fora giustizia/ per ben letizia, e per male aver lutto- v. 71-72). Conforme os comentaristas, o sentido de “cielo” no v. 68, e outros versos, é o de “astros”, entendido a palavra como sinônima de forças naturais que determinariam o comportamento humano.

            Marco diz a Dante, como se dissesse para todos nós: “se o mundo presente se extravia,/ em vós está a causa, em vós deve ser buscada(/.../ se ‘l mondo presente disvia,/ in voi è la cagione, in voi si cheggia- v. 82-83) (Shakespeare diz a mesma coisa em “Júlio César”) (6).

            Na sequência, o lombardo fala sobre a origem da alma, que é “Saída das mãos de Quem a amava/ antes que existisse” (Esce di mano a lui che la vagheggia/ prima che sai, /.../- v.85-86). Compara-a a uma menininha “que ri e chora a brincar” (che piangendo e ridendo pargoleggia- v. 87) e não sabe nada. Volta-se apenas para o que lhe agrada, para os “pequenos bens”.  Resulta daí a necessidade de guia ou freio para essa busca dos pequenos prazeres:

Onde convenne legge per fren porre;
convene rege aver, che discernesse
de la vera cittade almen la torre.

Le leggi son, ma chi pon mano ad esse?
Nullo, però che ‘l pastor che procede,
rugumar può, ma non ha l’unghie fesse;   (XVI, 94-99)

É necessário pois lei para servir de freio;/ também um rei, para ver/ da vera cidade ao menos a torre.
As leis existem, mas quem as administra?/ Ninguém, pois o pastor que precede seu rebanho/ pode ruminar, mas não tem a unha fendida;  

            A vera cidade é a Cidade de Deus (7). Dante, pela boca de Marco, defende aqui a sua tese da separação dos poderes. O poder temporal deveria ser exercido por um imperador e o espiritual, por um papa, e não como ocorria então, quando o papa (Bonifácio VIII) detinha ambos os poderes, o que implicava nos problemas que ele criticava.

            Na tradição judaica só os animais que ruminam e tem a pata fendida é que podiam servir de alimento. Outros, como o camelo, por exemplo, eram considerados pelos judeus animais impuros. No poema, o pastor -- vale dizer o papa -- é alegoricamente associado a um animal que embora possa ruminar (lidar com as Escrituras) não tem a unha fendida (acumula os dois poderes).  Dante está assim criticando o papa, a sua condição “impura”, por extrapolar das suas funções. Como o povo vê o papa buscar o bem material,  também se volta para este, “e outro não pede mais” (/.../ e più oltre non chiede- v.102), ou seja esquece o bem espiritual. Para Dante, a não separação dos poderes prejudicava a administração dos negócios públicos e explicava a má situação italiana da época:

Ben puoi veder che la mala condotta
è la cagion che ‘l mondo ha fatto reo,
e non natura che ‘n voi sia  corrota.      (XVI, 103-105)

Bem podes ver que o mau governo/ é a razão que faz malvado o mundo/ e não natura que em vós seja corrupta.

            Dante toma como modelo de governo o Império Romano do Oriente, no período de 300 a 565 d.C, no tempo de Constantino, Teodósio e Justiniano (8),  quando havia um imperador e um papa (os “dois sóis” conforme o v. 107, abaixo) desempenhando cada qual as funções que lhe eram próprias:   

Soleva Roma, che ‘l buon mondo feo,
due soli aver, che l’una e l’altra strada
facean vedere, e del mondo e di Deo.   (XVI, 106-108)

Roma, que fez o mundo bom,/ tinha dois sóis, que mostravam/ uma e outra estrada, a do mundo e a de Deus

            Referindo-se à Lombardia -- pois esse é o território “grosso modo” compreendido entre os rios Adige e Pó (v. 115) – Marco lembra que aí “costumava-se encontrar valor e cortesia/ antes de Frederico entrar em luta” (solea valore e cortesia trovarsi/ prima che Federigo avesse briga- v. 116-117) . Depois que o imperador Frederico II, rei de Nápoles e Sicília de 1215 a 1250, entrou em luta com o papado (9), que disputava o poder temporal, houve uma decadência moral na região. Ele admira apenas três de seus habitantes, já idosos: Currado da Palazzo, “o bom Gherardo” e Guido da Castel. 

            Dante elogia as palavras de Marco e afirma entender agora “porque de herança/ os filhos de Levi foram excluídos” (e or discerno perché dal retaggio/ li figli di Levì furono essenti- v. 131-132), em mais uma referência ao Velho Testamento. Os sacerdotes judeus (os levitas) não podiam receber herança a fim de se concentrarem apenas na busca dos bens espirituais...  

            Marco se retira quando um resplendor começa a branquear a fumaça negra, pois um anjo já está ali presente. Ele deve agora partir porque seu tempo de purificação ainda não acabou.  



NOTAS

(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 175

(2) MAGUGLIANI, Lodovico- “Dante Alighieri- La Divina Commedia. Purgatorio. Introduzione di Bianca Garavelli. Note di Lodovico Magugliani. Biblioteca Universale Rizzoli- Superclassici, 1995- p. 133

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.354

(4) MARTINS, Cristiano-  “A Divina Comédia- Dante Alighieri”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins-  5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v. 2, p. 146

(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”, op cit, p. 176

(6) LINDSKOOG, Kathryn- “Dante’s Divine Comedy- Purgatory”. Mercer University Press, 1997- p. 92.  Cf. “Julius Caesar”, Act 1, Scene 2:  “The fault, dear Brutus, is not in our stars,/ But in ourselves, that we are underlings”.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 355.

(8) LINDSKOOG, Kathryn- “Dante’s Divine Comedy- Purgatory”, op cit, p. 93
.
(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.356. Segundo essa fonte, Dante considerava Frederico II “o último imperador dos romanos”. 

  
Os iracundos segundo S.Dalí 

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