PURGATÓRIO
Canto XIX
As referências cósmicas e astrológicas dos versos iniciais deste
Canto indicam que a hora do dia é a da manhã, “antes da
alvorada” (innanzi a l’alba- v.5) do dia 12 de abril de 1300 (1). Dante está sonhando, e é nessa
hora, segundo uma crendice da época, que os sonhos costumam dizer a verdade. Em
seu sonho, apareceu-lhe uma mulher balbucente, vesga, manca, maneta e de cor pálida!
Mas o seu olhar fixo nela a transformava
numa outra mulher, liberando sua língua, endireitando-lhe o corpo e dando cor
ao seu rosto... Depois, ela afirma ser uma
“doce sereia, / que desvia da rota os
marinheiros” (/.../ io son dolce serena,/ che ‘marinari in mezzo mar dismago- v.
19-20) com
o seu belo canto. E começa a cantar de tal modo que, diz Dante, “seria penoso para mim/ desviar dela a
atenção” (cominciava a cantar sì, che con pena/ da lei avrei mio intento
rivolto- v.17-18).
Mas então “uma dama apareceu, santa e ágil,/ ao meu
lado, para confundi-la” (/.../.una donna apparve santa e
presta/ lunghesso me per far colei confusa- v.26-27), quer dizer, confundir
essa mulher transformada pelo olhar de Dante. E a dama que surgiu se voltava,
indignada, para Virgílio, perguntando a ele—“quem é esta?” (chi è questa?- v. 28), ao que o poeta latino
reage deste modo:
L’altra prendea, e dinanzi l’apria
fendendo i drappi, e mostravami ‘l ventre;
quel mi svegliò col puzzo che n’uscia. (XIX, 31-33)
Ele a
agarrava, despia-a na frente/ rasgando-lhe as vestes e me mostrava seu ventre;/
e o fedor que vinha dele me despertou.
A primeira
mulher, aquela de má aparência, representa os pecados do amor excessivo aos
objetos terrenos, a saber, a avareza (e seu inverso, a prodigalidade), a gula e
a luxúria, punidos nos próximos terraços da montanha do Purgatório a serem
visitados. Pois Virgílio dirá ao seu discípulo mais adiante:
“Vedesti”, disse, “quell’ antica strega
che sola sovr’ a noi omai si piagne;
vedesti come l’uom da lei si slega. (XIX, 58-60)
“Viste”,
disse, “aquela antiga feiticeira/ que sozinha faz chorar acima de nós;/ viste
como o homem dela se desprende.
Por outro lado,
a “santa dama” que surge e repreende Virgílio (a Razão), pode ser vista como a
virtude oposta à incontinência dos sentidos, representada pela primeira mulher.
Caberá assim à Razão, aguilhoada pela Virtude, ou por uma tendência nossa instintiva
para o bem (2), mostrar a Dante a verdadeira face da outra mulher que o seu
olhar amoroso (e autoenganador) criou, após Virgílio despojá-la de sua
aparência sedutora. Essa feiticeira desperta então repugnância a Dante, a mesma
despertada pelos pecados que representa...
G. Doré- Subida para o 5º terraço |
Dante não
acordou por si. Na realidade, foi acordado por Virgílio, que o chama para
prosseguirem viagem. Devem encontrar a passagem que os levará ao próximo
terraço. Seguem em pleno dia, com o sol às suas costas (o que significa que
caminham para oeste). Eles ouvem então
alguém, “Com as asas abertas, que
pareciam as do cisne” (Con l’ali aperte, che parean di cigno- v.
46) indicar
a passagem, “de modo tão suave e
benigno,/ como não se ouve nesta mortal terra” (/.../
in modo soave e benigno,/ qual non si sente in questa mortal marca- v. 44-45). Trata-se do Anjo do
Zelo ou da Diligência (a virtude oposta à acídia), presente no terraço que os
dois poetas estão deixando. Ele os leva para cima, não sem antes mover as
plumas -- cujo movimento apagará mais um “P” da testa de Dante (o que é apenas sugerido
no v. 49) – e o anjo afirmar serem abençoados os “qui lugent” (v. 50) (“os que choram”, em latim), pois serão
consolados, mais uma das bem-aventuranças citadas.
A fronte de
Dante estava “como a daquele que a tem carregada
de pensamentos,/ e faz de si um semiarco de ponte” (come
colui che l’ha di pensier carca,/ che fa di sé un mezzo arco di ponte- v. 41-42), uma curiosa imagem
sugerida pelo seu corpo curvado. Ele ainda está pensando naquela “sereia” e é aí então que Virgílio o esclarece sobre
quem ela é de fato, nos versos 58-60 antes transcritos. Recomenda ao discípulo
apressar o passo e voltar-se para outro atrativo, o das esferas celestes (“esferas magnas”: le rote
magne- v.63),
movidas pelo “Rei eterno” (lo rege
etterno- v.63),
no que é atendido.
Surge aqui uma
comparação interessante, ligada à falcoaria. Assim como o falcão é atraído “pelo desejo do pasto que o atrai” (per lo
disio del pasto che là il tira- v. 66), Dante diz que ele também se volta para o seu atrativo (ou
alimento) celeste: ele passa, com o ânimo revigorado, a escalar a fenda da
rocha e avança “até onde se começa a
caminhar em círculo” (n’andai infin dove ‘l cerchiar si prende- v.
69),
chegando enfim ao novo terraço. Os comentaristas afirmam que esse seu ânimo revigorado tem a
ver com o fato de que ele já se distancia do terraço dos preguiçosos...
Amos Nattini |
G.Doré- Os avarentos- Adriano V |
O quinto
círculo (ou terraço, ou cornija) do “sacro
monte” (v. 38) é o dos avarentos/pródigos, onde estes purgam (choram) seu
pecado “jazendo na terra de bruços” (giacendo
a terra tutta volta in giuso- v.72), com os pés e mãos atados (v. 124). Virgílio pede a esses “eleitos de Deus” (eletti di Dio- v.76), esperançosos de um
dia chegar ao Paraíso, que lhes indiquem o caminho “para os mais altos degraus” (drizzate noi verso li alti
saliri- v.78),
ou seja, para os próximos círculos. Alguém lhe responde, afirmando que ele deve
conservar a sua “direita sempre para o lado de fora” (do monte) (le
vostre destre sien sempre di fori- v.81). Dante percebe de onde veio a resposta e se aproxima de quem
falou, ali escondido, no meio dos outros.
Dirige-se a ele nestes termos:
/.../ “Spirto in cui pianger matura
quel sanza ‘l quale a Dio tornar non pòssi
sosta un poco per me tua maggior cura.
Chi fosti e perché vòlti avete i dossi
al sù, mi dì, e se vuo’ ch’ io t’ impetri
cosa di là ond’ io vivendo mossi.” (XIX, 91-96)
“Espírito
em quem o pranto amadurece/ aquilo sem o qual não é possível retornar a Deus/
suspende um pouco, por mim, teu maior cuidado.
Quem
foste tu e por que tens as costas/ voltadas para cima, dize-me, e se queres que
eu rogue por ti/ alguma coisa lá de onde, vivo, eu venho”.
Sem a purgação
do pecado não é possível ao pecador entrar no Paraíso. Por isso, ela deve ser
“amadurecida” aí, vale dizer, deve cumprir o período de sofrimento que lhe coube.
No caso dos avarentos, jazendo naquela posição incômoda... Pois, como dirá esse
penitente mais adiante,
Sì come
l’occhio nostro non s’aderse
in alto, fisso a le cose terrene,
così giustizia qui a terra il merse. (XIX, 118-120)
Assim
como nossos olhos não se voltaram/ para o alto, fixos nas coisas terrenas,/
assim Justiça aqui os rebaixa para a terra.
Estão ali de
bruços, com o rosto no solo, presos, “com
os pés e mãos atados” (ne’ piedi e ne le man legati e presi- v.
124), “imóveis e estirados” (immobili
e distesi- v.126). O penitente em questão revela a Dante, em latim, ter sido Papa
(v.99). Mas só por um breve período:
Un mese e poco più prova’ io come
pesa il gran manto a chi dal fango il
guarda,
che piuma sembran tutte l’altre some. (XIX, 103-105)
Um mês
e pouco provei como pesa/ o grande manto a quem o mantém fora da lama;/ todas
as outras cargas parecem plumas.
Adriano V |
Ele é
identificado pelos comentadores como Adriano V, que foi Papa apenas por 38 dias
e pertencia à rica família dos condes de Lavagna, cujo título tomou o nome do rio
que “desce entre Sestri e Chiaveri” (Intra Sïestre e Chiaveri s’ adima- v.100), cidades próximas a
Gênova. Ele diz ainda que a sua conversão foi tardia e só ocorreu quando foi
eleito “pastor romano” (roman
pastore- v.107).
Até então confessa ter sido um homem
avarento. Descobriu muito tarde “que a vida (terrena) é ilusória” (così scopersi la vita bugiarda- v.108):
Vidi che lì non s’acquetava il core,
né più salir potiesi in quella vita;
per che
di questa in me s’accese amore. (XIX, 109-111)
Vi que
ali não se aquietava o coração,/ nem eu podia subir mais naquela vida,/ pelo
que se acendeu em mim o amor por esta.
Dante então se
ajoelha em consideração à dignidade papal. O
penitente, percebendo o seu gesto só pela audição (v. 129), dado o
estado em que se encontrava, manda-o levantar-se, afirmando:
“Drizza
le gambe, lèvati sù, frate!”
rispuose; “non errar: conservo sono
teco e con li altri ad una podestate. (XIX, 133-135)
“Endireita
as pernas, levanta-te, irmão!”/ respondeu; “não cometas erro: sou também
servo,/ contigo e os outros, de uma só Potestade”.
Lembra, a
propósito, uma passagem dos Evangelhos, sugerido pela expressão latina que cita--
“Neque nubent” (v.137). Segundo Mandelbaum
et al. (3), ela se refere à resposta de Cristo a uma questão colocada pelos saduceus,
quando afirma que, após a Ressurreição, não prevalecem mais os laços do
matrimônio. O significado disso, no caso de Adriano V, é que também o seu “casamento”
com a Igreja não tem mais sentido após a morte. Logo, ele é um servo a mais de
Deus, como qualquer outro espírito.
No final,
Adriano dispensa Dante porque a sua permanência ali perturba o seu pranto, “com o qual amadureço o que disseste” (col
qual maturo ciò che tu dicesti- v. 141), vale dizer, a sua penitência. E diz que só lhe restou em
nosso mundo uma sobrinha chamada Alágia -- “boa de
si; que a nossa casa / não a faça malvada pelo exemplo” (buona
da sé, pur che la nostra casa/ non faccia lei per essempro malvagia- v.143-144) --, subentendendo-se,
por essas palavras, que ela pode ser solicitada a rogar por ele aqui e abreviar
a sua estada no Purgatório...
NOTAS
(1) LONGNON, Henri— “Dante- La Divine
Comédie”. Traduction, préface, notes et
commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951- p. 270.
(2) Id.
ib., p. 598. Cf também SAYERS, Dorothy
L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”.
Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin
Classics, 1963, p. 221
(3) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-
p. 365
Salvador Dalí |
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