quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Canto XIX

PURGATÓRIO


Canto XIX

           
            As referências cósmicas e astrológicas dos versos iniciais deste Canto indicam que a hora do dia é a da manhã,  “antes da alvorada” (innanzi a l’alba- v.5) do dia 12 de abril de 1300 (1). Dante está sonhando, e é nessa hora, segundo uma crendice da época, que os sonhos costumam dizer a verdade. Em seu sonho, apareceu-lhe uma mulher balbucente, vesga, manca, maneta e de cor pálida!  Mas o seu olhar fixo nela a transformava numa outra mulher, liberando sua língua, endireitando-lhe o corpo e dando cor ao seu rosto...  Depois, ela afirma ser uma “doce sereia, / que desvia da rota os marinheiros” (/.../ io son dolce serena,/ che ‘marinari in mezzo mar dismago- v. 19-20) com o seu belo canto. E começa a cantar de tal modo que, diz Dante, “seria penoso para mim/ desviar dela a atenção” (cominciava a cantar sì, che con pena/ da lei avrei mio intento rivolto- v.17-18).      

            Mas então “uma dama apareceu, santa e ágil,/ ao meu lado, para confundi-la” (/.../.una donna apparve santa e presta/ lunghesso me per far colei confusa- v.26-27), quer dizer, confundir essa mulher transformada pelo olhar de Dante. E a dama que surgiu se voltava, indignada, para Virgílio, perguntando a ele—“quem é esta?” (chi è questa?- v. 28), ao que o poeta latino reage deste modo:

L’altra prendea, e dinanzi l’apria
fendendo i drappi, e mostravami ‘l ventre;
quel mi svegliò col puzzo che n’uscia.    (XIX, 31-33)

Ele a agarrava, despia-a na frente/ rasgando-lhe as vestes e me mostrava seu ventre;/ e o fedor que vinha dele me despertou.     

            A primeira mulher, aquela de má aparência, representa os pecados do amor excessivo aos objetos terrenos, a saber, a avareza (e seu inverso, a prodigalidade), a gula e a luxúria, punidos nos próximos terraços da montanha do Purgatório a serem visitados. Pois Virgílio dirá ao seu discípulo mais adiante:

“Vedesti”, disse, “quell’ antica strega
che sola sovr’ a noi omai si piagne;
vedesti come  l’uom da lei si slega.    (XIX, 58-60)

Viste”, disse, “aquela antiga feiticeira/ que sozinha faz chorar acima de nós;/ viste como o homem dela se desprende.

            Por outro lado, a “santa dama” que surge e repreende Virgílio (a Razão), pode ser vista como a virtude oposta à incontinência dos sentidos, representada pela primeira mulher. Caberá assim à Razão, aguilhoada pela Virtude, ou por uma tendência nossa instintiva para o bem (2), mostrar a Dante a verdadeira face da outra mulher que o seu olhar amoroso (e autoenganador) criou, após Virgílio despojá-la de sua aparência sedutora. Essa feiticeira desperta então repugnância a Dante, a mesma despertada pelos pecados que representa...

G. Doré- Subida para o 5º terraço

            Dante não acordou por si. Na realidade, foi acordado por Virgílio, que o chama para prosseguirem viagem. Devem encontrar a passagem que os levará ao próximo terraço. Seguem em pleno dia, com o sol às suas costas (o que significa que caminham para oeste).  Eles ouvem então alguém, “Com as asas abertas, que pareciam as do cisne” (Con l’ali aperte, che parean di cigno- v. 46) indicar a passagem, “de modo tão suave e benigno,/ como não se ouve nesta mortal terra” (/.../ in modo soave e benigno,/ qual non si sente in questa mortal marca- v. 44-45). Trata-se do Anjo do Zelo ou da Diligência (a virtude oposta à acídia), presente no terraço que os dois poetas estão deixando. Ele os leva para cima, não sem antes mover as plumas -- cujo movimento apagará mais um “P” da testa de Dante (o que é apenas sugerido no v. 49) – e o anjo afirmar serem abençoados os “qui lugent” (v. 50) (“os que choram”, em latim), pois serão consolados, mais uma das bem-aventuranças citadas.          

            A fronte de Dante estava “como a daquele que a tem carregada de pensamentos,/ e faz de si um semiarco de ponte” (come colui che l’ha di pensier carca,/ che fa di sé un mezzo arco di ponte- v. 41-42), uma curiosa imagem sugerida pelo seu corpo curvado. Ele ainda está pensando naquela “sereia”  e é aí então que Virgílio o esclarece sobre quem ela é de fato, nos versos 58-60 antes transcritos. Recomenda ao discípulo apressar o passo e voltar-se para outro atrativo, o das esferas celestes (“esferas magnas”: le rote magne- v.63), movidas pelo “Rei eterno” (lo rege etterno- v.63), no que é atendido.

            Surge aqui uma comparação interessante, ligada à falcoaria. Assim como o falcão é atraído “pelo desejo do pasto que o atrai” (per lo disio del pasto che là il tira- v. 66), Dante diz que ele também se volta para o seu atrativo (ou alimento) celeste: ele passa, com o ânimo revigorado, a escalar a fenda da rocha e avança “até onde se começa a caminhar em círculo” (n’andai infin dove ‘l cerchiar si prende- v. 69), chegando enfim ao novo terraço. Os comentaristas  afirmam que esse seu ânimo revigorado tem a ver com o fato de que ele já se distancia do terraço dos preguiçosos...

Amos Nattini 

G.Doré- Os avarentos- Adriano V
            O quinto círculo (ou terraço, ou cornija) do “sacro monte” (v. 38) é o dos avarentos/pródigos, onde estes purgam (choram) seu pecado “jazendo na terra de bruços” (giacendo a terra tutta volta in giuso- v.72), com os pés e mãos atados (v. 124).  Virgílio pede a esses “eleitos de Deus” (eletti di Dio- v.76), esperançosos de um dia chegar ao Paraíso, que lhes indiquem o caminho “para os mais altos degraus” (drizzate noi verso li alti saliri- v.78), ou seja, para os próximos círculos. Alguém lhe responde, afirmando que ele deve conservar a sua “direita sempre para o lado de fora” (do monte) (le vostre destre sien sempre di fori- v.81). Dante percebe de onde veio a resposta e se aproxima de quem falou, ali escondido, no meio dos outros.  Dirige-se a ele nestes termos:

/.../ “Spirto in cui pianger matura
quel sanza ‘l quale a Dio tornar non pòssi
sosta un poco per me tua maggior cura.

Chi fosti e perché vòlti avete i dossi
al sù, mi dì, e se vuo’ ch’ io t’ impetri
cosa di là ond’ io vivendo mossi.”    (XIX, 91-96)

Espírito em quem o pranto amadurece/ aquilo sem o qual não é possível retornar a Deus/ suspende um pouco, por mim, teu maior cuidado.
Quem foste tu e por que tens as costas/ voltadas para cima, dize-me, e se queres que eu rogue por ti/ alguma coisa lá de onde, vivo, eu venho”.

            Sem a purgação do pecado não é possível ao pecador entrar no Paraíso. Por isso, ela deve ser “amadurecida” aí, vale dizer, deve cumprir o período de sofrimento que lhe coube. No caso dos avarentos, jazendo naquela posição incômoda... Pois, como dirá esse penitente mais adiante,

Sì come l’occhio nostro non s’aderse
in alto, fisso a le cose terrene,
così giustizia qui a terra il merse.   (XIX, 118-120)

Assim como nossos olhos não se voltaram/ para o alto, fixos nas coisas terrenas,/ assim Justiça aqui os rebaixa para a terra.

            Estão ali de bruços, com o rosto no solo, presos, “com os pés e mãos atados” (ne’ piedi e ne le man legati e presi- v. 124), “imóveis e estirados” (immobili e distesi- v.126). O penitente em questão revela a Dante, em latim, ter sido Papa (v.99). Mas só por um breve período:

Un mese e poco più prova’ io come
pesa il gran manto a chi dal fango il guarda,
che piuma sembran tutte l’altre some.    (XIX, 103-105)

Um mês e pouco provei como pesa/ o grande manto a quem o mantém fora da lama;/ todas as outras cargas parecem plumas.

Adriano V
             Ele é identificado pelos comentadores como Adriano V, que foi Papa apenas por 38 dias e pertencia à rica família dos condes de Lavagna, cujo título tomou o nome do rio que “desce entre Sestri e Chiaveri” (Intra  Sïestre e Chiaveri s’ adima- v.100), cidades próximas a Gênova. Ele diz ainda que a sua conversão foi tardia e só ocorreu quando foi eleito “pastor romano” (roman pastore- v.107).  Até então confessa ter sido um homem avarento.  Descobriu muito tarde “que a vida (terrena) é ilusória” (così scopersi la vita bugiarda- v.108): 

Vidi che lì non s’acquetava il core,
né più salir potiesi in quella vita;
per che di questa in me s’accese amore.   (XIX, 109-111)

Vi que ali não se aquietava o coração,/ nem eu podia subir mais naquela vida,/ pelo que se acendeu em mim o amor por esta.

            Dante então se ajoelha em consideração à dignidade papal. O  penitente, percebendo o seu gesto só pela audição (v. 129), dado o estado em que se encontrava, manda-o levantar-se, afirmando:

“Drizza le gambe, lèvati sù, frate!”
rispuose; “non errar: conservo sono
teco e con li altri ad una podestate.    (XIX, 133-135)

“Endireita as pernas, levanta-te, irmão!”/ respondeu; “não cometas erro: sou também servo,/ contigo e os outros, de uma só Potestade”.

            Lembra, a propósito, uma passagem dos Evangelhos, sugerido pela expressão latina que cita-- “Neque nubent” (v.137). Segundo Mandelbaum et al. (3), ela se refere à resposta de Cristo a uma questão colocada pelos saduceus, quando afirma que, após a Ressurreição, não prevalecem mais os laços do matrimônio. O significado disso, no caso de Adriano V, é que também o seu “casamento” com a Igreja não tem mais sentido após a morte. Logo, ele é um servo a mais de Deus, como qualquer outro espírito.

            No final, Adriano dispensa Dante porque a sua permanência ali perturba o seu pranto, “com o qual amadureço o que disseste” (col qual maturo ciò che tu dicesti- v. 141), vale dizer, a sua penitência. E diz que só lhe restou em nosso mundo uma sobrinha chamada Alágia --  “boa de si; que a nossa casa / não a faça malvada pelo exemplo” (buona da sé, pur che la nostra casa/ non faccia lei per essempro malvagia- v.143-144) --, subentendendo-se, por essas palavras, que ela pode ser solicitada a rogar por ele aqui e abreviar a sua estada no Purgatório...


NOTAS


(1) LONGNON, Henri— “Dante- La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951- p. 270.

(2) Id. ib., p. 598.  Cf também SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 221

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p. 365


Salvador Dalí


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