terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Canto XVIII

PURGATÓRIO


Canto XVIII


            Após a exposição sobre o amor feita por Virgílio no canto anterior, Dante ainda continua em dúvidas mas sente-se constrangido em externá-las. Pensa assim: “Talvez perguntar demais o aborreça” (/.../ “Forse/lo troppo dimandar ch’io fo li grava”- v.5-6). Mas seu “pai veraz” (padre verace- v.7), lendo seu pensamento, o estimula a falar, e ele pede então para que Virgílio lhe explique o amor, “ao qual atribuis toda obra boa e o seu contrário (/.../ a cui reduci/ ogne buono operare e ‘l suo contraro- v. 14-15).  

            Antes de iniciar sua nova exposição, o mestre já previne o seu discípulo quanto ao “erro dos cegos que se fazem guias” (l’error de’ ciechi che si fanno duci- v. 18). Segundo o comentadores, Dante-autor critica aqui, pela boca de Virgílio,  os adeptos do epicurismo, para quem, como este dirá adiante, “todo amor é coisa em si louvável” (ciascun amore in sé laudabil cosa- v.36).

            Virgílio começa falando sobre o amor inato, de que toda alma é dotada, ao ser criada. Ele é definido como a inclinação natural da alma ao bem que lhe traz satisfação, “assim como o fogo move-se para cima/ pela sua natureza destinado a subir/ para lá onde dura mais no seu elemento ”:

/.../ come ‘l foco movesi in altura
per la sua forma ch’ è nata a salire
là dove più in sua matera dura     (XVIII, 28-30)

            Note-se nessa passagem a comparação com o fogo, um dos quatro elementos fundamentais da filosofia antiga. E a referência, no v. 30, à esfera de fogo que envolve a Terra (1).

            Mas Dante continua em dúvida. E levanta esta questão ao seu mestre:

/.../ s’amore è di fuori a noi offerto
e l’anima non va con altro piede,
se dritta o torta va, non è suo merto    (XVIII, 43-45)

/.../ se o amor nos é oferecido de fora/ e a alma não anda com outro pé,/ não é seu mérito se vai direita ou torta

            Ou seja, se nossas ações em busca dos bens que nos gratificam já estão predeterminadas por esse amor instilado em nós por Deus, então não há nenhum mérito em nossa conduta, pois ela já estava predeterminada pela natureza. Virgílio admite isso, ao dizer que existem noções inatas no ser humano e uma inclinação por bens

che sono in voi sì come studio in ape
di far lo mele; e questa prima voglia
merto di lode o di biasmo non cape   (XVIII, 58-60)

que estão em vós como nas abelhas/ o desejo de fazer mel; e essa vontade primeira/ não merece nem louvor e nem censura 

            Dante faz uso, nestes versos, dos conceitos de “forma substancial” e “matéria”, referidos explicitamente nos vv. 49 e 50, extraídos da doutrina de S. Tomás de Aquino (2). A primeira é o que dá ao ser existente a sua individualidade, aquilo que o distingue dos demais seres, os quais são concebidos formando uma hierarquia. No topo dela estão os anjos, só forma sem matéria, na base, os entes inanimados. Entre esses extremos há as plantas, os animais e os seres humanos, cuja “forma substancial” é a sua alma (“alma racional”, distinta da “alma sensitiva” dos animais) (3). Conforme o poeta, a “forma substancial” dos seres “nunca se mostra senão pelos seus efeitos,/ como a vida, na planta, pelas suas verdes folhas” (né si dimostra mai che per effeto,/ come per verdi fronde in pianta vita- v.53-54), outra comparação. E ele afirma que é a “forma substancial” do ser humano que explica as suas noções inatas e a inclinação por certos bens, mencionadas acima.  

            Todavia, o ser humano nasce com uma virtude “que aconselha,/ e guarda a porta do vosso conhecimento” (/.../ che consiglia,/ e de l’assenso de’ tener la soglia- v. 62-63).  Essa innata virtù é a razão, ou o livre-arbítrio (libero arbitrio), mencionado explicitamente no v. 74.

Quest’ è ‘l principio là onde si piglia
ragion di meritare in voi, secondo
che buoni e rei amori accoglie e viglia.    (XVIII, 64-66)

Este é o princípio de que deriva/ a avaliação do vosso mérito, segundo/ bons ou maus amores sejam acolhidos ou repudiados.  

            É possível portanto, ao ser humano, escolher um caminho ou outro, e aí reside o mérito de sua conduta, pelo qual será julgado. Dante se satisfaz com essa explicação e afirma que Virgílio  -- “aquela sombra gentil” (quell’ ombra gentil- v.82) de Pietola, sua aldeia natal, próxima a Mantua --  “tinha me livrado do peso que carregava” (del mio carcar diposta avea la soma- v. 84).

Amos Nattini

             Já é tarde, a lua se erguera quase à meia-noite, e Dante fica sonolento. Mas essa sonolência cessa de repente quando ele, olhando para trás, vê uma “grande turba” (turba magna- v.98) vindo correndo, que se aproxima deles. São os penitentes deste novo terraço em que estão.  Dante os compara à multidão de tebanos que acorriam às margens dos rios Imeno e Asopo para cultuar Baco. Mas no caso destes espíritos (que expiam o pecado da preguiça), ele diz que são estimulados pelo “bom querer e justo amor” (buon volere e giusto amor- v. 96).  Dois deles, na frente da turba, “gritavam, chorando” (gridavam piangendo- v. 99):

“Maria corse con fretta a la montagna;
e Cesare, per soggiogare Ilerda,
punse Marsilia e poi corse in  Ispagna.”   (XVIII, 100-102)

Maria correu à montanha;/ e César, para subjugar Lérida,/ primeiro atacou Marselha e depois a Espanha

            No primeiro caso, conforme os comentadores, os penitentes estão se  referindo à visita que Maria, após a Anunciação, apressou-se a fazer a Isabel, também grávida (ela dará à luz João Batista), enfrentando as dificuldades do percurso, conforme o relato bíblico. No outro caso, referem-se a César que, em campanha contra Pompeu e após sitiar Marselha, deixa suas forças aí encarregadas de concluir a operação e corre para a Espanha a fim de combater Pompeu em Ilerda (Lérida).

            Esses são dois exemplos de zelo ou diligência, a virtude oposta ao pecado que é purgado neste terraço, seguindo o padrão dos cantos anteriores (também fazem parte do mesmo padrão os exemplos de punição aos que incorreram no pecado da preguiça citados abaixo).  

            Virgílio pergunta a esses espíritos – cuja punição consiste em mover-se continuamente para compensar “a negligência e demora/ que por tibieza pusestes no bem fazer(/.../ negligenza e indugio/ da voi per tepidezza in ben far messo- v.107-108) -- onde é a próxima passagem para continuar a sua jornada, pois “este que ainda vive” (questi che vive- v. 109), Dante, “quer ir para cima, assim  que o sol rebrilhe” (vuole andar sù, pur che ‘l sol ne riluca- v. 110).  Um daqueles espíritos lhe responde, dizendo para segui-los. E se desculpa assim:

Noi siam di voglia a muoverci sì pieni,
che restar non potem; però perdona,
se villania nostra giustizia tieni.   (XVIII, 115-117)

Nós estamos tão cheios da vontade de mover-nos/ que parar não podemos; por isso, perdoa-nos/ se tomas por descortesia nossa penitência.

Basílica de S. Zeno (Verona) 
             Quem responde diz que foi abade do mosteiro de San Zeno em Verona.  Ele critica “alguém que já está com um pé na cova” (E tale ha già l’un piè dentro la fossa- v. 121) (trata-se de Alberto della Scala, um senhor de Verona) por colocar naquela abadia seu filho ilegítimo, aleijado e de má conduta -- ou como diz, “mal do corpo/ e pior da mente, e mal nascido(/.../ mal del corpo intero/ e de la mente peggio, e che mal nacque- v. 124-125) (4).  

            A multidão passa e Virgílio pede a Dante para prestar atenção na crítica à acídia (5)  que dois deles, no final da turba, ainda fazem:   

Di retro a tutti dicean: “Prima fue
morta la gente a cui il mare s’aperse,
che vedesse Iordan le rede sue.

E quella che l’affanno non sofferse
fino a la fine col figlio d’Anchise,
sé stessa a vita sanza gloria offerse.”   (XVIII,  133-138)

Atrás de todos os outros, diziam:/ “Morreu a gente para quem o mar se abriu/ antes que o Jordão visse os seus herdeiros.
E aquela que não sofreu até o fim/ as dificuldades junto com o filho de Anquises/ rendeu-se a uma vida sem glória” 

            (Note-se nos versos originais a maestria de Dante em explorar, por motivos estéticos, a sonoridade das consoantes f e s ). 

             Esses são os dois exemplos de punição, antes mencionados, dos que  incorreram no pecado da acídia ou preguiça. O primeiro refere-se à punição que os judeus egressos do Egito receberam, após a abertura do rio Vermelho, quando não tiveram a disposição necessária para seguir Moisés até a Terra Prometida. Assim, essa Terra, banhada pelo rio Jordão, só seria vista pela próxima geração, a dos seus descendentes. No segundo caso, a crítica se refere aos homens de Enéas (“o filho de Anquises”) que não quiseram segui-lo até o Lácio, enfrentando as dificuldades implícitas, e permaneceram na Sicília. Deixaram assim de participar da glória de ter estabelecido na península itálica as origens da sociedade que constituiria o Império Romano.    

            Depois que os penitentes se afastam, Dante se entrega aos seus pensamentos, vagando de um para outro, até que adormece.  


NOTAS


(1) Cf. o diagrama que consta em MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. Bantam Books, 1982- p.342. Esse diagrama reflete a concepção geral do universo segundo a “Divina Comédia” e inclui a presença dos quatro elementos tradicionais da filosofia antiga —terra, no Hemisfério Norte, água, no Hemisfério Sul, ar e fogo nas camadas que envolvem a Terra, abaixo das esferas celestes, estas abordadas no “Paraíso”. O “Inferno” está situado abaixo da superfície da terra e o “Purgatório”, na única montanha do hemisfério aquático, surgida pelo deslocamento de terra quando Lúcifer despencou do céu.     

(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.361

(3) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.211

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.362

(5) Acídia é definida no dicionário Aurélio como “Abatimento do corpo e do espírito; moleza, frouxidão”. Dorothy Sayers alerta que ela não é meramente a ociosidade da mente e a preguiça do corpo; diz que é um envenenamento da vontade que começa com a indiferença, estende-se a uma recusa deliberada da alegria e culmina em introspecção mórbida e desespero. Uma forma moderna dela é a aceitação do mal e do erro disfarçada em “tolerância”; outra é a recusa em emocionar-se na contemplação do bem e do belo (“desilusão”); outra ainda é o isolamento do artista e do contemplativo na “torre de marfim” (“escapismo”). Cf. SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p. 209.    


Salvador Dalí



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