PURGATÓRIO
Canto XVIII
Após a
exposição sobre o amor feita por Virgílio no canto anterior, Dante ainda
continua em dúvidas mas sente-se constrangido em externá-las. Pensa assim: “Talvez perguntar demais o aborreça” (/.../
“Forse/lo troppo dimandar ch’io fo li grava”- v.5-6). Mas seu “pai veraz” (padre
verace- v.7),
lendo seu pensamento, o estimula a falar, e ele pede então para que Virgílio lhe
explique o amor, “ao qual atribuis toda
obra boa e o seu contrário (/.../ a cui reduci/ ogne buono
operare e ‘l suo contraro- v. 14-15).
Antes de
iniciar sua nova exposição, o mestre já previne o seu discípulo quanto ao “erro dos cegos que se fazem guias” (l’error
de’ ciechi che si fanno duci- v. 18). Segundo o comentadores, Dante-autor critica aqui, pela boca
de Virgílio, os adeptos do epicurismo,
para quem, como este dirá adiante, “todo
amor é coisa em si louvável” (ciascun amore in sé laudabil
cosa- v.36).
Virgílio começa
falando sobre o amor inato, de que toda alma é dotada, ao ser criada. Ele é definido
como a inclinação natural da alma ao bem que lhe traz satisfação, “assim como o fogo move-se para cima/ pela
sua natureza destinado a subir/ para lá onde dura mais no seu elemento ”:
/.../
come ‘l foco movesi in altura
per la sua forma ch’ è nata a salire
là dove più in sua matera dura (XVIII,
28-30)
Note-se nessa
passagem a comparação com o fogo, um dos quatro elementos fundamentais da
filosofia antiga. E a referência, no v. 30, à esfera de fogo que envolve a
Terra (1).
Mas Dante
continua em dúvida. E levanta esta questão ao seu mestre:
/.../ s’amore è di fuori a noi offerto
e l’anima non va con altro piede,
se dritta o torta va, non è suo merto (XVIII,
43-45)
/.../
se o amor nos é oferecido de fora/ e a alma não anda com outro pé,/ não é seu
mérito se vai direita ou torta
Ou seja, se
nossas ações em busca dos bens que nos gratificam já estão predeterminadas por
esse amor instilado em nós por Deus, então não há nenhum mérito em nossa
conduta, pois ela já estava predeterminada pela natureza. Virgílio admite isso,
ao dizer que existem noções inatas no ser humano e uma inclinação por bens
che
sono in voi sì come studio in ape
di far lo mele; e questa prima voglia
merto di lode o di biasmo non cape (XVIII, 58-60)
que
estão em vós como nas abelhas/ o desejo de fazer mel; e essa vontade primeira/
não merece nem louvor e nem censura
Dante faz uso, nestes
versos, dos conceitos de “forma
substancial” e “matéria”,
referidos explicitamente nos vv. 49 e 50, extraídos da doutrina de S. Tomás de
Aquino (2). A primeira é o que dá ao ser existente a sua individualidade,
aquilo que o distingue dos demais seres, os quais são concebidos formando uma
hierarquia. No topo dela estão os anjos, só forma sem matéria, na base, os
entes inanimados. Entre esses extremos há as plantas, os animais e os seres
humanos, cuja “forma substancial” é a sua alma (“alma racional”, distinta da “alma
sensitiva” dos animais) (3). Conforme o poeta, a “forma substancial” dos seres
“nunca se mostra senão pelos seus
efeitos,/ como a vida, na planta, pelas suas verdes folhas” (né si
dimostra mai che per effeto,/ come per verdi fronde in pianta vita- v.53-54), outra comparação. E
ele afirma que é a “forma substancial” do ser humano que explica as suas noções
inatas e a inclinação por certos bens, mencionadas acima.
Todavia, o ser
humano nasce com uma virtude “que
aconselha,/ e guarda a porta do vosso conhecimento” (/.../
che consiglia,/ e de l’assenso de’ tener la soglia- v. 62-63). Essa innata virtù é a razão, ou o
livre-arbítrio (libero arbitrio), mencionado explicitamente no v. 74.
Quest’ è ‘l principio là onde si piglia
ragion
di meritare in voi, secondo
che buoni e rei amori accoglie e viglia. (XVIII, 64-66)
Este é
o princípio de que deriva/ a avaliação do vosso mérito, segundo/ bons ou maus
amores sejam acolhidos ou repudiados.
É possível
portanto, ao ser humano, escolher um caminho ou outro, e aí reside o mérito de
sua conduta, pelo qual será julgado. Dante se satisfaz com essa explicação e
afirma que Virgílio -- “aquela sombra gentil” (quell’
ombra gentil- v.82) de Pietola, sua aldeia natal, próxima a Mantua -- “tinha
me livrado do peso que carregava” (del mio carcar diposta avea la
soma- v. 84).
Amos Nattini |
Já é tarde, a
lua se erguera quase à meia-noite, e Dante fica sonolento. Mas essa sonolência
cessa de repente quando ele, olhando para trás, vê uma “grande turba” (turba magna- v.98) vindo correndo, que se
aproxima deles. São os penitentes deste novo terraço em que estão. Dante os compara à multidão de tebanos que
acorriam às margens dos rios Imeno e Asopo para cultuar Baco. Mas no caso destes
espíritos (que expiam o pecado da preguiça), ele diz que são estimulados pelo “bom querer e justo amor” (buon
volere e giusto amor- v. 96). Dois deles, na frente
da turba, “gritavam, chorando” (gridavam
piangendo- v. 99):
“Maria corse con fretta a la montagna;
e Cesare, per soggiogare Ilerda,
punse Marsilia e poi corse in Ispagna.”
(XVIII, 100-102)
“Maria
correu à montanha;/ e César, para subjugar Lérida,/ primeiro atacou Marselha e
depois a Espanha”
No primeiro
caso, conforme os comentadores, os penitentes estão se referindo à visita que Maria, após a
Anunciação, apressou-se a fazer a Isabel, também grávida (ela dará à luz João
Batista), enfrentando as dificuldades do percurso, conforme o relato bíblico. No
outro caso, referem-se a César que, em campanha contra Pompeu e após sitiar
Marselha, deixa suas forças aí encarregadas de concluir a operação e corre para
a Espanha a fim de combater Pompeu em Ilerda (Lérida).
Esses são dois
exemplos de zelo ou diligência, a virtude oposta ao pecado que é purgado neste
terraço, seguindo o padrão dos cantos anteriores (também fazem parte do mesmo padrão
os exemplos de punição aos que incorreram no pecado da preguiça citados
abaixo).
Virgílio
pergunta a esses espíritos – cuja punição consiste em mover-se continuamente
para compensar “a negligência e demora/
que por tibieza pusestes no bem fazer” (/.../ negligenza e indugio/ da
voi per tepidezza in ben far messo- v.107-108) -- onde é a próxima passagem para
continuar a sua jornada, pois “este que
ainda vive” (questi che vive- v. 109), Dante, “quer ir para
cima, assim que o sol rebrilhe” (vuole
andar sù, pur che ‘l sol ne riluca- v. 110). Um daqueles espíritos
lhe responde, dizendo para segui-los. E se desculpa assim:
Noi siam di voglia a muoverci sì pieni,
che restar non potem; però perdona,
se villania nostra giustizia tieni. (XVIII, 115-117)
Nós
estamos tão cheios da vontade de mover-nos/ que parar não podemos; por isso,
perdoa-nos/ se tomas por descortesia nossa penitência.
Basílica de S. Zeno (Verona) |
Quem responde
diz que foi abade do mosteiro de San Zeno em Verona. Ele critica “alguém que já está com um pé na cova” (E tale
ha già l’un piè dentro la fossa- v. 121) (trata-se de Alberto della Scala, um senhor de Verona) por
colocar naquela abadia seu filho ilegítimo, aleijado e de má conduta -- ou como
diz, “mal do corpo/ e pior da mente, e
mal nascido” (/.../ mal del corpo intero/ e de la mente peggio, e che mal
nacque- v. 124-125) (4).
A multidão
passa e Virgílio pede a Dante para prestar atenção na crítica à acídia (5) que dois deles, no final da turba, ainda fazem:
Di retro a tutti dicean: “Prima fue
morta la gente a cui il mare s’aperse,
che vedesse Iordan le rede sue.
E
quella che l’affanno non sofferse
fino a
la fine col figlio d’Anchise,
sé stessa
a vita sanza gloria offerse.”
(XVIII, 133-138)
Atrás
de todos os outros, diziam:/ “Morreu a gente para quem o mar se abriu/ antes
que o Jordão visse os seus herdeiros.
E
aquela que não sofreu até o fim/ as dificuldades junto com o filho de Anquises/
rendeu-se a uma vida sem glória”
(Note-se nos versos
originais a maestria de Dante em explorar, por motivos estéticos, a sonoridade
das consoantes f e s ).
Esses são os dois
exemplos de punição, antes mencionados, dos que
incorreram no pecado da acídia ou preguiça. O primeiro refere-se à
punição que os judeus egressos do Egito receberam, após a abertura do rio
Vermelho, quando não tiveram a disposição necessária para seguir Moisés até a
Terra Prometida. Assim, essa Terra, banhada pelo rio Jordão, só seria vista
pela próxima geração, a dos seus descendentes. No segundo caso, a crítica se
refere aos homens de Enéas (“o filho de
Anquises”) que não quiseram segui-lo até o Lácio, enfrentando as
dificuldades implícitas, e permaneceram na Sicília. Deixaram assim de
participar da glória de ter estabelecido na península itálica as origens da sociedade
que constituiria o Império Romano.
Depois que os
penitentes se afastam, Dante se entrega aos seus pensamentos, vagando de um
para outro, até que adormece.
NOTAS
(1) Cf. o diagrama que consta em MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. Bantam Books, 1982- p.342.
Esse diagrama reflete a concepção geral do universo segundo a “Divina Comédia” e
inclui a presença dos quatro elementos tradicionais da filosofia antiga —terra, no Hemisfério Norte, água, no Hemisfério Sul, ar e fogo
nas camadas que envolvem a Terra, abaixo das esferas celestes, estas abordadas
no “Paraíso”. O “Inferno” está situado abaixo da superfície da terra e o
“Purgatório”, na única montanha do hemisfério aquático, surgida pelo
deslocamento de terra quando Lúcifer despencou do céu.
(2)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit,
p.361
(3) SAYERS,
Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers. Penguin Classics, 1963, p.211
(4) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.362
(5) Acídia
é definida no dicionário Aurélio como “Abatimento do corpo e do espírito;
moleza, frouxidão”. Dorothy Sayers alerta que ela não é meramente a ociosidade
da mente e a preguiça do corpo; diz que é um envenenamento da vontade que
começa com a indiferença, estende-se a uma recusa deliberada da alegria e
culmina em introspecção mórbida e desespero. Uma forma moderna dela é a
aceitação do mal e do erro disfarçada em “tolerância”; outra é a recusa em
emocionar-se na contemplação do bem e do belo (“desilusão”); outra ainda é o isolamento
do artista e do contemplativo na “torre de marfim” (“escapismo”). Cf. SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”, op cit, p. 209.
Salvador Dalí |
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