PURGATÓRIO
Canto XXIII
Dante fica a
contemplar a copa da estranha árvore que encontraram em seu caminho --
comparando-se a “aquele que costuma
desperdiçar a sua vida caçando pássaros”
(/.../ sì come far suole/ chi dietro a li uccellin sua vita
perde- v. 2-3)
– quando Virgílio o chama, “pois o tempo
que nos é atribuído/ mais utilmente há de se repartir” (/.../
ché ‘l tempo che n’ è imposto/ più utilmente compartir si vuole- v.5-6). Ele segue então os dois poetas, que conversam,
e isso torna sua jornada mais fácil, ou “sem
custo” (di nullo costo- v. 9). Mas são surpreendidos
por este fato:
Ed ecco piangere e cantar s’udìe
“Labïa mëa, Domine” per modo
tal, che diletto e doglia parturìe. (XXIII, 10-12)
E eis
que se ouviu chorar e cantar/ “Labia mea, Domine” de modo tal / que produzia
deleite e dor.
“Labïa mëa,
Domine”, conforme informam os comentadores, é o início do versículo 15 do
salmo 51 (“Abre, ó Senhor, os meus
lábios, e a minha boca entoará o teu louvor”) (1), uma lembrança do uso
mais nobre da boca, o de louvar o Senhor, neste terraço dos gulosos, que só a
usaram para comer e beber... Os versos acima contêm afirmações antagônicas, os
chamados oxímoros: “chorar e cantar”
e “deleite e dor”. Mais adiante, também
teremos a ocorrência dessa figura de linguagem nos versos 64, 72, 74 e 86 (2),
como se verá. O recurso frequente a ela certamente decorre da intenção do poeta
em enfatizar a natureza dupla do Purgatório, lugar de sofrimento, pela purgação
do pecado, mas também de alegria, porque permitirá, ao fim da estadia nele, o
acesso ao Paraíso...
Dante pede a
seu guia explicação para isso que ouve, e Virgílio lhe responde que são “Talvez sombras que caminham/ desatando o nó
de sua dívida” (/.../ “Ombre che vanno/ forse di lor dover solvendo il nodo”- v.
14-15). A
“dívida” é, naturalmente, metáfora do pecado da gula. E “desatar o nó” está por
desfazer a culpa, saldar a dívida que os gulosos têm para com o Senhor...
Amos Nattini |
Logo, “uma turba devota e silenciosa de almas”
(d’anime turba tacita e devota- v. 21) que vinha atrás deles
andando rapidamente os ultrapassa, olhando-os admirada. Dante descreve assim
essas almas:
Ne li occhi era ciascuna oscura e cava,
palida ne la faccia, e tanto scema
che da l’ossa la pelle s’informava. (XXIII, 22-24)
Cada
uma tinha os olhos ocos e escuros,/ a face era pálida, e tão emagrecida/ que a
pele tomava a forma dos ossos.
Segue-se a
comparação delas, pela sua secura, primeiro a Erisicton -- o personagem da
mitologia clássica cuja fome insaciável acabaria por levá-lo a devorar a si
mesmo -- e depois aos judeus famintos na Jerusalém sitiada (destruída por Tito
no ano 70 da nossa era) quando uma mulher chamada Maria matou e devorou o
próprio filho, episódio relatado pelo historiador
do 1º século Flavius Josephus (3). Dante prossegue descrevendo as sombras
nestes versos curiosos:
Parean l’occhiaie anella sanza gemme:
chi nel viso de li uomini legge “omo”
ben
avria quivi conosciuta l’emme. (XXIII,
31-33)
As
órbitas de seus olhos pareciam anéis sem gemas:/ quem no rosto humano lê “OMO”
/ teria reconhecido aqui só o M.
Segundo Sayers,
uma tradição medieval via no rosto do homem a palavra “(H) OMO DEI”, ou seja “homem
(é) de Deus”, em que os OO de OMO são os olhos, M é o contorno do nariz,
sobrancelhas e bochechas, D as orelhas, E as narinas e I a boca. Naturalmente,
numa pessoa muito magra, as linhas que formam o M destacam-se em seu rosto...
(4). Note-se que essa associação dos versos a uma imagem gráfica é um recurso
bem moderno...
Na sequência,
há uma explicação para a magreza dessas sombras: é o odor dos frutos e da água
sobre as folhas daquela árvore insólita que, gerando um desejo não satisfeito,
as reduz àquele estado... Essa é a razão “de
sua magreza e da triste pele escamosa” (di lor magrezza e di lor trista
squama- v. 39)...
Surge então,
daquela turba magérrima, alguém que, “do
fundo da cabeça” (del profondo de la testa- v.40), volta para Dante os olhos, e olhando-o
fixamente, exclama: “Que graça para mim é
esta?” (“Qual grazia m’è questa?”-
v.42).
Dante não o reconhece de imediato:
Mai non
l’avrei riconosciuto al viso;
ma ne
la voce sua mi fu palese
ciò che
l’aspetto in sé avea conquiso. (XXIII,
43-45)
Nunca o
teria reconhecido pelo rosto;/ mas a sua voz me revelou/ o que no seu aspecto se
alterara.
Dante vê que se
trata de seu amigo íntimo Forese Donati, com quem ele trocou sonetos vulgares e
obscenos na juventude, numa disputa poética tradicional chamada “tenzon”. Era irmão de Corso Donati, líder do partido
Negro florentino (adversário do partido Branco, de Dante), e de Piccarda, ambos
a serem referidos no próximo Canto XXIV (5).
G.Doré- Forese |
Forese se
manifesta nestes termos:
“Deh,
non contendere a l’asciutta scabbia
che mi scolora”, pregava, “la pelle,
né a difetto di carne ch’io
abbia;
ma
dimmi il ver di te, dì chi son quelle
due anime che là ti fanno scorta;
non rimaner che tu non mi favelle!” (XXIII, 49-54)
“Ah,
não repares na seca sarna/ que me descora a pele”, implorava,/ “nem na carne
que não tenho mais;
mas
dize a verdade sobre ti, dize quem são/ aquelas duas almas que te guiam;/ não
fiques aí sem me falar!”
Note-se a
aliteração dos versos originais, em que ocorrem muitos sons secos-- c e sc -- como para acentuar a secura da pele que se
escama (6)
Dante se
emociona ao ver a face desfigurada do amigo:
“La faccia tua, ch’io lagrimai già morta,
mi dà
di pianger mo non minor doglia,”
rispuos’io
lui, “veggendola sì torta. (XXIII,
55-57)
“A face
tua, sobre a qual verti lágrimas, já morta,/ me dá agora um não menor desejo de
chorar,/ vendo-a tão desfigurada”, lhe respondi.
Em seguida,
pergunta qual a razão disso. E Forese lhe diz que aquela árvore e a água que
escorre em sua copa, antes mencionadas, têm
“a virtude” (vertù-
v. 62) “pela qual me definho” (/.../
ond’io sì m’assottiglio- v. 63). A fragrância dos pomos
e da água em sua folhagem desperta nele e em seus companheiros desejo de comer
e de beber. Mas como isso não é permitido, essa fome e sede os faz definhar
constantemente. Porém tal sofrimento é bem aceito porque os purifica. Assim, toda
essa gente “canta chorando” (piangendo
canta- v. 64)
(cf. o oxímoro) pois “aqui se refaz santa
em fome e sede” (in fame e ‘n sete qui si rifà santa- v. 66). Sua pena abrange
ainda andar em volta no terraço, uma pena que também é consolo (sollazzo-
v. 72). Anima-os,
segundo ele diz, o mesmo desejo “que
levou Cristo a dizer alegremente “Eli”,/ quando nos libertou com o seu sangue”
(che menò Cristo lieto a dire ‘Elì’,/ quando ne liberò con la sua vena- v. 74-75), mais um oxímoro presente nos versos deste Canto (“Eli”
é o início das palavras, em aramaico, pronunciadas por Cristo quando morria na
cruz, conforme o evangelho de S.Mateus 27:46. Traduzidas significam “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste”?)
(7).
Dante se admira
de Forese já se encontrar neste terraço da montanha do Purgatório, tendo em
vista sua morte recente: “cinco anos não
se passaram até aqui” (cinqu’ anni non son vòlti infino a qui- v.
78) desde
que “mudaste de mundo por melhor vida”
(mutasti mondo a miglior vita- v. 77). Pensava encontrá-lo
na base da montanha, “onde o tempo com
tempo se repara” (dove tempo per tempo si ristora- v. 84), considerando o tempo
que levou para se arrepender da vida pecaminosa.
Forese lhe
explica que o privilégio de poder já estar “bebendo
o doce absinto dos tormentos” (a ber lo dolce assenzo d’i
martìri- v.86) (outro
oxímoro), quer dizer, de já estar naquele nível da montanha, ele deve à sua
viuvinha (la vedovella mia- v.92), Nella, a quem muito amou. Foi ela que o tirou da praia junto
ao monte do Purgatório e o livrou dos outros círculos, “Com suas preces devotas e com suspiros” (Con
suoi prieghi devoti e con sospiri- v. 88). Nos versos seguintes
ele elogia a virtude dela e critica “as
descaradas florentinas” (le sfacciate donne fiorentine- v. 101) de seu tempo, a “andar mostrando com as mamas o peito” (l’andar
mostrando con le poppe il petto- v. 102). E afirma:
Ma se le svergognate fosser certe
di quel
che ‘l ciel veloce loro ammanna,
già per urlare avrian le bocche
aperte; (XXIII, 106-108)
Mas se
as desavergonhadas soubessem/ do que o
céu veloz lhes prepara/ já teriam, para urrar, as bocas abertas;
Os
comentaristas afirmam que Dante-autor, ao incluir aqui esse elogio à esposa de
Forese, está, de certa forma, se retratando da forma pouco respeitosa com que a
tratou nos sonetos injuriosos que trocou com seu amigo quando jovem...
Forese, em sua
capacidade de fazer previsões, própria dos que estão no Além, afirma que essas
mulheres, como todos em Florença, vão abrir a boca (mencionada novamente, não
por acaso...) para gritar de dor; “ficarão
tristes antes que surjam pelos/ nas faces daqueles que ora são ninados” (prima
fien triste che le guance impeli/ colui che mo si consola con nanna- v. 110-111), ou seja, antes que cresça a barba nos meninos
de agora, antes que eles atinjam a adolescência. Os comentaristas arrolam
diversos fatos que comprovam essa “previsão” no período de uns 15 anos após 1300
(a invasão de Charles de Valois, desastres naturais etc) (8).
No final de sua
manifestação, pede a Dante que fale sobre si, pois Forese, e toda a gente que
ali está, “olha o lugar onde tu és
obstáculo ao sol” (tutta rimira là dove ‘l sol veli- v. 114). Dante então lembra ao amigo a vida
(desregrada) que juntos levaram na juventude, uma lembrança penosa (v. 117)
porque associada ao pecado. Diz que de tal vida o tirou Virgílio numa noite de
lua cheia (a lua é referida como a irmã do sol, o que está de acordo com suas
personificações na mitologia clássica, onde Diana, a lua, é irmã de Apolo, o
sol) (9). Diz que seu guia o conduziu, ainda vivo, “pela profunda/ noite dos mortos verdadeiros” (/.../
per la profonda/ notte menato m’ ha d’i veri morti- v. 121-122), i.e. o Inferno, e
também o acompanha agora, “subindo e
dando voltas na montanha/ que vos endireita, vós, que o mundo tornou tortos”
(salendo e rigirando la montagna/ che drizza voi che ‘l mondo
fece torti- v. 125-126), até que ele encontre Beatriz. Dante conclui o Canto dizendo a Forese que a
outra pessoa que ele segue
/.../ è quell’ombra
per cui scosse dianzi ogne pendice
lo vostro regno, che da sé lo
sgombra”. (XXIII, 131-133)
/.../ é
aquela sombra/ por quem tremeram há pouco todas as encostas/ do vosso reino,
que de si o libera”
NOTAS
(1) “BÍBLIA Sagrada”. Tradução de João
Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1994, p. 505
(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984-p. 374
(3) Id.
ib., p. 374
(4) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”. Translated by Dorothy L.
Sayers. Penguin
Classics, 1963, p. 251.
(5) Id., ib, p. 251-252 e 362.
(6) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri-
“La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini,
2013- p.599
(7) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”, op cit, p. 252. Cf. também a Bíblia
referida acima e “The Penguin Dictionary of Foreign Terms and Phrases”,
1993, p. 108
(8) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 376.
(9)
Id., ib, p. 376.
Salvador Dalí |
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