quinta-feira, 24 de março de 2016

Canto XXIV


PURGATÓRIO


Canto XXIV


            Os versos iniciais do Canto nos informam que todos avançavam em sua jornada, sem que a conversa entre eles os retardasse: “mas conversando, íamos depressa/ assim como nau impelida por bom vento” (/.../ ma ragionando andavam forte,/ sì come nave pinta da buon vento- v.2-3), uma comparação. Enquanto Estácio e Virgílio iam à frente, Dante, acompanhado de Forese, seguia atrás. Ele retoma sua fala a este amigo, interrompida no final do Canto anterior, afirmando o seguinte sobre Estácio: “Essa sombra sobe talvez mais lentamente/ do que o faria, por causa da outra alma” (/.../ “Ella sen va sù forse più tarda/ che non farebbe, per altrui cagione-  v. 8-9), quer dizer, por causa de Virgílio.  Estácio, como vimos, já foi liberado do Purgatório, mas se demora um pouco mais aí pelo privilégio de poder conversar com o autor da “Eneida”...   

G.Doré- Os gulosos


            Dante pergunta a Forese onde está sua irmã Piccarda e indaga sobre alguns daqueles seus companheiros de purgação, que o olham admirados, assim se referindo a eles:

e l’ombre, che parean cose rimorte,
per le fosse de li occhi ammirazione
traean di me, di mio vivere accorte   (XXIV, 4-6)

e as sombras, que pareciam mortas duas vezes,/ pela covas dos olhos exprimiam admiração/ ao dar-se conta de que eu estava vivo.

            A impressão dessa “segunda morte”, naturalmente, relacionava-se ao fato de elas estarem muito magras, haja vista o sacrifício que assumiram (de bom grado) para compensar o seu pecado da gula. 

            Forese responde a Dante dizendo que Piccarda “triunfa alegre,/ no alto Olimpo já, em sua coroa” (/.../ trïunfa lieta/ ne l’alto Olimpo già di sua corona- v. 14-15), ou seja, ela já está no Paraíso. O irmão deles, Corso Donati (ainda vivo e referido, indiretamente, mais adiante) a obrigou a quebrar seus votos de freira e a se casar com uma pessoa indicada por ele, tendo em vista a sua conveniência política (1).   

            Depois, Forese começa a dar os nomes de diversos integrantes daquele bando de sombras, atendendo ao pedido de Dante. Menciona: 1) Bonagiunta da Lucca, de que se falará abaixo;  2) alguém que “teve a Santa Igreja em seus braços:/ era de Tours, e seu jejum purga/ as enguias de Bolsena e o vinho vernaccia” (ebbe la Santa Chiesa in le sue braccia:/ dal Torso fu, e purga per digiuno/ l’anguille di Bolsena e la vernaccia- v. 22-24); o fato de o papa ser considerado o “esposo” da Igreja (2), a pessoa ser de Tours e ter tais hábitos alimentares na vida terrena o identificam como o papa glutão Martinho IV;  3) Ubaldin de la Pila, que Dante vê “pela fome, a mastigar em vão” (Vidi per fame a vòto usar li denti- v. 28). Este nobre florentino  era irmão do Cardeal Otaviano, que está no Inferno entre os epicuristas (cf Inf., canto X), e pai do arcebispo Ruggieri mencionado no Inf., canto XXXIII. Segundo Sayers, ele era um homem refinado com talento para inventar novas receitas culinárias (3); 4) Bonifazio, “que pastoreou muita gente com seu báculo” (che pasturò col rocco molte genti-  v. 30), é, segundo os comentadores, Bonifazio Fieschi, antigo arcebispo de Ravena, que -- como deixa subentendido um Dante irônico -- não só pastoreava (= guiar ao pasto) seu rebanho no sentido figurado e espiritual...(4); e 5) um senhor marquês (Messer Marchese degli Argugliosi), da cidade de Forlì, na Romagna, que nunca se saciava, ao beber. 

            Destes, o que mais chama a atenção de Dante é “o de Lucca,/ que mais parecia ter notícia de mim” (/.../ a quel da Lucca,/ che più parea di me aver contezza- v. 35-36), o primeiro mencionado acima.

El mormorava; e non so che “Gentucca”
sentiv’io là, ov’ el sentia la piaga
de la giustizia che sì li pilucca.    (XXIV,  37-39)

Ele murmurava; e não sei que “Gentucca”/ ouvi dali onde ele sentia a chaga/ da justiça que assim o consumia.   

            Assim Dante ouve da boca de Bonagiunta – do local do corpo mais associado à fome e sede, purgação dos gulosos, por isso chamada  chaga da justiça” (piaga de la giustizia) (divina) -- a menção a essa pessoa. Bonagiunta   “prediz” que Gentucca é uma mulher que o fará prezar sua cidade, Lucca, que antes criticara (Gentucca seria provavelmente uma pessoa bondosa que apoiou Dante em seu exílio) (5). Depois Bonagiunta pergunta a Dante se ele é “aquele que iniciou/ as novas rimas, começando por ‘Damas que tendes do amor entendimento’” ( /.../ colui che fore/ trasse le nove rime, cominciando/ ‘Donne ch’avete intelletto d’amore’- v. 49-51),  verso da primeira canção da sua “Vita Nuova”,  demonstrando assim que já havia reconhecido Dante (cf v. 36). Este então lhe responde nos versos seguintes, indicando a importância da sinceridade na nova escola poética de que é representante, a do “dolce stil novo” (v. 57):

E io  a lui: “I’ mi son un che, quando
Amor mi spira, noto, e a quel modo
ch’ e’ ditta dentro vo significando.”    (XXIV, 52-54)

E eu a ele: “Eu sou alguém que, quando/ Amor inspira, anoto, e do modo/ como me dita dentro vou expressando”   

            Bonagiunta da Lucca, que também era poeta, reconhece aí “o nó” (il nodo- v. 55) que o prendia fora dessa nova escola, assim como também prendia outros de seu grupo, mencionados, como o Notário e Guittone (v.56). Segundo Sayers, o notário Giacomo da Lentino e Guittone d’Arezzo pertenciam à chamada “escola siciliana de poesia” da segunda metade do século XIII, influenciada pelos trovadores provençais e ligada, durante certo tempo, à corte da Sicília.  Posteriormente a escola tornou-se artificial e racionalista, inclinando-se a ver no Amor uma paixão maligna. Por outro lado, segundo a mesma autora, o “dolce stil nuovo” era a escola florentina que tinha como modelo Guido Guinicelli de Bolonha. Ela “concebia o Amor, purificado de seus elementos sensuais, como uma força de origem divina inseparável da verdadeira nobreza da alma, sublimadora das paixões” (6).  A essa escola pertencia, além de Dante, seu amigo Guido Cavalcanti, Cino da Pistoia e Lapo Gianni de’ Ricevati.  Bonagiunta reconhece que o fato de seu grupo  não seguir de perto aquele que dita, i. e. o Amor, é o que distingue um estilo do outro...

            Na sequência, toda a gente que ali estava – comparada a um bando de pássaros junto ao Nilo -- apressa o passo, “ligeira, pela magreza e pelo desejo” (e per magrezza e per voler leggera- v.69), ansiosa pela sua ascensão espiritual...  Segue-se outra comparação, a de Forese com um homem cansado, ofegante, que se deixa ultrapassar por essa “grei santa” (santa greggia- v. 73). Ele pergunta a Dante: “Quando te verei de novo?” (“Quando fia ch’io ti riveggia?”- v. 75) ao que o poeta responde:

“Non so”, rispuos’ io lui, “quant’io mi viva;
ma già non fïa il tornar mio tantosto,
ch’io non sia col voler prima a la riva;   (XXIV, 76-78)

Não sei”, lhe respondi, “quanto viverei;/ mas meu retorno não será tão cedo/ que eu não chegue antes com o desejo a estas praias;

            Segue-se então uma crítica de Dante a sua cidade natal, Florença, “que dia a dia se despoja do bem” (di giorno in giorno più di ben si spolpa- v.80) e se arruína. Forese “prevê” (pois em 1300 -- ano em que transcorre a ação do poema -- ainda não ocorrera) a morte de “aquele que é mais culpado” (/.../ quei che più n’ha colpa- v. 82)  disso, que é o seu próprio irmão Corso Donati, não citado diretamente mas identificado pelos comentadores em função do que Forese afirma nos versos que descrevem as circunstâncias de sua morte (“vejo pela cauda dum cavalo arrastado”- vegg’ïo a coda d’una bestia tratto - v. 83 etc). Corso era o líder dos Guelfos Negros e foi a seu pedido que Bonifácio VIII mandou Charles de Valois invadir Florença em 1300, o que provocou a destituição dos Brancos do poder, o partido de Dante, e em consequência o exílio deste. Em 1309, Corso caiu em desgraça pois descobriu-se que conspirava para se assenhorear de Florença, e por isso foi condenado à morte pelos próprios Negros. Ao fugir, morreu nas condições descritas por Dante (7).  Forese afirma que ele irá “para o vale onde não se purga pecado” (inver’ la valle ove mai non si scolpa- v. 84), isto é, o Inferno. 

Morte de Corso Donati (miniatura do séc. XIV)
Assim, cada um dos três irmãos Donati está num reino do Além diferente: Forese no Purgatório, Piccarda no Paraíso e Corso irá para o Inferno.  De acordo com Sinclair, “Os Donati eram uma antiga família de Guelfos nobres, rivais naturais, portanto, da nova burguesia rica da república em crescimento”. Enquanto os Negros eram liderados pelos Donati, os Brancos, “o partido dos rústicos”, o eram pela família Cerchi, de prósperos comerciantes mas de origem humilde (8).  A propósito, a esposa de Dante pertencia à família Donati.

            Concluída sua “predição” a respeito do irmão, Forese separa-se de Dante pois para ele “o tempo é caro/ neste reino” ( /.../ ché ‘l tempo è caro/ in questo regno, /.../- v. 91-92), e ele “perde muito” (/.../ io perdo troppo- v. 92) seguindo o amigo no mesmo passo. Ele tem pressa de escalar a montanha do Purgatório, ou seja, de ascender espiritualmente,  como os companheiros de seu bando que os ultrapassaram. Para descrever sua partida, Dante faz mais uma comparação: Forese se aparta dele

Qual esce alcuna volta di gualoppo
lo cavalier di schiera che cavalchi,
e va per farsi onor del primo intoppo    (XXIV,  94-96)

Como às vezes sai a galope da formação/ o cavaleiro que cavalga contra o inimigo/ e avança para conquistar a honra do primeiro embate

G.Doré- A árvore


             Olhando para ele, que já estava longe, e ao fazer uma curva no monte, Dante se depara com “os ramos carregados de frutos e vivazes/ de uma outra árvore” (/.../ i rami gravidi e vivaci/ d’un altro pomo, /.../- v. 103-104) e vê sombras debaixo dela erguendo as mãos (para colher seus frutos, supõe-se, tendo em vista que estão famintos...). Surge aqui nova comparação, bastante sugestiva. Essas sombras são

quasi bramosi fantolini e vanni

che pregano, e ‘l pregato non responde,
ma, per fare esser ben la voglia acuta,
tien alto lor disio e nol nasconde.   (XXIV, 108-111)

como crianças ansiosas que em vão
rogam, e o rogado não responde,/ mas para aguçar o seu desejo/ mantém alto o objeto desejado, e não o esconde.

            As sombras partem, desiludidas, e os poetas chegam à arvore “que tantos rogos e lágrimas rejeita” (che tanti prieghi e lagrime rifiuta- v. 114). Ouvem então uma voz que os manda passar ao largo dela e informa que ela deriva da árvore “mais no alto, que foi mordida por Eva” (legno è più sù che fu morso da Eva- v. 116). Esta é a “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal” do Paraíso Terrestre situado no topo desta montanha do Purgatório, como se verá ao final da sua escalada.   

            Virgílio, Estácio e Dante atendem à determinação dessa voz misteriosa e avançam, comprimidos, junto à encosta da montanha, a fim de não se aproximarem demais da árvore, situada entre a encosta e a orla do terraço.  

            A voz estranha prossegue citando dois exemplos de gula punida, um extraído da mitologia clássica e outro da Bíblia, como é usual neste poema. O primeiro refere-se aos “malditos/ formados nas nuvens que, empanturrados,/ combateram Teseu com o duplo peito” (humano e equino) (/.../ i maladetti/ nei nuvoli formati, che, satolli,/ Teseo combatter co’ doppi petti- v.121-123). Nessa linguagem indireta, Dante está mencionando os centauros, filhos de Ixíon e uma nuvem, a quem Zeus deu a forma de Hera, desejada por Ixíon. Na festa de casamento do rei dos lapitas, os centauros se embriagaram e tentaram violar a noiva e outras mulheres mas Teseu resgatou a noiva e lutou contra eles, auxiliado pelos lapitas, e os derrotou  (9).

            O segundo exemplo citado de gula punida é extraída do livro dos Juízes (VII- 1-7) e refere-se aos “hebreus que se mostraram moles bebendo” (/.../ li Ebrei ch’al ber si mostrar molli- v.124) e por isso não foram escolhidos para compor o exército de Gedeão que atacaria os madianitas. Ele, seguindo as instruções do Senhor, excluiu aqueles que foram saciar a sede no rio, sem moderação e cautela, ao contrário dos escolhidos. Isso resultou na vitória sobre o inimigo (10).   

            Os três poetas prosseguem em sua marcha, e quando estão longe,  cada um meditando sem dizer palavra” (contemplando ciascun  sanza parola- v.132), ouvem outra voz lhes dizer: “Que andais pensando assim, vós três, sozinhos?” (“Che andate pensando sì voi sol tre?”- v. 133) o que faz Dante estremecer como um potro assustado.  Ele, admirado, afirma:  “e jamais se viu em fornalha/ vidro ou metal tão refulgente e vermelho/ como aquele que vi” (e già mai non si videro in fornace/ vetri o metalli sì lucenti e rossi,/ com’io vidi un /.../- v. 137-139). Trata-se, segundo os comentadores, do Anjo da Temperança, que indica aos poetas o caminho para cima a seguir: “daqui parte quem vai rumo à paz” (quinci si va chi vuole andar per pace- v. 141).

            Dante sente “o vento no meio/ da fronte, e também mover-se a pluma  (tal mi senti’ un vento dar per mezza/ la fronte, e ben senti’ mover la piuma- v.148-149) da asa do Anjo, subentendendo-se aqui que este apaga mais um P de sua testa, o do pecado da gula, cujo terraço ele está prestes a deixar, com os seus guias. Dante sente isso “como a brisa de maio, anunciadora/ de alvores, sopra e recende/ impregnada de erva e de flores( /.../ quale, annunziatrice de li albori,/ l’aura di maggio movesi e olezza,/ tutta impregnata da l’erba e da’ fiori- v. 145-147), mais uma comparação.

            O Canto conclui com as palavras do Anjo chamando de

/.../  “Beati cui alluma
tanto di grazia, che l’amor del gusto
nel petto lor tropo disir non fuma,

esuriendo sempre quanto è giusto!”   (XXIV, 151-154)

 Bem aventurados aqueles/ que são tão iluminados pela graça que o amor do gosto/ em seu peito não estimula desejo excessivo,

tendo sempre fome na medida justa!

            No quinto terraço (cf Canto XXII) a bem-aventurança evangélica lembrada referia-se à sede de justiça. Aqui, no sexto terraço dos gulosos, é a fome que é enfatizada, não por acaso...(11)


NOTAS

(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-p. 376

(2) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri- “La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini,  2013-  p. 613

(3) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.259.

(4) Id. ib., p.260.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 377

(6) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p. 261

(7) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 246

(8) SINCLAIR, John D.-- “The Divine Comedy of Dante Alighieri” with translation and comment by John D. Sinclair- II. Purgatorio-  New York: Oxford University Press, 1961- p.319

(9) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p. 261

(10) Id. ib, p. 262
(11) Id. ib, p. 262

Amos Nattini

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