PURGATÓRIO
Canto XXIV
Os versos
iniciais do Canto nos informam que todos avançavam em sua jornada, sem que a
conversa entre eles os retardasse: “mas
conversando, íamos depressa/ assim como
nau impelida por bom vento” (/.../ ma ragionando andavam
forte,/ sì come nave pinta da buon vento- v.2-3), uma comparação. Enquanto Estácio e
Virgílio iam à frente, Dante, acompanhado de Forese, seguia atrás. Ele retoma
sua fala a este amigo, interrompida no final do Canto anterior, afirmando o
seguinte sobre Estácio: “Essa sombra sobe
talvez mais lentamente/ do que o faria, por causa da outra alma” (/.../ “Ella
sen va sù forse più tarda/ che non farebbe, per altrui cagione- v. 8-9), quer dizer, por causa de Virgílio. Estácio, como vimos, já foi liberado do
Purgatório, mas se demora um pouco mais aí pelo privilégio de poder conversar
com o autor da “Eneida”...
G.Doré- Os gulosos |
Dante pergunta
a Forese onde está sua irmã Piccarda e indaga sobre alguns daqueles seus companheiros
de purgação, que o olham admirados, assim se referindo a eles:
e
l’ombre, che parean cose rimorte,
per le fosse de li occhi ammirazione
traean di me, di mio vivere accorte (XXIV, 4-6)
e as
sombras, que pareciam mortas duas vezes,/ pela covas dos olhos exprimiam
admiração/ ao dar-se conta de que eu estava vivo.
A impressão dessa
“segunda morte”, naturalmente, relacionava-se ao fato de elas estarem muito
magras, haja vista o sacrifício que assumiram (de bom grado) para compensar o
seu pecado da gula.
Forese responde
a Dante dizendo que Piccarda “triunfa
alegre,/ no alto Olimpo já, em sua coroa” (/.../ trïunfa lieta/ ne
l’alto Olimpo già di sua corona- v. 14-15), ou seja, ela já está no Paraíso. O irmão deles, Corso Donati
(ainda vivo e referido, indiretamente, mais adiante) a obrigou a quebrar seus
votos de freira e a se casar com uma pessoa indicada por ele, tendo em vista a
sua conveniência política (1).
Depois, Forese
começa a dar os nomes de diversos integrantes daquele bando de sombras, atendendo
ao pedido de Dante. Menciona: 1) Bonagiunta da Lucca, de que se falará abaixo; 2) alguém que “teve a Santa Igreja em seus braços:/ era de Tours, e seu jejum purga/ as
enguias de Bolsena e o vinho vernaccia” (ebbe la Santa Chiesa in
le sue braccia:/ dal Torso fu, e purga per digiuno/ l’anguille di Bolsena e la
vernaccia- v. 22-24); o fato de o papa ser considerado o “esposo” da Igreja (2), a
pessoa ser de Tours e ter tais hábitos alimentares na vida terrena o
identificam como o papa glutão Martinho IV;
3) Ubaldin de la Pila, que Dante vê “pela
fome, a mastigar em vão” (Vidi per fame a vòto usar li denti- v. 28). Este nobre florentino
era irmão do Cardeal Otaviano, que está
no Inferno entre os epicuristas (cf Inf., canto X), e pai do arcebispo Ruggieri
mencionado no Inf., canto XXXIII. Segundo Sayers, ele era um homem refinado com
talento para inventar novas receitas culinárias (3); 4) Bonifazio, “que pastoreou muita gente com seu báculo”
(che pasturò col rocco molte genti- v. 30), é, segundo os comentadores, Bonifazio Fieschi, antigo
arcebispo de Ravena, que -- como deixa subentendido um Dante irônico -- não só
pastoreava (= guiar ao pasto) seu rebanho no sentido figurado e espiritual...(4);
e 5) um senhor marquês (Messer Marchese degli Argugliosi), da cidade de Forlì,
na Romagna, que nunca se saciava, ao beber.
Destes, o que mais
chama a atenção de Dante é “o de Lucca,/
que mais parecia ter notícia de mim” (/.../ a quel da Lucca,/ che più
parea di me aver contezza- v. 35-36), o primeiro mencionado acima.
El
mormorava; e non so che “Gentucca”
sentiv’io
là, ov’ el sentia la piaga
de la
giustizia che sì li pilucca. (XXIV, 37-39)
Ele
murmurava; e não sei que “Gentucca”/ ouvi dali onde ele sentia a chaga/ da
justiça que assim o consumia.
Assim Dante
ouve da boca de Bonagiunta – do local do corpo mais associado à fome e sede, purgação
dos gulosos, por isso chamada “chaga da justiça” (piaga
de la giustizia)
(divina) -- a menção a essa pessoa. Bonagiunta
“prediz” que Gentucca é uma mulher que o fará prezar sua cidade, Lucca,
que antes criticara (Gentucca seria provavelmente uma pessoa bondosa que apoiou
Dante em seu exílio) (5). Depois Bonagiunta pergunta a Dante se ele é “aquele que iniciou/ as novas rimas,
começando por ‘Damas que tendes do amor entendimento’” ( /.../
colui che fore/ trasse le nove rime, cominciando/ ‘Donne ch’avete intelletto d’amore’- v. 49-51), verso da primeira canção da sua “Vita Nuova”, demonstrando assim que já havia reconhecido
Dante (cf v. 36). Este então lhe responde nos versos seguintes, indicando a importância
da sinceridade na nova escola poética de que é representante, a do “dolce stil novo” (v. 57):
E
io a lui: “I’ mi son un che, quando
Amor mi spira, noto, e a quel modo
ch’ e’ ditta dentro vo significando.” (XXIV, 52-54)
E eu a
ele: “Eu sou alguém que, quando/ Amor inspira, anoto, e do modo/ como me dita
dentro vou expressando”.
Bonagiunta da Lucca,
que também era poeta, reconhece aí “o nó” (il nodo- v. 55) que o prendia fora
dessa nova escola, assim como também prendia outros de seu grupo, mencionados,
como o Notário e Guittone (v.56). Segundo Sayers, o notário Giacomo da Lentino
e Guittone d’Arezzo pertenciam à chamada “escola siciliana de poesia” da
segunda metade do século XIII, influenciada pelos trovadores provençais e ligada,
durante certo tempo, à corte da Sicília. Posteriormente a escola tornou-se artificial e
racionalista, inclinando-se a ver no Amor uma paixão maligna. Por outro lado,
segundo a mesma autora, o “dolce stil nuovo” era a escola florentina que tinha
como modelo Guido Guinicelli de Bolonha. Ela “concebia o Amor, purificado de seus elementos sensuais, como uma força
de origem divina inseparável da verdadeira nobreza da alma, sublimadora das paixões”
(6). A essa escola pertencia, além de
Dante, seu amigo Guido Cavalcanti, Cino da Pistoia e Lapo Gianni de’ Ricevati. Bonagiunta reconhece que o fato de seu grupo não seguir de perto aquele que dita, i. e. o Amor, é o que distingue um
estilo do outro...
Na sequência,
toda a gente que ali estava – comparada a um bando de pássaros junto ao Nilo --
apressa o passo, “ligeira, pela magreza e
pelo desejo” (e per magrezza e per voler leggera- v.69), ansiosa pela sua
ascensão espiritual... Segue-se outra
comparação, a de Forese com um homem cansado, ofegante, que se deixa
ultrapassar por essa “grei santa” (santa
greggia- v. 73).
Ele pergunta a Dante: “Quando te verei de
novo?” (“Quando fia ch’io ti riveggia?”- v. 75) ao que o poeta
responde:
“Non so”, rispuos’ io lui, “quant’io mi
viva;
ma già non fïa il tornar mio tantosto,
ch’io non sia col voler prima a la
riva; (XXIV, 76-78)
“Não
sei”, lhe respondi, “quanto viverei;/ mas meu retorno não será tão cedo/ que eu
não chegue antes com o desejo a estas praias;
Segue-se então
uma crítica de Dante a sua cidade natal, Florença, “que dia a dia se despoja do bem” (di giorno in giorno più
di ben si spolpa- v.80) e se arruína. Forese “prevê” (pois em 1300 -- ano em que
transcorre a ação do poema -- ainda não ocorrera) a morte de “aquele que é mais culpado” (/.../
quei che più n’ha colpa- v. 82) disso, que é o seu
próprio irmão Corso Donati, não citado diretamente mas identificado pelos
comentadores em função do que Forese afirma nos versos que descrevem as
circunstâncias de sua morte (“vejo pela
cauda dum cavalo arrastado”- vegg’ïo a coda d’una bestia
tratto - v. 83
etc). Corso era o líder dos Guelfos Negros e foi a seu pedido que Bonifácio
VIII mandou Charles de Valois invadir Florença em 1300, o que provocou a
destituição dos Brancos do poder, o partido de Dante, e em consequência o
exílio deste. Em 1309, Corso caiu em desgraça pois descobriu-se que conspirava
para se assenhorear de Florença, e por isso foi condenado à morte pelos
próprios Negros. Ao fugir, morreu nas condições descritas por Dante (7). Forese afirma que ele irá “para o vale onde não se purga pecado” (inver’
la valle ove mai non si scolpa- v. 84), isto é, o Inferno.
Morte de Corso Donati (miniatura do séc. XIV) |
Assim,
cada um dos três irmãos Donati está num reino do Além diferente: Forese no
Purgatório, Piccarda no Paraíso e Corso irá para o Inferno. De acordo com Sinclair, “Os Donati eram uma antiga família de Guelfos nobres, rivais naturais,
portanto, da nova burguesia rica da república em crescimento”. Enquanto os
Negros eram liderados pelos Donati, os Brancos, “o partido dos rústicos”, o
eram pela família Cerchi, de prósperos comerciantes mas de origem humilde
(8). A propósito, a esposa de Dante
pertencia à família Donati.
Concluída sua
“predição” a respeito do irmão, Forese separa-se de Dante pois para ele “o tempo é caro/ neste reino” ( /.../
ché ‘l tempo è caro/ in questo regno, /.../- v. 91-92), e ele “perde muito” (/.../
io perdo troppo- v. 92) seguindo o amigo no mesmo passo. Ele tem pressa de escalar a
montanha do Purgatório, ou seja, de ascender espiritualmente, como os companheiros de seu bando que os
ultrapassaram. Para descrever sua partida, Dante faz mais uma comparação: Forese
se aparta dele
Qual esce alcuna volta di gualoppo
lo cavalier di schiera che cavalchi,
e va
per farsi onor del primo intoppo (XXIV, 94-96)
Como às
vezes sai a galope da formação/ o cavaleiro que cavalga contra o inimigo/ e avança
para conquistar a honra do primeiro embate
G.Doré- A árvore |
Olhando para
ele, que já estava longe, e ao fazer uma curva no monte, Dante se depara com “os ramos carregados de frutos e vivazes/ de
uma outra árvore” (/.../ i rami gravidi e vivaci/ d’un altro pomo, /.../- v. 103-104) e vê sombras debaixo
dela erguendo as mãos (para colher seus frutos, supõe-se, tendo em vista que
estão famintos...). Surge aqui nova comparação, bastante sugestiva. Essas
sombras são
quasi bramosi fantolini e vanni
che pregano, e ‘l pregato non responde,
ma, per fare esser ben la voglia acuta,
tien alto lor disio e nol nasconde. (XXIV, 108-111)
como
crianças ansiosas que em vão
rogam,
e o rogado não responde,/ mas para aguçar o seu desejo/ mantém alto o objeto
desejado, e não o esconde.
As sombras partem, desiludidas, e os poetas chegam à
arvore “que tantos rogos e lágrimas
rejeita” (che tanti prieghi e lagrime rifiuta- v. 114). Ouvem então uma voz
que os manda passar ao largo dela e informa que ela deriva da árvore “mais no alto, que foi mordida por Eva” (legno è
più sù che fu morso da Eva- v. 116). Esta é a “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal” do Paraíso
Terrestre situado no topo desta montanha do Purgatório, como se verá ao final da
sua escalada.
Virgílio,
Estácio e Dante atendem à determinação dessa voz misteriosa e avançam, comprimidos,
junto à encosta da montanha, a fim de não se aproximarem demais da árvore,
situada entre a encosta e a orla do terraço.
A voz estranha prossegue
citando dois exemplos de gula punida, um extraído da mitologia clássica e outro
da Bíblia, como é usual neste poema. O primeiro refere-se aos “malditos/ formados nas nuvens que,
empanturrados,/ combateram Teseu com o duplo peito” (humano e equino) (/.../
i maladetti/ nei nuvoli formati, che, satolli,/ Teseo combatter co’ doppi
petti- v.121-123). Nessa linguagem indireta, Dante está mencionando os centauros,
filhos de Ixíon e uma nuvem, a quem Zeus deu a forma de Hera, desejada por Ixíon.
Na festa de casamento do rei dos lapitas, os centauros se embriagaram e
tentaram violar a noiva e outras mulheres mas Teseu resgatou a noiva e lutou
contra eles, auxiliado pelos lapitas, e os derrotou (9).
O segundo
exemplo citado de gula punida é extraída do livro dos Juízes (VII- 1-7) e
refere-se aos “hebreus que se mostraram moles bebendo” (/.../
li Ebrei ch’al ber si mostrar molli- v.124) e por isso não foram escolhidos para compor o exército de Gedeão
que atacaria os madianitas. Ele, seguindo as instruções do Senhor, excluiu aqueles
que foram saciar a sede no rio, sem moderação e cautela, ao contrário dos escolhidos.
Isso resultou na vitória sobre o inimigo (10).
Os três poetas
prosseguem em sua marcha, e quando estão longe,
“cada um meditando sem dizer
palavra” (contemplando ciascun
sanza parola- v.132), ouvem outra voz lhes dizer: “Que andais pensando assim, vós três, sozinhos?” (“Che
andate pensando sì voi sol tre?”- v. 133) o que faz Dante estremecer como um potro
assustado. Ele, admirado, afirma: “e
jamais se viu em fornalha/ vidro ou metal tão refulgente e vermelho/ como
aquele que vi” (e già mai non si videro in fornace/ vetri o metalli sì lucenti e
rossi,/ com’io vidi un /.../- v. 137-139). Trata-se, segundo os comentadores, do Anjo da Temperança, que
indica aos poetas o caminho para cima a seguir: “daqui parte quem vai rumo à paz” (quinci si va chi vuole
andar per pace- v. 141).
Dante sente “o vento no meio/ da fronte, e também
mover-se a pluma” (tal mi
senti’ un vento dar per mezza/ la fronte, e ben senti’ mover la piuma- v.148-149) da asa do Anjo,
subentendendo-se aqui que este apaga mais um P de sua testa, o do pecado da
gula, cujo terraço ele está prestes a deixar, com os seus guias. Dante sente
isso “como a brisa de maio, anunciadora/
de alvores, sopra e recende/ impregnada de erva e de flores” ( /.../
quale, annunziatrice de li albori,/ l’aura di maggio movesi e olezza,/ tutta
impregnata da l’erba e da’ fiori- v. 145-147), mais uma comparação.
O Canto conclui
com as palavras do Anjo chamando de
/.../
“Beati cui alluma
tanto
di grazia, che l’amor del gusto
nel petto lor tropo disir non fuma,
esuriendo sempre quanto è giusto!” (XXIV, 151-154)
“Bem aventurados aqueles/ que são tão
iluminados pela graça que o amor do gosto/ em seu peito não estimula desejo
excessivo,
tendo
sempre fome na medida justa!”
No quinto
terraço (cf Canto XXII) a bem-aventurança evangélica lembrada referia-se à sede
de justiça. Aqui, no sexto terraço dos gulosos, é a fome que é enfatizada, não
por acaso...(11)
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984-p. 376
(2) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri-
“La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini,
2013- p. 613
(3) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”. Translated by Dorothy L.
Sayers. Penguin Classics, 1963, p.259.
(4) Id.
ib., p.260.
(5) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 377
(6) SAYERS,
Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”, op cit, p. 261
(7)
CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 246
(8) SINCLAIR, John D.--
“The Divine Comedy of Dante Alighieri” with translation and comment by John D.
Sinclair- II. Purgatorio- New York:
Oxford University Press, 1961- p.319
(9) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”, op cit, p. 261
(10) Id. ib, p. 262
(11) Id. ib, p. 262
Amos Nattini |
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