terça-feira, 29 de março de 2016

Canto XXV


PURGATÓRIO


Canto XXV


            Pelas referências astrológicas dos versos iniciais deste Canto, Dante nos informa, indiretamente, que já era 14 horas daquele dia (terça-feira de Páscoa). “Hora era em que o subir não admitia demora” (Ora era onde ‘l salir non volea storpio- v.1), pois a tarde avançava e eles deviam aproveitar a luz do dia, uma vez que à noite, como vimos, não era possível subir a montanha. Os três poetas prosseguem em sua jornada e entram por uma passagem, “um na frente do outro subindo a escada” (uno innanzi altro prendendo la scala- v. 8). Dante faz então aqui uma comparação delicada. Deseja fazer uma pergunta mas se interrompe no último momento. Assim, ele é

/.../  quale il cicognin  che leva l’ala
per voglia di volare, e non s’attenta
d’abbandonar lo nido, e giù la cala    (XXV, 10-12)

/.../  como a cegonhinha que ergue a asa/ por vontade de voar, mas não se atreve/ a abandonar o ninho, e a abaixa

            Virgílio, porém, percebe essa sua vontade de perguntar, e enquanto caminham rapidamente manda-o disparar seu “arco do falar” (l’arco del dir- v.18).

Allor sicuramente apri’ la bocca
e cominciai:  “Come si può far magro
là dove l’uopo di nodrir non tocca?”   (XXV, 19-21)

Então, mais seguro, abri a boca/ e perguntei: “Como se pode emagrecer/ ali onde não há necessidade de nutrir-se?”. 

            Virgílio cita dois exemplos para facilitar sua compreensão dessa matéria. O primeiro refere-se ao caso de Meleagro, da mitologia grega. O poeta pede para Dante lembrar-se de como ele se consumiu (v. 22-24). Nas notas a este verso, fica-se sabendo que as Parcas -- “divindades que presidiam os destinos da humanidade”, já mencionadas no canto XXI -- haviam dito à mãe do herói grego Meleagro que ele viveria o tempo necessário para que uma tora se queimasse. Sabendo disso, ela retira a tora do fogo e a esconde. Muito tempo depois, revoltada com o fato de que o filho matara dois irmãos dela, a mãe a devolve ao fogo (1). Dante estabelece assim uma correspondência entre o fato de Meleagro consumir-se por uma determinação sobre-humana e o emagrecimento dos que purgam o pecado da gula. 

            No segundo exemplo Virgílio pede para Dante pensar no espelho:  e se pensasses como, ao vosso movimento,/ move-se dentro do espelho vossa imagem” (e se pensassi come, al vostro guizzo,/ guizza dentro a lo specchio vostra image - v.25-26).  Aqui, a correspondência é entre a imagem do espelho e as dos que estão no Purgatório, sombras que refletem por sua vez os corpos que tiveram anteriormente, na vida terrena... 

            Mas essas considerações de Virgílio são só introdutórias pois quem de fato responderá a pergunta de Dante será Estácio, atendendo solicitação de Virgílio, certamente porque ele representa a razão associada à fé. Estácio era um pagão que se tornou cristão e, como vimos, já cumpriu o seu período no Purgatório e está prestes a entrar no Paraíso. Na sua resposta -- um longo discurso, que vai do v. 34 ao 108 – Estácio, segundo os comentadores, incorpora tanto as ideias científicas da época, baseadas em Aristóteles, como as teológicas, em conformidade com a doutrina de S. Tomás de Aquino. A elas, Dante incorpora as suas próprias ideias (2).

O triunfo de S.Tomás sobre Averroes (séc. XV)

            Estácio inicia pelo processo da origem de um ser humano. Afirma que parte do ”sangue perfeito” (Sangue perfetto- v. 37) que corre nas veias “adquire no coração a virtude de dar forma / a todos os membros humanos” (prende nel core a tutte membra umane/ virtute informativa, /.../-  v. 40-41). Depois, tal “sangue” (trata-se na realidade do sêmen) “desce para onde é melhor/ calar do que nomear(/.../ scende ov’ è più bello/ tacer che dire; /.../- v. 43-44) (o órgão genital masculino); “e dali depois goteja/ sobre outro sangue (o da mulher) em vaso natural” (o útero) (/.../ e quindi poscia geme/ sovr’ altrui sangue in natural vasello- v. 44-45). A união desse “sangue perfeito” com o sangue feminino origina a vida “qual de uma planta” (qual d’uma pianta- v. 53) (vida vegetativa).  E ele continua a agir: “tanto opera depois que já se move e sente,/ como esponja marinha” (tanto ovra poi, che già si move e sente,/ come spungo marino; /.../- v. 55-56) (vida sensitiva ou animal).  Então, diz Estácio para Dante:

Ma come d’animal divegna fante,
non vedi tu ancor: quest’ è tal punto,
che più savio di te fé già errante,

sì che per sua dottrina fé disgiunto
da l’anima il possibile intelletto,
perché da lui non vide organo assunto.    (XXV, 61-66)

Mas como animal torna-se falante/ não vês ainda: este é um ponto tal/ que fez errar alguém mais sábio do que tu
pois na sua doutrina separou/ o “intelecto possível” da alma, / por não ver nenhum órgão assumi-lo.

            O “intelecto possível” é a expressão escolástica para a razão humana segundo Ciardi (3).

            Aqui Dante critica o erro do filósofo árabe-espanhol Averroes (“alguém mais sábio do que tu”) para quem os seres humanos não contavam com um intelecto unido à alma (como acreditava o católico Dante) mas compartilhavam -- só enquanto viviam -- um intelecto universal, comum a todos e imortal. Quando a pessoa morria, a alma individual morria com ela (4). Averroes portanto não aceitava a imortalidade da alma individual.

            Na sequência, Estácio explica que o ser animal torna-se humano quando o “Motor Primeiro” (motor primo- v.70) (Deus), “sopra/ novo espírito” (spira/ spirito novo- v. 71-72) no feto, tornando-o “uma só alma/ que vive e sente e em si gira(/.../ e fassi un’alma sola,/ che vive e sente e sé in sé rigira- v. 74-75), vale dizer, reúne em si a vida vegetativa, animal e racional.

            Essa intervenção direta de Deus para a criação de cada indivíduo é associada por Estácio ao calor do Sol sobre a videira:  

E perché meno ammiri la parola,
guarda il calor del sol che si fa vino,
giunto a l’omor che de la vite cola.   (XXV, 76-78)

E para que menos te admires das minhas palavras/ olha o calor do Sol que se faz vinho,/ junto à seiva que da videira escorre. 

            Prosseguindo, Estácio explica que “Quando Laquésis fiou todo o seu linho” (Quando Làchesis non ha più del lino- v. 79), quer dizer, quando a pessoa morre (pois Laquésis -- uma das três Parcas -- é responsável pelo tecido da vida) a alma separa-se do corpo e leva consigo tanto as faculdades humanas (relativas à vida vegetativa e animal), que “ficam mudas” (v. 82), quanto as divinas (memória, inteligência e vontade- v. 83), que ficam “muito mais agudas do que antes(/.../ molto più che prima agute- v. 84).  A alma liberta do corpo já sabe qual é o seu destino. “Sem deter-se, por si mesma ela cai/ prodigiosamente em uma das duas margens” (Sanza restarsi, per sé stessa cade/ mirabilmente a l’una de le rive-  v. 85-86), subentendendo-se aqui a margem do rio Aqueronte, que leva ao Inferno, ou a do rio Tibre, que leva ao Purgatório (5).           

            Nesse lugar, “a virtude formativa raia em torno,/ assim como fez ao formar os membros vivos” (do feto) (la virtù formativa raggia intorno/ così e quanto ne le membra vive- v. 89-90)

E come l’aere, quand’ è ben pïorno,
per l’altrui raggio che ‘n sé si reflete,
di diversi color diventa addorno    (XXV, 91-93)

E como o ar, quando está bem úmido,/ por outro raio que nele se reflete,/ se adorna com diversas cores

a alma que ali parou faz o ar tomar a forma correspondente ao seu corpo (um corpo aéreo), que Dante compara, como se vê nos versos 91-93, à formação do arco-íris.

            Essa nova forma que assume o espírito, chamada “sombra”, conta com todos os órgãos dos sentidos, “inclusive a vista” (infino a la veduta- v. 102). E cada uma delas fala e ri, suspira e chora, tem desejos e outros sentimentos...

            Assim se encerra o longo discurso de Estácio em resposta à pergunta de Dante.

            Os três poetas chegam por fim ao último terraço, e conseguem com dificuldade andar ali, haja vista o fogo que saía do flanco da montanha. Mas um vento que soprava para o alto, repelia um pouco as chamas e abria uma via para eles, que seguiram por ela um a um, temendo o fogo de um lado e cair no precipício, do outro.  

G.Doré- O sétimo círculo 
            Esse terraço é o dos luxuriosos, o que é indicado pelo fogo, símbolo das paixões humanas. Virgílio então se manifesta nestes termos ao seu discípulo, cujo sentido alegórico é destacado por Ciardi, tendo em vista a facilidade com que os seres humanos podem incorrer no pecado da luxúria (6):   

Lo duca mio dicea: “Per questo loco
si vuol tenere a li occhi stretto il freno,
però ch’ errar potrebbesi per poco.”    (XXV, 118-120)

E o meu guia dizia: “Neste lugar/ deve-se ter os olhos sob estreito freio/ pois pode-se errar por muito pouco”.

G.Doré- O sétimo círculo 
          
G.Doré- O sétimo círculo- Os luxuriosos

           Depois, seguindo o padrão de outros cantos do Purgatório, são citados exemplos da virtude oposta ao pecado purgado no terraço em que Dante está. Assim ele ouve um hino (“Summae Deus clementïae”) da Igreja “cuja terceira estrofe pede a ajuda de Deus para combater as tentações da carne” (7) sendo cantado pelos penitentes e vê “espíritos pela chama andando” (e vidi spirti per la fiamma andando- v. 124). Concluído esse hino, eles gritam “Virum non cognosco” (v.128) (que significa “Não conheço varão”) para lembrar as palavras pronunciadas por Maria quando o anjo da Anunciação lhe comunicou que seria mãe. Recomeçam então a cantar o mesmo hino. Ao concluí-lo novamente, lembram outro exemplo de castidade, agora extraído da mitologia. Gritam: “No bosque/ permaneceu Diana, e dele expulsou Hélice,/ que provara o veneno de Vênus” (“Al bosco/ si tenne Diana, ed Elice caccione/ che di Venere avea sentito il tòsco”- v.130-132) (a jovem Hélice foi expulsa de seu séquito pela casta Diana porque deixou-se seduzir por Jove...) (8). Na vez seguinte, ao concluir o hino, os penitentes lembram esposas e maridos castos de um matrimônio virtuoso.  É dessa forma -- andando pelo fogo (sua cura), entoando o hino e lembrando exemplos de castidade (seu alimento) --  que os luxuriosos tratam a sua ferida, como dizem os versos finais do Canto...


NOTAS


(1) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.385- “Glossary”.  Cf também  MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-p. 380

(2) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.257-260.  Cf. também SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p. 268-270.

(3) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 258.

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 382

(5) Id. ib, p. 382-383.

(6) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p.260-261.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.383.

(8) Id. ib, p. 383.


Amos Nattini
 
Salvador Dalí




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