terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Canto XIV

PURGATÓRIO


Canto XIV


Amos Nattini
           
            Os versos iniciais desse Canto reproduzem o diálogo entre dois penitentes (do pecado da inveja) a respeito de Dante. Ambos estão com as pálpebras costuradas, mas “sentem” a presença dele e  seu guia ali. O primeiro pergunta:  

“Chi è costui che ‘l nostro monte cerchia
prima che morte li abbia dato il volo,
e apre li occhi a sua voglia e coverchia?”   (XIV, 1-3)

“Quem é este que o nosso monte rodeia/ antes que a morte lhe tenha dado o voo,/ e abre e fecha os olhos à vontade?”

            (Note-se a personificação da morte e a imagem do voo (da alma)  para expressar a passagem para o outro mundo).  

            A essa pergunta o segundo espírito responde não saber, e pede ao primeiro que pergunte a Dante quem é e de onde vem. E ele faz isso na sequência. Dante atende à sua curiosidade, informando-lhes que ele vem das margens de “um rio que nasce em Falterona” (un fiumecel che nasce in Falterona- v.17), na Toscana, e se estende por uma centena de milhas:

Di sovr’ esso rech’io questa persona:
dirvi ch’i’ sia, saria parlare indarno,
ché ‘l nome mio ancor molto non suona.   (XIV, 19-21)

De suas margens trago eu este corpo:/ dizer-vos quem sou seria falar em vão,/ pois meu nome ainda não soa muito.  

            (O “ainda” – ancor - mostra que Dante estava convencido de sua grandeza literária, e revela seu orgulho disso)

            Assim, ele não declina seu nome, nem o do rio. Mas neste caso o primeiro espírito logo reconhece ser o Arno (que banha Florença, a cidade natal do poeta), enquanto o segundo, intrigado, pergunta pela razão dele ter escondido o nome do rio “como fazemos com as coisas horríveis” (pur com’om fa de l’orribili cose- v. 27).  Então o primeiro espírito responde não saber qual a razão, mas acha “justo que o nome de tal vale pereça” (ma degno/ ben è che ‘l nome di tal valle pèra- v.29-30), uma vez que desde seu início até onde o rio Arno se lança no mar,

vertù così per nimica si fuga
da tutti come biscia, o per sventura
del luogo, o per mal uso che li fruga    (XIV, 37-39)

da virtude, considerada inimiga, se foge/ como se fosse serpente, ou por desventura/ do lugar,ou porque o mau costume os incite a isso

            Implicitamente, ele considera que Dante não cita o nome do rio por que tem vergonha do comportamento dos habitantes de suas margens. Estes “mudaram tanto a sua natureza” (ond’ hanno sì mutata lor natura- v.40) (quer dizer, no passado eram melhores que os de hoje) “que pareciam estar no pasto de Circe” (che par che Circe li avesse in pastura- v. 42). Circe é a  feiticeira da mitologia clássica que transformava os homens em animais. Foi com ela que se envolveu Ulisses, quando retornava de Troia. É mencionada não só na “Odisseia” mas também na “Eneida” e outras obras  (1).  

            Essa referência clássica serve para introduzir um tratamento dado ao rio como um animal (cf v. 48: “desdenhoso deles desvia o focinho”: e da lor disdegnosa torce il muso) na descrição de seu percurso descendente na Toscana, desde seu início no monte Falterona, integrante da cadeia dos Apeninos, até lançar-se no mar Tirreno. Também os habitantes de suas margens são assim considerados. Vivem ali porcos (porci- v.43), os residentes na região do Casentino; cães (botoli- v. 46), associados aos habitantes de Arezzo, animais esses citados na divisa da cidade; lobos (lupi- v.50), os avarentos florentinos e por fim raposas (volpi- v.53) ardilosas, os habitantes de Pisa (2). Como se vê, o poeta relaciona o pecado, ou a vileza moral, a animais irracionais, que na hierarquia tomista dos seres, adotada por ele, está abaixo do grau correspondente ao ser humano, o que significa que o homem se degrada ao levar vida pecaminosa.

            Prosseguindo, o espírito que assim se manifesta faz uma previsão que interessa a Dante, que ele sabe quem é embora não o diga, pois afirma: “e bom será que este se lembre no futuro” (e buon sarà costui, s’ancor s’ammenta- v. 56). Mas ele se dirige, na realidade, ao segundo espírito, que ali está:   

Io veggio tuo nepote che diventa
cacciator di quei lupi in su la riva
del fiero fiume, e tutti li sgomenta.  (XIV, 58-60)

Vejo teu neto tornar-se/ caçador dos lobos que estão nas margens/ do fero rio, e a todos amedronta.

            Quem fala só vai se identificar no v. 81. Trata-se de Guido del Duca, que assim reconhece o seu pecado:

Fu il sangue mio d’invidia sì rïarso,
che se veduto avesse uom farsi lieto,
visto m’avresti di livore sparso.    (XIV, 82-84)

O sangue meu tanto ardeu de inveja/ que se eu visse um homem alegrar-se/ tu me verias empalidecer.       

            Segundo o comentador, Guido foi um gibelino que viveu na 1ª metade do século XIII exercendo o cargo de magistrado em várias cidades da Itália central (3). Seu companheiro, o segundo espírito, “que se voltara/ para ouvir, turvar-se e entristecer-se” (/.../ che volta/ stava a udir, turbarsi e farsi trista- v.70-71) com suas palavras, é assim identificado:

Questi è Rinier; questi è ‘l pregio e l’onore
de la casa da Calboli, ove nullo
fatto s’è reda poi del suo valore.   (XIV, 88-90).

Este é Rinier; é a glória e a honra/ da casa de Calboli, de quem/ ninguém herdou depois o seu valor.

            Guido, embora elogie o avô, faz uma crítica dura a seu neto, Fulcieri da Calboli, cuja crueldade “priva muitos da vida, e a si mesmo da honra” (molti di vita e sé di pregio priva- v. 63). Ele era o podestà (principal magistrado) de Florença em 1303, ligado aos guelfos negros. Perseguiu e matou muitos inimigos políticos, guelfos brancos (o partido de Dante) e gibelinos (4). Mais uma vez, como se vê, Dante usa o artifício de profetizar algo que, de fato, já tinha acontecido, no período compreendido entre o ano em que ocorre a ação do poema (1300) e o de sua elaboração...  

            Na segunda parte da sua extensa manifestação, Guido deixa de criticar a Toscana para se concentrar na Romagna, de onde ele e seu companheiro são nativos.  Essa região italiana é aquela delimitada no v.92 (um polissíndeto): “entre o Pó e os montes e a marinha e o Reno” (tra ‘l Po e ‘l monte e la marina e ‘l Reno). Nessas terras o sangue dos habitantes se despojara “da bondade necessária à verdade e à vida honesta” (del ben richesto al vero e al trastullo- v. 93) e agora estavam cheias de “rebentos venenosos” (venenosi sterpi- v. 95). Guido invoca uma série de nomes respeitáveis do passado nativos da região -- sobre os quais os comentadores têm pouco a dizer, pois os detalhes de suas vidas se perderam nos abismos do tempo -- lamentando a situação atual: “Oh, romanhóis, tornados em bastardos!” (Oh Romagnuoli tornati in bastardi!- v. 99). E afirma inclusive que lembrar alguns desses nomes o leva às lágrimas. Mas Guido também se rejubila ao constatar que na região – “lá onde o corações se fizeram tão maus” (là dove i cuor son fatti sì malvagi- v. 111)--  uma cidade como Bagnacaval já “não procria mais” (che non rifiglia- v.115) , quer dizer, a família de seus senhores já se extinguiu (5). Mas se aborrece com Castrocaro e Conio, pois nestas cidades as famílias dos senhores que as controlam ainda têm  descendentes varões.  O diálogo entre Dante e Guido, na realidade mais um monólogo do segundo, se encerra quando Guido diz assim:

Ma va via, Tosco omai; ch’ or mi diletta
troppo di pianger più che di parlare,
sì m’ ha nostra ragion la mente stretta.   (XIV, 124-126)

Mas vai-te, toscano; ora me agrada/ muito mais chorar do que falar,/ tanto me entristeceu nossa conversa.

            Depois disso, Dante afirma que ele e seu mestre prosseguiram sua marcha até que

folgore parve quando l’aere fende,
voce che giunse di contra dicendo:
“Anciderammi qualunque m’apprende”   (XIV, 131-133)

uma voz, que parecia um raio quando fende o ar/ ressoou diante de nós, dizendo:/ “Me matará, qualquer um que me encontre”.

            Segundo as notas a esses versos, tais palavras foram pronunciadas por Caim, após matar seu irmão Abel, conforme a Bíblia. Certamente, bastaria ao leitor/ouvinte contemporâneo de Dante, mais familiarizado com a Bíblia, a citação dessas palavras para que ele logo as associasse a Caim, o que não ocorre com o leitor de hoje... Logo depois, os poetas ouvem outra voz, “que pareceu um trovão seguindo outro:/ “Eu sou Aglauro que me tornei pedra” (che somigliò tonar che tosto segua:/ “Io sono Aglauro che divenni sasso”- v.138-139). Aglauro, personagem da mitologia clássica, é uma das filhas do rei de Atenas que invejou sua irmã, Erse, por ter despertado o amor de Mercúrio. Como ela procurasse impedir os encontros deles, foi punida pelo deus, que a transformou em pedra (6).  São dois casos de inveja castigada, um de homem e outro de mulher, que ilustram assim a punição do pecado purgado na 2ª cornija. Dante continua abeberando-se nas fontes da Bíblia e da mitologia clássica para criar tais exemplos ilustrativos do que deseja expressar em seus versos.  

Mercúrio e Erse (vaso do séc. IV a. C.)
             Esses castigos deveriam ser um freio para a conduta dos homens, diz Virgílio a Dante, na conclusão do Canto. Mas eles preferem morder a isca do “antigo adversário” (l’antico avversaro- v.146), o Diabo, que os puxa para si (cf mais uma metáfora, associada a um espécime da fauna...). E finaliza assim:   

Chiamavi ‘l cielo e ‘ntorno vi si gira,
mostrandovi le sue bellezze etterne,
e l’occhio vostro pur a terra mira;
onde vi batte chi tutto discerne.   (XIV, 148-151)

Chama-vos o céu e em torno a vós gira,/ mostrando as suas belezas eternas,/ e todavia vosso olhar só a terra mira;/ assim vos pune aquele que tudo julga.



NOTAS


(1) ZIMMERMAN, J.E.- “Dictionary of Classical Mythology” . Bantam Books, 1985, p.63

(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p. 349-350

(3) Id. ib. p. 350

(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 156; CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.141.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 351.

(6) Id., ib, p. 352; CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p 144.


Salvador Dalí

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Canto XIII



PURGATÓRIO


Canto XIII

           
            Os dois poetas chegam à segunda cornija que cinge a  montanha do Purgatório. Como esta tem forma de cone, não é de admirar que “seu giro se complete antes” (v. 6) que o da primeira.  Quanto mais altas, as cornijas vão se tornando menos amplas. Nesta segunda, diferentemente da anterior, não há nada esculpido na encosta ou no pavimento da via. Virgílio não encontra ninguém a quem pedir orientação (ele não conhece o Purgatório, só esteve antes no Inferno). Decide orientar-se pelo Sol, conforme esta apóstrofe (no poema, o Sol é associado a Deus):

“O dolce lume a cui fidanza i’ entro
per lo novo cammin, tu ne conduci,”
dicea, “come condur si vuol quinc’ entro.   (XIII, 16-18)

“Ó doce lume, em cuja confiança eu entro/ nesse novo caminho, conduz-nos”,/ dizia ele, “pois aqui se requer ser conduzido”.    

            Mais adiante, afirma: “sejam sempre teus raios nossos guias” (esser dien sempre li tuoi raggi duci- v.21).

            Depois de andar uma milha, os dois começam a ouvir os espíritos  que por ali voam fazendo “convites gentis à mesa do amor” (a la mensa d’amor cortesi inviti- v. 27), quer dizer, lembrando certas situações em que se manifestou o amor ao próximo, indicadas por três frases, citadas nos versos, extraídas da Bíblia ou da literatura clássica. As situações são deixadas apenas subentendidas por Dante-autor, mas explicitadas pelos comentaristas. O objetivo da sua evocação é enfatizar a virtude oposta à inveja, em que incorreram os penitentes que aqui estão. O pecado da inveja abrange não só a tristeza e o rancor pelo sucesso da outra pessoa como também a alegria pelo infortúnio dela...  

Giotto- As bodas de Caná. Capela Scrovegni, Pádua. 

A primeira das frases ouvidas pelos dois poetas é em latim-- “Vinum non habent” (“Eles não têm vinho”) (v.29), dita por Maria nas bodas de Caná. Isso fez com que Cristo realizasse seu primeiro milagre – a transformação de água em vinho – atendendo assim a esse ato de amor (caridade) de sua mãe (1). A segunda frase ouvida é “Eu sou Orestes” (I’ sono Oreste- v.32) e refere-se à grande amizade entre Orestes e Pilades, relatada por Cícero. Orestes fora condenado à morte. Na hora de execução da sentença, Pilades, para salvar a vida do amigo, disse ser ele Orestes, no que foi contestado pelo verdadeiro, que fez idêntica afirmação, a fim de que o amigo não morresse em seu lugar (2). A terceira frase que eles ouvem “Amai quem vos fez mal(“Amate da cui male aveste”- v. 36), pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha (3), recomenda aos cristãos ir além do mero amor ao próximo, amando até os próprios inimigos.  

            Virgílio explica a Dante que

/.../ “Questo cinghio sferza
la colpa de la invídia, e però sono
tratte d’amor le corde de la ferza.   (XIII, 37-39)

/.../ “Este giro açoita/ o pecado da inveja; mas as cordas/ do chicote são trançadas pelo amor ”.

            E o manda fixar bem o olhar para ver que há ali, ao longo da parede rochosa, muita gente sentada. Dante então “viu as sombras com mantos/ da mesma cor da pedra” (/.../ e vidi ombre con manti/ al color de la pietra non diversi- v.47-48). Aproximando-se mais, ouvem-nos clamarem a Maria, para que rogue por eles, e também aos Santos (trata-se da Litania de Todos os Santos, segundo os comentaristas) (4). 


G. Doré- Os invejosos
             Na sequência, Dante se choca com o que vê, e isso o leva às lágrimas (v. 57): as sombras, sentadas, lhe “pareciam estar cobertas de vil cilício” (5) (Di vil ciliccio mi parean coperti- v. 58), umas apoiadas nas outras ou na encosta da montanha, e se agrupavam ali como cegos a mendigar junto às igrejas em dias de perdão(v.62) (6), pois tinham as pálpebras costuradas com fio de ferro:

E come a li orbi non approda il sole,
così a l’ombre quivi, ond’ io parlo ora,
luce del ciel di sé largir non vole;

ché a tutti un fil di ferro i cigli fóra
e cusce sì, come a sparvier selvaggio
si fa però che queto non dimora.    (XIII, 67-72)

E como o sol não chega até os cegos,/ também aqui, às sombras de quem eu falo agora,/ a luz do céu não quer mostrar-se;
pois a todos um fio de ferro fura as pálpebras/ e as costura, assim como se faz com o gavião selvagem/ que se recusa a ficar quieto.   

             Aplica-se então, também no Purgatório, a “lei do contrapasso” já aplicada no Inferno: a correspondência da punição com o pecado cometido. Na primeira cornija, os orgulhosos, que mantiveram em vida postura altaneira, são agora obrigados a olhar para o chão, devido ao peso que carregam. E os invejosos desta segunda cornija, que incorreram em seu pecado ao ver o sucesso (ou o insucesso) dos outros -- invídia, inveja, deriva de vedere ou “ver” (7) --,  não podem enxergar, enquanto durar o período de purgação. Dante compara a situação deles à do gavião durante seu adestramento, quando se adotava a técnica de costurar-lhe as pálpebras, conforme a falcoaria da época.  

            Virgílio estava do lado “da cornija onde se pode cair”, que não contava com nenhuma proteção, e Dante do lado dos penitentes, junto à encosta:

da l’altra parte m’ eran le divote
ombre, che per l’ orribile costura
premevan sì, che bagnavan le gote.   (XIII, 82-84)

do meu outro lado estavam as devotas sombras,/ que, pela horrível costura,/ choravam tanto que banhavam as faces  

            Ele então, autorizado por seu guia, dirige-se a essa “gente segura /.../ de ver o alto lume” (/.../ “O gente sicura /.../ di veder l’alto lume- v.85-86), perguntando se há entre eles alguma alma latina (=italiana), pois “se eu souber, talvez isso possa lhe ser útil” (e forse lei sarà buon s’i’ l’ apparo- v.93), quer dizer, poderá significar orações que abreviarão seu tempo no Purgatório...   

G.Doré- Sapia

            Responde-lhe alguém, que será identificado mais adiante como Sapia, nestes termos, reformulando a pergunta de Dante, para indicar que, na visão cristã, todos na terra são exilados da “pátria (ou cidade) verdadeira”, que é o céu:

“O frate mio, ciascuna è cittadina
d’una vera città; ma tu vuo’ dire
che vivesse in Italia peregrina.”    (XIII, 94-96)

Ó irmão meu, toda alma é cidadã/ da cidade verdadeira; mas tu queres dizer/ uma que vivesse exilada na Itália”.

            Dante vê uma alma que se destaca das outras, tem a aparência de quem espera, “o queixo levantava como um cego” (lo mento a guisa d’ orbo in sù levava- v. 102) (note-se a força visual desse verso, como ocorre com outros, desse Canto, que caracterizam os penitentes como cegos). Ela é de fato quem lhe respondeu antes. Identifica-se a partir do v. 106, em que diz que é de Siena. E mais adiante:

Savia non fui, avvegna che Sapìa
fossi chiamata, e fui de li altrui danni
più lieta assai che di ventura mia.     (XIII, 109-111)

Sábia não fui, embora Sapia/ fosse chamada, e me regozijei muito mais/ com os males alheios  do que com a minha boa fortuna.

(No v. 109, como se vê, Dante explora a semelhança formal entre o nome dela e o adjetivo).

            Ela fala mais sobre si, para que seu interlocutor veja como foi insana, “já descendo o arco de meus anos” (già discendendo l’arco d’i miei anni- v. 114). Ela pediu a Deus pela derrota de seus conterrâneos, gibelinos de Siena, então em luta “perto de Colle” (v.115), e regozijou-se com ela, quando ocorreu, deixando de temer Deus depois disso.  Nesses conterrâneos incluía-se Provenzan Salvani, mencionado no canto XI, de quem era tia e cuja ascensão ao poder invejara. Provenzan foi morto pelos guelfos florentinos na batalha de Colle di Val d’Elsa em 1269 (8).  

            Sapia reconciliou-se com Deus só no fim da vida. Ainda estaria no Antepurgatório se não fosse lembrada nas “santas orações” (sante orazione- v.128) de Pier Pettinaio. O verso de Dante apenas o menciona, mas o comentarista explica que ele era um comerciante de pentes, residente em Siena, com fama de santidade ao morrer  (9).

            No final do Canto, Sapia pergunta quem Dante é, que “tens os olhos soltos”,/ como creio, e falas respirando” (/.../ porti li occhi sciolti,/ sì com’ io credo, e spirando ragioni”- v. 131-132). Ele lhe diz que ainda é vivo, e que retornará para o Purgatório. Afirma que teme mais o tormento do primeiro terraço do que o deste em que estão, quer dizer, Dante reconhece em si culpa maior pelo pecado do orgulho do que da inveja.

            Como ainda retornará ao mundo dos vivos, ele diz a Sapia -- esse “espírito eleito” (spirito eletto- v. 143) – que ela deve pedir a ele se quiser “que eu mova / os mortais pés por ti na terra(/.../ ch’ i’ mova/ di là per te ancor li mortai piedi-  v. 143-144). Ela então pede as suas orações e também que ele -- se alguma vez pisar o solo da Toscana -- procure reabilitar-lhe o nome junto aos seus parentes. Dante os  encontrará “entre aquela gente vã” (/.../ tra quella gente vana- v. 151) de Siena (qualificativo justificado por dois episódios frustrados citados nos versos, o do porto de Talamone e o do rio subterrâneo Diana, em que a população dessa cidade depositou suas esperanças). A propósito, esse mesmo comentário depreciativo a respeito do povo da cidade rival de Florença já ocorreu no Canto XXIX do Inferno.   



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.347

(2) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.128

(3) Id. ib., p.128

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 348.   

(5) Cilício: “Pequena túnica ou cinto ou cordão, de crina, de lã áspera, às vezes com farpas de madeira, que, por penitência, se trazia vestido diretamente sobre a pele”. (AURÉLIO Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986- 2ª ed., rev. e ampl., p. 405).

(6) Segundo MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 348, esses “dias de perdão” eram dias festivos da Igreja, em que indulgências eram vendidas.

(7) SINCLAIR, John D.-- “The Divine Comedy of Dante Alighieri” with translation and comment by John D. Sinclair- II. Purgatorio-  New York: Oxford University Press, 1961- p.179

(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 348 e 344.   

(9) Id. ib, p, 348


Amos Nattini

Salvador Dalí








quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Canto XII

PURGATÓRIO


Canto XII


Os orgulhosos, Oderisi- G. Doré 
  
            O Canto XII inicia com uma comparação: a situação de Dante curvado, acompanhando Oderisi, andando emparelhado a ele, é comparada à de “bois andando sob a canga” (Di pari, come buoi che vanno a giogo- v.1). Mas isso dura o tempo que Virgílio lhe concede. Quando porém seu mestre -- o “doce pedagogo” (il dolce pedagogo- v.3) -- lhe diz que deve deixar Oderisi para trás e avançar, “pois aqui é bom cada um, com asas e com remos,/ impelir sua barca o quanto pode” (ché qui è buono con l’ali e coi remi,/ quantunque può, ciascun pinger sua barca- v. 5-6), ajudado pela graça (asas) e pelo esforço próprio (remos) (1), Dante endireita o corpo de novo e recomeça a marcha, seguindo o seu guia. Sente-se contudo mais humilde, com pensamentos “submissos e esvaziados” (do orgulho) (/.../ i pensieri/ mi rimanessero e chinati e scemi- v. 8-9), como decorrência, certamente, de sua “purgação” simbólica (o tempo em que acompanhou, curvado, Oderisi), no âmbito da alegoria proposta pelos versos em questão.  

            Este Canto conclui a abordagem do primeiro terraço (ou “cornija”), onde estão os que purgam o pecado da soberba, considerado o pior dos sete pecados capitais, abordagem essa iniciada no Canto X.  O Canto XII apresenta treze exemplos de notórios orgulhosos punidos, extraídos da mitologia clássica, da história, da literatura ou da Bíblia, cujas imagens representativas estão gravadas no pavimento do caminho percorrido pelos penitentes, obrigados a olhar para o chão pelo peso que carregam. Assim, enquanto purgam seu pecado, são-lhes apresentados esses treze casos para reflexão (no canto anterior, ao chegar, os penitentes viram três casos de humildade – a virtude oposta ao pecado do orgulho -- esculpidos na parede da cornija).  

W. Blake
            Assim como no piso das igrejas antigas as pessoas leem informações sobre aqueles que ali embaixo estão sepultados, também os penitentes do primeiro terraço veem as imagens gravadas no pavimento por onde caminham.  A partir do v. 25, cada terceto corresponderá a um desses casos (Dante fará aqui, nos vv. 25-63,  uma demonstração de sua maestria formal).  Os quatro primeiros tercetos, cujos versos iniciais começam com V (Vedëa...), referem-se a Lúcifer, Briareu, outros gigantes que ousaram atacar os deuses no monte Olimpo e ao presunçoso Nemrod, que construiu a Torre de Babel para assim alcançar o céu. Lúcifer, o mais belo dos anjos, liderou uma rebelião contra Deus e por isso foi punido:  

Vedëa colui che fu nobil creato
più ch’altra creatura, giù dal cielo
folgoreggiando scender, da l’un lato.  (XII, 25-27)

Via, de um lado, aquele que foi criado/ mais nobre do que outras criaturas,/ cair do céu como um raio.

Níobe e seus filhos- A.Bloemart, 1591
             No grupo seguinte, os quatro tercetos, que começam com o vocativo O, tratam respectivamente de Níobe, Saul, Aracne e Roboão, dois personagens mitológicos e dois bíblicos. Níobe, mulher do rei de Tebas, mãe de sete filhos e sete filhas, vangloriou-se de ser superior à deusa Latona, que só havia gerado Apolo e Diana.  Estes então mataram a flechadas todos os filhos de Níobe, que foi transformada em estátua de pedra, sempre a chorar  (2):

O Nïobè, con che occhi dolenti
vedea io te segnata in su la strada,
tra sette e sette tuoi figliuoli spenti!   (XII, 37-39)

Ó Níobe, com que olhos plangentes/ eu te via gravada no pavimento da estrada/ entre teus sete filhos e sete filhas mortos!

Aracne- G. Doré

            Aracne, por sua vez, orgulhosa de seus trabalhos de tecelagem, desafiou Minerva para uma competição. A deusa, enraivecida por não poder superá-la, levou-a ao desespero e ela acabou se enforcando. Minerva transformou-a  então em aranha, e a corda utilizada, em sua teia (3). 

            Quanto aos personagens bíblicos, Saul, primeiro rei de Israel, que desobedeceu Deus, aparece caído sobre a própria espada, pois foi assim que ele se suicidou, após ser derrotado numa batalha (4). E Roboão, filho de Salomão, aparece fugindo num carro. Sua arrogância no reinado de Israel fez com que a população se rebelasse contra ele (5).

            Nos quatro tercetos seguintes, que iniciam pela letra M (Mostrava...), aparecem nas cenas, em primeiro lugar, Alcmeón, que matou a sua vaidosa mãe Erifile porque ela revelou, em troca de um colar, o local em que estava escondido o pai dele, marido dela, o que levaria à morte deste na guerra de Tebas (6). 

            Em seguida, é mostrada a morte, pelas mãos dos próprios filhos, do rei assírio Senaqueribe, outro personagem bíblico, que lutou contra o reino de Judá. Também está representada na pedra a vingança da rainha dos citas, Tamíris, que decapitou Ciro, rei dos persas (assassino do filho dela), e mergulhou sua cabeça num vaso cheio de sangue, dizendo as palavras que constam abaixo:

Mostrava la ruina e ‘l crudo scempio
che fé Tamiri , quando disse a Ciro:
“Sangue sitisti, e io di sangue t’empio.”   (XII, 55-57)

Mostrava a devastação e o massacre/ que fez Tamíris, quando disse a Ciro:/ “Tiveste sede de sangue, e eu de sangue te sacio”.

            O último caso desse grupo de tercetos, também extraído da Bíblia,  mostra a fuga dos assírios, depois da morte de Holofernes, general do exército do rei Nabucodonosor, inimigo dos judeus e seu Deus. Quando estes  estavam sitiados em Bethulia, a bela viúva Judite entrou em sua tenda e enquanto ele dormia, cortou-lhe a cabeça (7).

            O décimo-terceiro, e último exemplo, é dado por Troia (ou Ilium), também arruinada pela sua soberba, como ocorreu em todos os outros casos.  Cada verso do terceto relativo à cidade (v.61-63) começa com as letras V, O, M, que antes iniciaram, como vimos, os quatro grupos de tercetos. Como V é equivalente a U, o acróstico forma “uom” (uomo) ou seja “homem”. Assim, nesse terceto-síntese, o orgulho segundo Dante é tão presente no ser humano, tão associado a ele, que a palavra “uom” é utilizada como seu sinônimo.  

            Dante admira-se com a qualidade e o realismo das cenas entalhadas, em que “os mortos pareciam mortos e os vivos, vivos” (Morti li morti e i vivi parean vivi:-v.67), e se pergunta, retoricamente (pois sabe de sua autoria divina),

Qual di pennel fu maestro o di stile
che ritraesse l’ombre e ‘ tratti ch’ ivi
mirar farieno uno ingegno sottile?    (XII, 64-66)  

Qual foi o mestre do pincel ou do estilete/ que traçou essas sombras e contornos/ para a admiração de um engenho sutil?

            Na sequência, Virgílio lembra ao seu discípulo, distraído por essas cenas, que “retorna/ do serviço do dia a sexta serva” (/.../ vedi che torna/ dal servigio del dì l’ancella sesta- v.80-81), indicando assim que já era meio-dia daquela segunda-feira de Páscoa, pois nos pressupostos do poema cada hora é considerada uma “serva” do Sol, e  cada dia inicia às seis horas. A referência a “ancella” é sugestão de humildade e está contida nas palavras de Maria para o Anjo da Anunciação: “Ecce ancilla Dei” (cf. Canto X, v. 44) como assinala um comentarista (8). Essa menção ocorre justamente quando Virgílio manda Dante ficar atento porque vem na direção deles um anjo (o “anjo da humildade”) e por isso ele deve mostrar-se reverente, “para que lhe agrade mandar-nos para cima” (sì che i diletti lo ‘nvïarci in suso;- v. 83). O anjo porém mostra-se bastante receptivo:

Le braccia aperse, e indi aperse l’ale;
disse: “Venite: qui son presso i gradi,
e agevolemente omai si sale”.   (XII, 91-93)

Abriu os braços e depois, as asas;/ então disse: “Vinde, os degraus estão próximos/ e doravante se sobe facilmente

            Após o penitente vencer o seu orgulho, a subida será mais fácil. O anjo se admira que poucos aceitem o convite divino para o reino dos céus e Dante, explorando a imagem de fenômenos da natureza (voo de pássaro, efeito do vento), põe na boca do anjo estas palavras: “ó gênero humano, nascido para voar alto,/ por que cais assim com pouco vento?” (o gente umana, per volar sù nata,/ perché a poco vento cosi cadi?- v. 95-96)

Amos Nattini
             O anjo os leva para um local “onde a rocha era talhada” (/.../ ove la roccia era tagliata- v. 97), que, embora estreita, representa acesso ao terraço superior. E se retira, após bater com a asa na fronte do poeta (v. 98). Dante-autor aqui compara esse caminho com o do monte onde está a igreja de San Miniato que domina a sua “bem governada” (la ben guidata- v. 102) cidade (cf. a  ironia)...  Ali

si rompe del montar l’ardita foga
per le scalee che si fero ad etade
ch’era sicuro il quaderno e la doga;   (XII, 103-105)

a subida se torna menos áspera/ pelos degraus que foram construídos numa época/ em que eram certos os livros e as medidas

(cf. a crítica social, pois o v. 105 refere-se a casos de corrupção ocorridos na administração de Florença na época de Dante).    

            Os dois poetas se voltam então para aquele caminho enquanto ouvem “Beati pauperes spiritu!” (“Bem aventurados os pobres em espírito”, conforme o Sermão da Montanha), cantado “de um modo tal que não se pode expressar em palavras” (cantaron sì, che nol diria sermone- v. 111). 

            Enquanto sobem os “santos degraus” (li scaglion santi- v. 115), Dante diz a seu guia que se sente agora muito mais leve do que antes. Virgílio lhe explica que isso se deve ao fato de que um dos P da sua testa foi apagado. Subentende-se que isso ocorreu há pouco, quando o anjo a golpeou com a asa. Dante faz, neste final do Canto, mais uma comparação. Após aquelas palavras de Virgílio, ele se compara a uma pessoa que não sabe que tem alguma coisa sobre a cabeça e é alertado pelos outros. Ele então a tateia com a mão “e procura e encontra e executa o serviço/ que a visão não pode prover” (e cerca e truova e quello officio adempie/ che non si può fornir per la veduta;- v. 131-132). Note-se o polissíndeto do v. 131 e o aspecto fortemente visual da imagem.    

            Dante, tateando, leva a mão direita a testa e só encontra seis P gravados, dos sete inscritos pelo anjo que guarda a entrada do Purgatório propriamente dito, como se viu anteriormente. Os seis P que permanecem já estão meio apagados (v.122), o que indica que, segundo Dante, o pecado do orgulho, uma vez vencido, pela submissão a Deus, reduz também o peso dos outros, de acordo com a interpretação dos comentaristas.


NOTAS


(1) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 116.

(2) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.163

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.346

(4) Id., ib, p. 345-346

(5) Id., ib, p. 346

(6) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p.164

(7) Id. ib., p. 164. Cf também MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 346.

(8) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume II: Purgatory”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1985, p. 135-136.



San Miniato al Monte, Florença

Salvador Dalí