quinta-feira, 31 de março de 2016

Canto XXVI


PURGATÓRIO


Canto XXVI


            Os três poetas seguem em frente, um atrás do outro, andando numa estreita faixa do terraço, entre o fogo que purifica os luxuriosos e o precipício. Virgílio lembra frequentemente a Dante para tomar cuidado. Os raios do sol, que atingiam Dante no ombro direito, já clareavam o ocidente, que “mudava de azul celeste para o branco” (mutava in bianco aspetto di cilestro- v.6), mostrando que a tarde avançava. Mas a sombra do corpo de Dante “fazia parecer/ mais candente a chama” (e io facea con l’ombra più rovente/ parer la fiamma;/.../  v.7-8) em que estavam os penitentes, o que atrai a atenção de um grupo deles, que caminhava no fogo paralelamente aos três poetas. Esses penitentes diziam entre si: “Aquele não parece um corpo fictício” (/.../ “Colui non par corpo fittizio”- v. 12). E se aproximavam de Dante, cuidando entretanto para não sair fora do fogo de sua purgação desejada. 

            Um deles (que só no v. 92 se identificará) faz então a pergunta que reflete a curiosidade também dos outros, após reparar que Dante é o que segue atrás dos dois poetas latinos (Estácio e Virgílio), certamente em reverência a eles:  

Dinne com’è che fai di te parete
al sol, pur come tu non fossi ancora
di morte intrato dentro da la rete.   (XXVI, 22-24)

Diz-nos como é que fazes de ti parede/ ao sol, como se tu não fosses ainda/ apanhado pela rede da morte.  

            A rede aqui, como se vê, é metáfora da morte, que captura todos os seres humanos em suas malhas, quando chega a hora fatal...

             Quando Dante vai responder essa questão, é surpreendido por um outro bando, que vem pelo mesmo “caminho aceso” (cammino acceso- v. 28) em sentido contrário ao do primeiro. E os integrantes dos dois grupos, sem se deter, cumprimentam-se, beijando-se mutuamente,

così per entro loro schiera bruna
s’ammusa l’una con l’altra formica,
forse a spïar lor via e lor fortuna.    (XXVI,  34-36)

do mesmo modo, em sua fileira escura,/ cada formiga toca o focinho da outra,/ talvez para indagar sobre a via ou a fortuna.

            Dante assim expressa, surpreendendo-nos com essa comparação curiosa, o encontro rápido dos dois bandos. Mas “logo que cessa a acolhida amiga” (Tosto che parton l’accoglienza amica- v. 37), cada sombra do grupo recém-chegado grita bem alto: “Sodoma e Gomorra” (“Soddoma e Gomorra”- v.40) enquanto as sombras do outro grupo gritam “Na vaca entra Pasífae/ para que o tourinho à sua luxúria corra” (/.../ “Ne la vacca entra Pasife,/ perché ‘l torello a sua lussuria corra.”- v. 41-42).  Como estamos no terraço dos luxuriosos, os do primeiro grupo -- que lembram as duas cidades bíblicas destruídas por Deus pelos seus costumes sexuais pervertidos envolvendo o mesmo sexo -- são associados aos sodomitas, enquanto os do outro grupo o são a práticas sexuais entre sexos diferentes, porém exageradas, o que os reduz à condição animal, como mostra a sua menção a Pasífae. Essa personagem da mitologia clássica era esposa de Minos, rei de Creta, e  segundo a lenda  entrou numa vaca artificial para ser montada por um tourinho de quem gostava. Dessa relação nasceria o Minotauro, metade touro e metade homem (1).

            Na sequência, os dois grupos se separam. Dante os compara aos grous, que em parte vão para o Norte (para as míticas montanhas Rife) fugindo do calor, e em parte vão para o Sul (para os areais africanos), fugindo do frio.

            Assim, “uma gente vai e outra vem” (l’una gente sen va, l’altra sen vene- v. 46), retornando, em lágrimas, “aos primeiros cantos” (a’ primi canti- v.47) (i.e. ao  Summae Deus clementïae”, como vimos no canto XXV) e aos gritos apropriados à sua condição. Aproximam-se então de Dante aqueles mesmos espíritos que haviam lhe formulado uma pergunta e estavam “atentos a escutar em seus semblantes” (attenti ad ascoltar ne’ lor sembianti- v. 51).

            Dante então responde a essas almas, que deverão ainda alcançar “o estado de paz” (di pace stato- v.54), dizendo que de fato ele está lá com seu próprio corpo:

non son rimase acerbe né mature
le membra mie di là, ma son qui meco
col sangue suo e con le sue giunture.    (XXVI, 55-57)

não ficou no mundo de lá, nem jovem nem maduro,/ o corpo meu, mas está aqui comigo/ com seu sangue e suas juntas.

            Ele avança em sua jornada “para não ser mais cego” (/.../ per non esser più cieco- v.58) por graça de uma dama do céu (Beatriz?, a Virgem Maria?). Conclui sua fala fazendo por sua vez uma pergunta:

ditemi, acciò ch’ancor carte ne verghi,
chi siete voi, e chi è quella turba
che se ne va di retro a’ vostri terghi.   (XXVI, 64-66)

dizei-me, a fim de que eu ainda o escreva,/ quem sois vós, e quem é aquela turba/ que vai em direção oposta à vossa.

            Aqui Dante faz esta outra comparação: as sombras ficam tão admiradas com o que ele lhes diz

Non altrimenti stupido si turba
lo montanaro, e rimirando ammuta,
quando rozzo e salvatico s’inurba,    (XXVI, 67-69)

Como espantado fica/ o montanhês, olhando emudecido,/ quando, rústico e selvagem, vem para a cidade,

            Então, prossegue Dante, “recomeçou aquele que antes me interrogara” (ricominciò colei che pria m’inchiese- v. 74), o qual identifica o grupo que vai em direção oposta a eles (aquele que gritou “Sodoma”) como homossexuais, pois essa gente “incorreu no pecado pelo qual já César, em triunfo,/ ouviu chamarem ‘Rainha’ contra si” (/.../ offese/ di ciò per che già Cesar, triunfando,/ ‘Regina’ contra sé chiamar s’intese- v.76-78). Segundo os comentadores, Suetônio afirma que César teve relações com Nicomedes, rei da Bitínia conquistada, razão por que na comemoração de uma vitória, seus subordinados em festa, zombeteiramente, chamaram-no de Rainha da Bitínia. E cantaram versos satíricos, dizendo que assim como César subjugou a Gália, assim Nicomedes subjugou César (2).  O espírito vai identificar também o seu próprio grupo como de heterossexuais, mas que não observaram a lei humana, “seguindo como bestas o apetite” (seguendo come bestie l’appetito- v. 84). Por isso, gritam o nome de Pasífae. Ambos os grupos, ao darem esses gritos com referências simbólicas ao seu pecado, censuram a si mesmos e se envergonham dele, “e com vergonha aumentam o ardor” (e aiutan l’arsura vergognando- v. 81) de sua purificação pelo fogo.  
Amos Nattini

             O espírito diz a Dante que não tem condições de dar os nomes dos outros que estão ali. Mas pelo menos identifica-se a si mesmo:

Farotti ben di me volere scemo:
son Guido Guinizzelli, e già mi purgo
per ben dolermi prima ch’a lo stremo.     (XXVI,  91-93)

Satisfarei teu desejo pelo menos quanto a mim:/ sou Guido Guinizzelli, e já me purgo/ porque me  arrependi antes da hora extrema.

            Ao ouvir isso, Dante faz outra comparação, em versos que mencionam Licurgo e dois filhos que reveem a mãe. Pelos comentadores ficamos sabendo que, segundo a “Tebaida” de Estácio, o rei Licurgo confiou um filho seu à escrava Hipsípile, que o deixou só por um breve período para indicar aos sete heróis de Tebas a localização de uma fonte. Ao retornar, a criança estava morta, picada por uma serpente. Hipsípile foi condenada à morte por causa disso, mas no momento da sua execução, seus dois filhos correram para abraçá-la e sua vida acabou sendo poupada.(3) Dante se compara aos filhos de Hipsípile na predisposição em correr para abraçar Guido Guinizzelli, poeta que admira, “pai/ meu e de outros melhores que eu/ que já usaram doces  e graciosas rimas de amor” (/.../ padre/ mio e de li altri miei miglior che mai/ rime d’amor usar dolci e leggiadre- v. 97-99). Mas ele não chega a efetivamente abraçar Guido, poeta de Bolonha falecido talvez em 1276, criador do “dolce stil nuovo” em língua materna no qual se destacou Dante, Guido Cavalcanti e alguns outros poetas (4). Dante contenta-se apenas em, andando, contemplá-lo à distância, “sem me aproximar mais, por causa do fogo” (né, per lo foco, in là più m’ appressai- v. 102). Só demonstra como se sente por essa contemplação prolongada, “sem ouvir nem falar, pensativo” (e sanza udire e dir pensoso andai- v. 100).  Mas logo adiante, respondendo a Guido, Dante diz ao poeta que a razão de sua admiração é

/.../ “Li dolci detti vostri,
che, quanto durerà l’uso moderno,
faranno cari ancora i loro incostri.”    (XXVI, 112-114)

/.../ “Os doces ditos vossos,/ que, enquanto durar o uso moderno,/ farão ainda cara a sua tinta

            Assim, seus versos serão caros enquanto se escrever na língua vulgar. “Sua tinta” aqui está por “seus escritos”,  uma metonímia...   

            A isso, Guido Guinizzelli aponta com o dedo um espírito mais adiante, afirmando que ele “foi melhor artífice do falar moderno” (fu miglior fabbro del parlar materno- v. 117). Trata-se, como se verá logo a seguir, do poeta provençal Arnaut Daniel. Guido ainda faz esta crítica a terceiros: “deixa que os estultos digam/ que o de Limoges lhe é superior” (/.../ e lascia dir li stolti/ che quel di Lemosì credon ch’ avanzi- v. 119-120), pois eles “Olham mais a fama do que a verdade” (A voce più ch’al ver drizzan li volti- v. 121). “Assim fizeram muitos antigos com Guittone” (Così fer molti antichi di Guittone- v. 124). O de Limoges, segundo os comentadores, é o poeta provençal Giraut de Bornelh, falecido em ca. 1220, de estilo simples e popular; e o outro poeta citado é Guido d’Arezzo, chamado Guittone, nascido em ca.1250, um erudito mas de poesia artificial e desgraciosa (5). 

            Guido Guinizzelli encerra sua fala fazendo este pedido a Dante, após usar a metáfora do claustro para o Paraíso:

Or se tu hai sì ampio privilegio,
che licito ti sai l’andare al chiostro
nel quale è Cristo abate del collegio,

falli per me un dir d’un paternostro,
quanto bisogna a noi di questo mondo,
dove poter peccar non è più nostro.       (XXVI, 127-132)

Se tens agora tão amplo privilégio/ de poder ir até o claustro/ no qual é Cristo abade do colégio,
recita por mim, a Ele, um “pater nostro”,/ na parte que é necessária a nós neste mundo,/ onde o poder de pecar não é mais nosso.

            Depois disso, Guido Guinizzelli “desapareceu dentro do fogo/ como na água o peixe vai ao fundo” (/.../ disparve per lo foco,/ comme per l’acqua il pesce andando al fondo- v. 134-135), outra comparação.

Arnaut Daniel (min. séc. XIII)

            Em seguida, Dante se aproxima do espírito que antes fora indicado por Guido, dizendo-lhe que ao seu nome o seu desejo “preparava uma acolhida cortês” (apparecchiava grazïoso loco- v. 138), ou seja, pede para que ele decline seu nome. E esse espírito, nos próximos oito versos (v. 140-147), manifesta-se em sua própria língua, o provençal. Afirma então que atenderá com prazer sua demanda. Ele é Arnaut, que lamenta a loucura passada e espera, contente, a alegria futura. Conclui pedindo a Dante, que se dirige ao alto da escada, para lembrar-se dele no momento oportuno. 

            E Arnaut Daniel sai de cena. Dante assim expressa isso, no último verso do canto: “Depois, escondeu-se no fogo que os purifica” (Poi s’ascose nel foco che li affina-  v.148).  



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-p. 384

(2) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.270. Cf. também SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p. 277.

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.385

(4) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op. cit., p. 278.

(5) Id. ib, p. 279.

Salvador Dalí 



terça-feira, 29 de março de 2016

Canto XXV


PURGATÓRIO


Canto XXV


            Pelas referências astrológicas dos versos iniciais deste Canto, Dante nos informa, indiretamente, que já era 14 horas daquele dia (terça-feira de Páscoa). “Hora era em que o subir não admitia demora” (Ora era onde ‘l salir non volea storpio- v.1), pois a tarde avançava e eles deviam aproveitar a luz do dia, uma vez que à noite, como vimos, não era possível subir a montanha. Os três poetas prosseguem em sua jornada e entram por uma passagem, “um na frente do outro subindo a escada” (uno innanzi altro prendendo la scala- v. 8). Dante faz então aqui uma comparação delicada. Deseja fazer uma pergunta mas se interrompe no último momento. Assim, ele é

/.../  quale il cicognin  che leva l’ala
per voglia di volare, e non s’attenta
d’abbandonar lo nido, e giù la cala    (XXV, 10-12)

/.../  como a cegonhinha que ergue a asa/ por vontade de voar, mas não se atreve/ a abandonar o ninho, e a abaixa

            Virgílio, porém, percebe essa sua vontade de perguntar, e enquanto caminham rapidamente manda-o disparar seu “arco do falar” (l’arco del dir- v.18).

Allor sicuramente apri’ la bocca
e cominciai:  “Come si può far magro
là dove l’uopo di nodrir non tocca?”   (XXV, 19-21)

Então, mais seguro, abri a boca/ e perguntei: “Como se pode emagrecer/ ali onde não há necessidade de nutrir-se?”. 

            Virgílio cita dois exemplos para facilitar sua compreensão dessa matéria. O primeiro refere-se ao caso de Meleagro, da mitologia grega. O poeta pede para Dante lembrar-se de como ele se consumiu (v. 22-24). Nas notas a este verso, fica-se sabendo que as Parcas -- “divindades que presidiam os destinos da humanidade”, já mencionadas no canto XXI -- haviam dito à mãe do herói grego Meleagro que ele viveria o tempo necessário para que uma tora se queimasse. Sabendo disso, ela retira a tora do fogo e a esconde. Muito tempo depois, revoltada com o fato de que o filho matara dois irmãos dela, a mãe a devolve ao fogo (1). Dante estabelece assim uma correspondência entre o fato de Meleagro consumir-se por uma determinação sobre-humana e o emagrecimento dos que purgam o pecado da gula. 

            No segundo exemplo Virgílio pede para Dante pensar no espelho:  e se pensasses como, ao vosso movimento,/ move-se dentro do espelho vossa imagem” (e se pensassi come, al vostro guizzo,/ guizza dentro a lo specchio vostra image - v.25-26).  Aqui, a correspondência é entre a imagem do espelho e as dos que estão no Purgatório, sombras que refletem por sua vez os corpos que tiveram anteriormente, na vida terrena... 

            Mas essas considerações de Virgílio são só introdutórias pois quem de fato responderá a pergunta de Dante será Estácio, atendendo solicitação de Virgílio, certamente porque ele representa a razão associada à fé. Estácio era um pagão que se tornou cristão e, como vimos, já cumpriu o seu período no Purgatório e está prestes a entrar no Paraíso. Na sua resposta -- um longo discurso, que vai do v. 34 ao 108 – Estácio, segundo os comentadores, incorpora tanto as ideias científicas da época, baseadas em Aristóteles, como as teológicas, em conformidade com a doutrina de S. Tomás de Aquino. A elas, Dante incorpora as suas próprias ideias (2).

O triunfo de S.Tomás sobre Averroes (séc. XV)

            Estácio inicia pelo processo da origem de um ser humano. Afirma que parte do ”sangue perfeito” (Sangue perfetto- v. 37) que corre nas veias “adquire no coração a virtude de dar forma / a todos os membros humanos” (prende nel core a tutte membra umane/ virtute informativa, /.../-  v. 40-41). Depois, tal “sangue” (trata-se na realidade do sêmen) “desce para onde é melhor/ calar do que nomear(/.../ scende ov’ è più bello/ tacer che dire; /.../- v. 43-44) (o órgão genital masculino); “e dali depois goteja/ sobre outro sangue (o da mulher) em vaso natural” (o útero) (/.../ e quindi poscia geme/ sovr’ altrui sangue in natural vasello- v. 44-45). A união desse “sangue perfeito” com o sangue feminino origina a vida “qual de uma planta” (qual d’uma pianta- v. 53) (vida vegetativa).  E ele continua a agir: “tanto opera depois que já se move e sente,/ como esponja marinha” (tanto ovra poi, che già si move e sente,/ come spungo marino; /.../- v. 55-56) (vida sensitiva ou animal).  Então, diz Estácio para Dante:

Ma come d’animal divegna fante,
non vedi tu ancor: quest’ è tal punto,
che più savio di te fé già errante,

sì che per sua dottrina fé disgiunto
da l’anima il possibile intelletto,
perché da lui non vide organo assunto.    (XXV, 61-66)

Mas como animal torna-se falante/ não vês ainda: este é um ponto tal/ que fez errar alguém mais sábio do que tu
pois na sua doutrina separou/ o “intelecto possível” da alma, / por não ver nenhum órgão assumi-lo.

            O “intelecto possível” é a expressão escolástica para a razão humana segundo Ciardi (3).

            Aqui Dante critica o erro do filósofo árabe-espanhol Averroes (“alguém mais sábio do que tu”) para quem os seres humanos não contavam com um intelecto unido à alma (como acreditava o católico Dante) mas compartilhavam -- só enquanto viviam -- um intelecto universal, comum a todos e imortal. Quando a pessoa morria, a alma individual morria com ela (4). Averroes portanto não aceitava a imortalidade da alma individual.

            Na sequência, Estácio explica que o ser animal torna-se humano quando o “Motor Primeiro” (motor primo- v.70) (Deus), “sopra/ novo espírito” (spira/ spirito novo- v. 71-72) no feto, tornando-o “uma só alma/ que vive e sente e em si gira(/.../ e fassi un’alma sola,/ che vive e sente e sé in sé rigira- v. 74-75), vale dizer, reúne em si a vida vegetativa, animal e racional.

            Essa intervenção direta de Deus para a criação de cada indivíduo é associada por Estácio ao calor do Sol sobre a videira:  

E perché meno ammiri la parola,
guarda il calor del sol che si fa vino,
giunto a l’omor che de la vite cola.   (XXV, 76-78)

E para que menos te admires das minhas palavras/ olha o calor do Sol que se faz vinho,/ junto à seiva que da videira escorre. 

            Prosseguindo, Estácio explica que “Quando Laquésis fiou todo o seu linho” (Quando Làchesis non ha più del lino- v. 79), quer dizer, quando a pessoa morre (pois Laquésis -- uma das três Parcas -- é responsável pelo tecido da vida) a alma separa-se do corpo e leva consigo tanto as faculdades humanas (relativas à vida vegetativa e animal), que “ficam mudas” (v. 82), quanto as divinas (memória, inteligência e vontade- v. 83), que ficam “muito mais agudas do que antes(/.../ molto più che prima agute- v. 84).  A alma liberta do corpo já sabe qual é o seu destino. “Sem deter-se, por si mesma ela cai/ prodigiosamente em uma das duas margens” (Sanza restarsi, per sé stessa cade/ mirabilmente a l’una de le rive-  v. 85-86), subentendendo-se aqui a margem do rio Aqueronte, que leva ao Inferno, ou a do rio Tibre, que leva ao Purgatório (5).           

            Nesse lugar, “a virtude formativa raia em torno,/ assim como fez ao formar os membros vivos” (do feto) (la virtù formativa raggia intorno/ così e quanto ne le membra vive- v. 89-90)

E come l’aere, quand’ è ben pïorno,
per l’altrui raggio che ‘n sé si reflete,
di diversi color diventa addorno    (XXV, 91-93)

E como o ar, quando está bem úmido,/ por outro raio que nele se reflete,/ se adorna com diversas cores

a alma que ali parou faz o ar tomar a forma correspondente ao seu corpo (um corpo aéreo), que Dante compara, como se vê nos versos 91-93, à formação do arco-íris.

            Essa nova forma que assume o espírito, chamada “sombra”, conta com todos os órgãos dos sentidos, “inclusive a vista” (infino a la veduta- v. 102). E cada uma delas fala e ri, suspira e chora, tem desejos e outros sentimentos...

            Assim se encerra o longo discurso de Estácio em resposta à pergunta de Dante.

            Os três poetas chegam por fim ao último terraço, e conseguem com dificuldade andar ali, haja vista o fogo que saía do flanco da montanha. Mas um vento que soprava para o alto, repelia um pouco as chamas e abria uma via para eles, que seguiram por ela um a um, temendo o fogo de um lado e cair no precipício, do outro.  

G.Doré- O sétimo círculo 
            Esse terraço é o dos luxuriosos, o que é indicado pelo fogo, símbolo das paixões humanas. Virgílio então se manifesta nestes termos ao seu discípulo, cujo sentido alegórico é destacado por Ciardi, tendo em vista a facilidade com que os seres humanos podem incorrer no pecado da luxúria (6):   

Lo duca mio dicea: “Per questo loco
si vuol tenere a li occhi stretto il freno,
però ch’ errar potrebbesi per poco.”    (XXV, 118-120)

E o meu guia dizia: “Neste lugar/ deve-se ter os olhos sob estreito freio/ pois pode-se errar por muito pouco”.

G.Doré- O sétimo círculo 
          
G.Doré- O sétimo círculo- Os luxuriosos

           Depois, seguindo o padrão de outros cantos do Purgatório, são citados exemplos da virtude oposta ao pecado purgado no terraço em que Dante está. Assim ele ouve um hino (“Summae Deus clementïae”) da Igreja “cuja terceira estrofe pede a ajuda de Deus para combater as tentações da carne” (7) sendo cantado pelos penitentes e vê “espíritos pela chama andando” (e vidi spirti per la fiamma andando- v. 124). Concluído esse hino, eles gritam “Virum non cognosco” (v.128) (que significa “Não conheço varão”) para lembrar as palavras pronunciadas por Maria quando o anjo da Anunciação lhe comunicou que seria mãe. Recomeçam então a cantar o mesmo hino. Ao concluí-lo novamente, lembram outro exemplo de castidade, agora extraído da mitologia. Gritam: “No bosque/ permaneceu Diana, e dele expulsou Hélice,/ que provara o veneno de Vênus” (“Al bosco/ si tenne Diana, ed Elice caccione/ che di Venere avea sentito il tòsco”- v.130-132) (a jovem Hélice foi expulsa de seu séquito pela casta Diana porque deixou-se seduzir por Jove...) (8). Na vez seguinte, ao concluir o hino, os penitentes lembram esposas e maridos castos de um matrimônio virtuoso.  É dessa forma -- andando pelo fogo (sua cura), entoando o hino e lembrando exemplos de castidade (seu alimento) --  que os luxuriosos tratam a sua ferida, como dizem os versos finais do Canto...


NOTAS


(1) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.385- “Glossary”.  Cf também  MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-p. 380

(2) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p.257-260.  Cf. também SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p. 268-270.

(3) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 258.

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 382

(5) Id. ib, p. 382-383.

(6) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p.260-261.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.383.

(8) Id. ib, p. 383.


Amos Nattini
 
Salvador Dalí




quinta-feira, 24 de março de 2016

Canto XXIV


PURGATÓRIO


Canto XXIV


            Os versos iniciais do Canto nos informam que todos avançavam em sua jornada, sem que a conversa entre eles os retardasse: “mas conversando, íamos depressa/ assim como nau impelida por bom vento” (/.../ ma ragionando andavam forte,/ sì come nave pinta da buon vento- v.2-3), uma comparação. Enquanto Estácio e Virgílio iam à frente, Dante, acompanhado de Forese, seguia atrás. Ele retoma sua fala a este amigo, interrompida no final do Canto anterior, afirmando o seguinte sobre Estácio: “Essa sombra sobe talvez mais lentamente/ do que o faria, por causa da outra alma” (/.../ “Ella sen va sù forse più tarda/ che non farebbe, per altrui cagione-  v. 8-9), quer dizer, por causa de Virgílio.  Estácio, como vimos, já foi liberado do Purgatório, mas se demora um pouco mais aí pelo privilégio de poder conversar com o autor da “Eneida”...   

G.Doré- Os gulosos


            Dante pergunta a Forese onde está sua irmã Piccarda e indaga sobre alguns daqueles seus companheiros de purgação, que o olham admirados, assim se referindo a eles:

e l’ombre, che parean cose rimorte,
per le fosse de li occhi ammirazione
traean di me, di mio vivere accorte   (XXIV, 4-6)

e as sombras, que pareciam mortas duas vezes,/ pela covas dos olhos exprimiam admiração/ ao dar-se conta de que eu estava vivo.

            A impressão dessa “segunda morte”, naturalmente, relacionava-se ao fato de elas estarem muito magras, haja vista o sacrifício que assumiram (de bom grado) para compensar o seu pecado da gula. 

            Forese responde a Dante dizendo que Piccarda “triunfa alegre,/ no alto Olimpo já, em sua coroa” (/.../ trïunfa lieta/ ne l’alto Olimpo già di sua corona- v. 14-15), ou seja, ela já está no Paraíso. O irmão deles, Corso Donati (ainda vivo e referido, indiretamente, mais adiante) a obrigou a quebrar seus votos de freira e a se casar com uma pessoa indicada por ele, tendo em vista a sua conveniência política (1).   

            Depois, Forese começa a dar os nomes de diversos integrantes daquele bando de sombras, atendendo ao pedido de Dante. Menciona: 1) Bonagiunta da Lucca, de que se falará abaixo;  2) alguém que “teve a Santa Igreja em seus braços:/ era de Tours, e seu jejum purga/ as enguias de Bolsena e o vinho vernaccia” (ebbe la Santa Chiesa in le sue braccia:/ dal Torso fu, e purga per digiuno/ l’anguille di Bolsena e la vernaccia- v. 22-24); o fato de o papa ser considerado o “esposo” da Igreja (2), a pessoa ser de Tours e ter tais hábitos alimentares na vida terrena o identificam como o papa glutão Martinho IV;  3) Ubaldin de la Pila, que Dante vê “pela fome, a mastigar em vão” (Vidi per fame a vòto usar li denti- v. 28). Este nobre florentino  era irmão do Cardeal Otaviano, que está no Inferno entre os epicuristas (cf Inf., canto X), e pai do arcebispo Ruggieri mencionado no Inf., canto XXXIII. Segundo Sayers, ele era um homem refinado com talento para inventar novas receitas culinárias (3); 4) Bonifazio, “que pastoreou muita gente com seu báculo” (che pasturò col rocco molte genti-  v. 30), é, segundo os comentadores, Bonifazio Fieschi, antigo arcebispo de Ravena, que -- como deixa subentendido um Dante irônico -- não só pastoreava (= guiar ao pasto) seu rebanho no sentido figurado e espiritual...(4); e 5) um senhor marquês (Messer Marchese degli Argugliosi), da cidade de Forlì, na Romagna, que nunca se saciava, ao beber. 

            Destes, o que mais chama a atenção de Dante é “o de Lucca,/ que mais parecia ter notícia de mim” (/.../ a quel da Lucca,/ che più parea di me aver contezza- v. 35-36), o primeiro mencionado acima.

El mormorava; e non so che “Gentucca”
sentiv’io là, ov’ el sentia la piaga
de la giustizia che sì li pilucca.    (XXIV,  37-39)

Ele murmurava; e não sei que “Gentucca”/ ouvi dali onde ele sentia a chaga/ da justiça que assim o consumia.   

            Assim Dante ouve da boca de Bonagiunta – do local do corpo mais associado à fome e sede, purgação dos gulosos, por isso chamada  chaga da justiça” (piaga de la giustizia) (divina) -- a menção a essa pessoa. Bonagiunta   “prediz” que Gentucca é uma mulher que o fará prezar sua cidade, Lucca, que antes criticara (Gentucca seria provavelmente uma pessoa bondosa que apoiou Dante em seu exílio) (5). Depois Bonagiunta pergunta a Dante se ele é “aquele que iniciou/ as novas rimas, começando por ‘Damas que tendes do amor entendimento’” ( /.../ colui che fore/ trasse le nove rime, cominciando/ ‘Donne ch’avete intelletto d’amore’- v. 49-51),  verso da primeira canção da sua “Vita Nuova”,  demonstrando assim que já havia reconhecido Dante (cf v. 36). Este então lhe responde nos versos seguintes, indicando a importância da sinceridade na nova escola poética de que é representante, a do “dolce stil novo” (v. 57):

E io  a lui: “I’ mi son un che, quando
Amor mi spira, noto, e a quel modo
ch’ e’ ditta dentro vo significando.”    (XXIV, 52-54)

E eu a ele: “Eu sou alguém que, quando/ Amor inspira, anoto, e do modo/ como me dita dentro vou expressando”   

            Bonagiunta da Lucca, que também era poeta, reconhece aí “o nó” (il nodo- v. 55) que o prendia fora dessa nova escola, assim como também prendia outros de seu grupo, mencionados, como o Notário e Guittone (v.56). Segundo Sayers, o notário Giacomo da Lentino e Guittone d’Arezzo pertenciam à chamada “escola siciliana de poesia” da segunda metade do século XIII, influenciada pelos trovadores provençais e ligada, durante certo tempo, à corte da Sicília.  Posteriormente a escola tornou-se artificial e racionalista, inclinando-se a ver no Amor uma paixão maligna. Por outro lado, segundo a mesma autora, o “dolce stil nuovo” era a escola florentina que tinha como modelo Guido Guinicelli de Bolonha. Ela “concebia o Amor, purificado de seus elementos sensuais, como uma força de origem divina inseparável da verdadeira nobreza da alma, sublimadora das paixões” (6).  A essa escola pertencia, além de Dante, seu amigo Guido Cavalcanti, Cino da Pistoia e Lapo Gianni de’ Ricevati.  Bonagiunta reconhece que o fato de seu grupo  não seguir de perto aquele que dita, i. e. o Amor, é o que distingue um estilo do outro...

            Na sequência, toda a gente que ali estava – comparada a um bando de pássaros junto ao Nilo -- apressa o passo, “ligeira, pela magreza e pelo desejo” (e per magrezza e per voler leggera- v.69), ansiosa pela sua ascensão espiritual...  Segue-se outra comparação, a de Forese com um homem cansado, ofegante, que se deixa ultrapassar por essa “grei santa” (santa greggia- v. 73). Ele pergunta a Dante: “Quando te verei de novo?” (“Quando fia ch’io ti riveggia?”- v. 75) ao que o poeta responde:

“Non so”, rispuos’ io lui, “quant’io mi viva;
ma già non fïa il tornar mio tantosto,
ch’io non sia col voler prima a la riva;   (XXIV, 76-78)

Não sei”, lhe respondi, “quanto viverei;/ mas meu retorno não será tão cedo/ que eu não chegue antes com o desejo a estas praias;

            Segue-se então uma crítica de Dante a sua cidade natal, Florença, “que dia a dia se despoja do bem” (di giorno in giorno più di ben si spolpa- v.80) e se arruína. Forese “prevê” (pois em 1300 -- ano em que transcorre a ação do poema -- ainda não ocorrera) a morte de “aquele que é mais culpado” (/.../ quei che più n’ha colpa- v. 82)  disso, que é o seu próprio irmão Corso Donati, não citado diretamente mas identificado pelos comentadores em função do que Forese afirma nos versos que descrevem as circunstâncias de sua morte (“vejo pela cauda dum cavalo arrastado”- vegg’ïo a coda d’una bestia tratto - v. 83 etc). Corso era o líder dos Guelfos Negros e foi a seu pedido que Bonifácio VIII mandou Charles de Valois invadir Florença em 1300, o que provocou a destituição dos Brancos do poder, o partido de Dante, e em consequência o exílio deste. Em 1309, Corso caiu em desgraça pois descobriu-se que conspirava para se assenhorear de Florença, e por isso foi condenado à morte pelos próprios Negros. Ao fugir, morreu nas condições descritas por Dante (7).  Forese afirma que ele irá “para o vale onde não se purga pecado” (inver’ la valle ove mai non si scolpa- v. 84), isto é, o Inferno. 

Morte de Corso Donati (miniatura do séc. XIV)
Assim, cada um dos três irmãos Donati está num reino do Além diferente: Forese no Purgatório, Piccarda no Paraíso e Corso irá para o Inferno.  De acordo com Sinclair, “Os Donati eram uma antiga família de Guelfos nobres, rivais naturais, portanto, da nova burguesia rica da república em crescimento”. Enquanto os Negros eram liderados pelos Donati, os Brancos, “o partido dos rústicos”, o eram pela família Cerchi, de prósperos comerciantes mas de origem humilde (8).  A propósito, a esposa de Dante pertencia à família Donati.

            Concluída sua “predição” a respeito do irmão, Forese separa-se de Dante pois para ele “o tempo é caro/ neste reino” ( /.../ ché ‘l tempo è caro/ in questo regno, /.../- v. 91-92), e ele “perde muito” (/.../ io perdo troppo- v. 92) seguindo o amigo no mesmo passo. Ele tem pressa de escalar a montanha do Purgatório, ou seja, de ascender espiritualmente,  como os companheiros de seu bando que os ultrapassaram. Para descrever sua partida, Dante faz mais uma comparação: Forese se aparta dele

Qual esce alcuna volta di gualoppo
lo cavalier di schiera che cavalchi,
e va per farsi onor del primo intoppo    (XXIV,  94-96)

Como às vezes sai a galope da formação/ o cavaleiro que cavalga contra o inimigo/ e avança para conquistar a honra do primeiro embate

G.Doré- A árvore


             Olhando para ele, que já estava longe, e ao fazer uma curva no monte, Dante se depara com “os ramos carregados de frutos e vivazes/ de uma outra árvore” (/.../ i rami gravidi e vivaci/ d’un altro pomo, /.../- v. 103-104) e vê sombras debaixo dela erguendo as mãos (para colher seus frutos, supõe-se, tendo em vista que estão famintos...). Surge aqui nova comparação, bastante sugestiva. Essas sombras são

quasi bramosi fantolini e vanni

che pregano, e ‘l pregato non responde,
ma, per fare esser ben la voglia acuta,
tien alto lor disio e nol nasconde.   (XXIV, 108-111)

como crianças ansiosas que em vão
rogam, e o rogado não responde,/ mas para aguçar o seu desejo/ mantém alto o objeto desejado, e não o esconde.

            As sombras partem, desiludidas, e os poetas chegam à arvore “que tantos rogos e lágrimas rejeita” (che tanti prieghi e lagrime rifiuta- v. 114). Ouvem então uma voz que os manda passar ao largo dela e informa que ela deriva da árvore “mais no alto, que foi mordida por Eva” (legno è più sù che fu morso da Eva- v. 116). Esta é a “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal” do Paraíso Terrestre situado no topo desta montanha do Purgatório, como se verá ao final da sua escalada.   

            Virgílio, Estácio e Dante atendem à determinação dessa voz misteriosa e avançam, comprimidos, junto à encosta da montanha, a fim de não se aproximarem demais da árvore, situada entre a encosta e a orla do terraço.  

            A voz estranha prossegue citando dois exemplos de gula punida, um extraído da mitologia clássica e outro da Bíblia, como é usual neste poema. O primeiro refere-se aos “malditos/ formados nas nuvens que, empanturrados,/ combateram Teseu com o duplo peito” (humano e equino) (/.../ i maladetti/ nei nuvoli formati, che, satolli,/ Teseo combatter co’ doppi petti- v.121-123). Nessa linguagem indireta, Dante está mencionando os centauros, filhos de Ixíon e uma nuvem, a quem Zeus deu a forma de Hera, desejada por Ixíon. Na festa de casamento do rei dos lapitas, os centauros se embriagaram e tentaram violar a noiva e outras mulheres mas Teseu resgatou a noiva e lutou contra eles, auxiliado pelos lapitas, e os derrotou  (9).

            O segundo exemplo citado de gula punida é extraída do livro dos Juízes (VII- 1-7) e refere-se aos “hebreus que se mostraram moles bebendo” (/.../ li Ebrei ch’al ber si mostrar molli- v.124) e por isso não foram escolhidos para compor o exército de Gedeão que atacaria os madianitas. Ele, seguindo as instruções do Senhor, excluiu aqueles que foram saciar a sede no rio, sem moderação e cautela, ao contrário dos escolhidos. Isso resultou na vitória sobre o inimigo (10).   

            Os três poetas prosseguem em sua marcha, e quando estão longe,  cada um meditando sem dizer palavra” (contemplando ciascun  sanza parola- v.132), ouvem outra voz lhes dizer: “Que andais pensando assim, vós três, sozinhos?” (“Che andate pensando sì voi sol tre?”- v. 133) o que faz Dante estremecer como um potro assustado.  Ele, admirado, afirma:  “e jamais se viu em fornalha/ vidro ou metal tão refulgente e vermelho/ como aquele que vi” (e già mai non si videro in fornace/ vetri o metalli sì lucenti e rossi,/ com’io vidi un /.../- v. 137-139). Trata-se, segundo os comentadores, do Anjo da Temperança, que indica aos poetas o caminho para cima a seguir: “daqui parte quem vai rumo à paz” (quinci si va chi vuole andar per pace- v. 141).

            Dante sente “o vento no meio/ da fronte, e também mover-se a pluma  (tal mi senti’ un vento dar per mezza/ la fronte, e ben senti’ mover la piuma- v.148-149) da asa do Anjo, subentendendo-se aqui que este apaga mais um P de sua testa, o do pecado da gula, cujo terraço ele está prestes a deixar, com os seus guias. Dante sente isso “como a brisa de maio, anunciadora/ de alvores, sopra e recende/ impregnada de erva e de flores( /.../ quale, annunziatrice de li albori,/ l’aura di maggio movesi e olezza,/ tutta impregnata da l’erba e da’ fiori- v. 145-147), mais uma comparação.

            O Canto conclui com as palavras do Anjo chamando de

/.../  “Beati cui alluma
tanto di grazia, che l’amor del gusto
nel petto lor tropo disir non fuma,

esuriendo sempre quanto è giusto!”   (XXIV, 151-154)

 Bem aventurados aqueles/ que são tão iluminados pela graça que o amor do gosto/ em seu peito não estimula desejo excessivo,

tendo sempre fome na medida justa!

            No quinto terraço (cf Canto XXII) a bem-aventurança evangélica lembrada referia-se à sede de justiça. Aqui, no sexto terraço dos gulosos, é a fome que é enfatizada, não por acaso...(11)


NOTAS

(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984-p. 376

(2) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri- “La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini,  2013-  p. 613

(3) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.259.

(4) Id. ib., p.260.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 377

(6) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p. 261

(7) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 246

(8) SINCLAIR, John D.-- “The Divine Comedy of Dante Alighieri” with translation and comment by John D. Sinclair- II. Purgatorio-  New York: Oxford University Press, 1961- p.319

(9) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”, op cit, p. 261

(10) Id. ib, p. 262
(11) Id. ib, p. 262

Amos Nattini