PURGATÓRIO
Canto XXVI
Os três poetas
seguem em frente, um atrás do outro, andando numa estreita faixa do terraço,
entre o fogo que purifica os luxuriosos e o precipício. Virgílio lembra
frequentemente a Dante para tomar cuidado. Os raios do sol, que atingiam Dante
no ombro direito, já clareavam o ocidente, que “mudava de azul celeste para o branco” (mutava
in bianco aspetto di cilestro- v.6), mostrando que a tarde avançava. Mas a sombra do corpo de
Dante “fazia parecer/ mais candente a
chama” (e io facea con l’ombra più rovente/ parer la fiamma;/.../ v.7-8) em que estavam os penitentes, o que atrai a atenção de um
grupo deles, que caminhava no fogo paralelamente aos três poetas. Esses
penitentes diziam entre si: “Aquele não
parece um corpo fictício” (/.../ “Colui non par corpo fittizio”- v. 12). E se aproximavam de
Dante, cuidando entretanto para não sair fora do fogo de sua purgação desejada.
Um deles (que
só no v. 92 se identificará) faz então a pergunta que reflete a curiosidade
também dos outros, após reparar que Dante é o que segue atrás dos dois poetas
latinos (Estácio e Virgílio), certamente em reverência a eles:
Dinne com’è che fai di te parete
al sol, pur come tu non fossi ancora
di morte intrato dentro da la rete. (XXVI, 22-24)
Diz-nos
como é que fazes de ti parede/ ao sol, como se tu não fosses ainda/ apanhado
pela rede da morte.
A rede aqui,
como se vê, é metáfora da morte, que captura todos os seres humanos em suas
malhas, quando chega a hora fatal...
Quando Dante
vai responder essa questão, é surpreendido por um outro bando, que vem pelo mesmo
“caminho aceso” (cammino
acceso- v. 28)
em sentido contrário ao do primeiro. E os integrantes dos dois grupos, sem se
deter, cumprimentam-se, beijando-se mutuamente,
così per entro loro schiera bruna
s’ammusa l’una con l’altra formica,
s’ammusa l’una con l’altra formica,
forse a spïar lor via e lor fortuna. (XXVI,
34-36)
do
mesmo modo, em sua fileira escura,/ cada formiga toca o focinho da outra,/
talvez para indagar sobre a via ou a fortuna.
Dante assim
expressa, surpreendendo-nos com essa comparação curiosa, o encontro rápido dos
dois bandos. Mas “logo que cessa a
acolhida amiga” (Tosto che parton l’accoglienza amica- v. 37), cada sombra do grupo
recém-chegado grita bem alto: “Sodoma e
Gomorra” (“Soddoma e Gomorra”- v.40) enquanto as sombras do outro grupo gritam “Na vaca entra Pasífae/ para que o tourinho à
sua luxúria corra” (/.../ “Ne la vacca entra Pasife,/ perché ‘l
torello a sua lussuria corra.”- v. 41-42). Como estamos no
terraço dos luxuriosos, os do primeiro grupo -- que lembram as duas cidades bíblicas
destruídas por Deus pelos seus costumes sexuais pervertidos envolvendo o mesmo
sexo -- são associados aos sodomitas, enquanto os do outro grupo o são a
práticas sexuais entre sexos diferentes, porém exageradas, o que os reduz à
condição animal, como mostra a sua menção a Pasífae. Essa personagem da
mitologia clássica era esposa de Minos, rei de Creta, e segundo a lenda entrou numa vaca artificial para ser montada
por um tourinho de quem gostava. Dessa relação nasceria o Minotauro, metade touro
e metade homem (1).
Na sequência,
os dois grupos se separam. Dante os compara aos grous, que em parte vão para o
Norte (para as míticas montanhas Rife) fugindo do calor, e em parte vão para o
Sul (para os areais africanos), fugindo do frio.
Assim, “uma gente vai e outra vem” (l’una
gente sen va, l’altra sen vene- v. 46), retornando, em lágrimas, “aos
primeiros cantos” (a’ primi canti- v.47) (i.e. ao “Summae Deus clementïae”, como vimos no
canto XXV) e aos gritos apropriados à sua condição. Aproximam-se então de Dante
aqueles mesmos espíritos que haviam lhe formulado uma pergunta e estavam “atentos a escutar em seus semblantes” (attenti
ad ascoltar ne’ lor sembianti- v. 51).
Dante então
responde a essas almas, que deverão ainda alcançar “o estado de paz” (di pace stato- v.54), dizendo que de fato ele
está lá com seu próprio corpo:
non son
rimase acerbe né mature
le
membra mie di là, ma son qui meco
col
sangue suo e con le sue giunture. (XXVI, 55-57)
não
ficou no mundo de lá, nem jovem nem maduro,/ o corpo meu, mas está aqui comigo/
com seu sangue e suas juntas.
Ele avança em sua
jornada “para não ser mais cego” (/.../ per non
esser più cieco- v.58) por graça de uma dama do céu (Beatriz?, a Virgem Maria?). Conclui
sua fala fazendo por sua vez uma pergunta:
ditemi, acciò ch’ancor carte ne verghi,
chi
siete voi, e chi è quella turba
che se ne va di retro a’ vostri
terghi. (XXVI, 64-66)
dizei-me,
a fim de que eu ainda o escreva,/ quem sois vós, e quem é aquela turba/ que vai
em direção oposta à vossa.
Aqui Dante faz esta outra comparação: as sombras ficam tão admiradas
com o que ele lhes diz
Non altrimenti stupido si turba
lo montanaro, e rimirando ammuta,
quando rozzo e salvatico s’inurba, (XXVI, 67-69)
Como
espantado fica/ o montanhês, olhando emudecido,/ quando, rústico e selvagem,
vem para a cidade,
Então, prossegue
Dante, “recomeçou aquele que antes me
interrogara” (ricominciò colei che pria m’inchiese- v. 74), o qual identifica o
grupo que vai em direção oposta a eles (aquele que gritou “Sodoma”) como
homossexuais, pois essa gente “incorreu
no pecado pelo qual já César, em triunfo,/ ouviu chamarem ‘Rainha’ contra si”
(/.../ offese/ di ciò per che già Cesar, triunfando,/ ‘Regina’
contra sé chiamar s’intese- v.76-78). Segundo os comentadores, Suetônio afirma que César teve
relações com Nicomedes, rei da Bitínia conquistada, razão por que na
comemoração de uma vitória, seus subordinados em festa, zombeteiramente, chamaram-no
de Rainha da Bitínia. E cantaram versos satíricos, dizendo que assim como César
subjugou a Gália, assim Nicomedes subjugou César (2). O espírito vai identificar também o seu
próprio grupo como de heterossexuais, mas que não observaram a lei humana, “seguindo como bestas o apetite” (seguendo
come bestie l’appetito- v. 84). Por isso, gritam o nome de Pasífae. Ambos os grupos, ao darem
esses gritos com referências simbólicas ao seu pecado, censuram a si mesmos e
se envergonham dele, “e com vergonha
aumentam o ardor” (e aiutan l’arsura vergognando- v. 81) de sua purificação
pelo fogo.
Amos Nattini |
O espírito diz
a Dante que não tem condições de dar os nomes dos outros que estão ali. Mas
pelo menos identifica-se a si mesmo:
Farotti ben di me volere scemo:
son
Guido Guinizzelli, e già mi purgo
per ben
dolermi prima ch’a lo stremo. (XXVI, 91-93)
Satisfarei
teu desejo pelo menos quanto a mim:/ sou Guido Guinizzelli, e já me purgo/
porque me arrependi antes da hora
extrema.
Ao ouvir isso,
Dante faz outra comparação, em versos que mencionam Licurgo e dois filhos que reveem
a mãe. Pelos comentadores ficamos sabendo que, segundo a “Tebaida” de Estácio, o
rei Licurgo confiou um filho seu à escrava Hipsípile, que o deixou só por um
breve período para indicar aos sete heróis de Tebas a localização de uma fonte.
Ao retornar, a criança estava morta, picada por uma serpente. Hipsípile foi
condenada à morte por causa disso, mas no momento da sua execução, seus dois
filhos correram para abraçá-la e sua vida acabou sendo poupada.(3) Dante se
compara aos filhos de Hipsípile na predisposição em correr para abraçar Guido
Guinizzelli, poeta que admira, “pai/ meu
e de outros melhores que eu/ que já usaram doces e graciosas rimas de amor” (/.../
padre/ mio e de li altri miei miglior che mai/ rime d’amor usar dolci e
leggiadre- v. 97-99). Mas ele não chega a efetivamente abraçar Guido, poeta de
Bolonha falecido talvez em 1276, criador do “dolce stil nuovo” em língua
materna no qual se destacou Dante, Guido Cavalcanti e alguns outros poetas (4).
Dante contenta-se apenas em, andando, contemplá-lo à distância, “sem me aproximar mais, por causa do fogo”
(né, per lo foco, in là più m’ appressai- v. 102). Só demonstra como se
sente por essa contemplação prolongada, “sem
ouvir nem falar, pensativo” (e sanza udire e dir pensoso
andai- v. 100). Mas logo adiante, respondendo a Guido, Dante
diz ao poeta que a razão de sua admiração é
/.../ “Li dolci detti vostri,
che, quanto durerà l’uso moderno,
faranno cari ancora i loro incostri.” (XXVI, 112-114)
/.../ “Os
doces ditos vossos,/ que, enquanto durar o uso moderno,/ farão ainda cara a sua
tinta”
Assim, seus versos
serão caros enquanto se escrever na língua vulgar. “Sua tinta” aqui está por “seus
escritos”, uma metonímia...
A isso, Guido
Guinizzelli aponta com o dedo um espírito mais adiante, afirmando que ele “foi melhor artífice do falar moderno” (fu
miglior fabbro del parlar materno- v. 117). Trata-se, como se verá logo a seguir, do poeta provençal
Arnaut Daniel. Guido ainda faz esta crítica a terceiros: “deixa que os estultos digam/ que o de Limoges lhe é superior” (/.../ e
lascia dir li stolti/ che quel di Lemosì credon ch’ avanzi- v. 119-120), pois eles “Olham mais a fama do que a verdade” (A voce
più ch’al ver drizzan li volti- v. 121). “Assim fizeram muitos
antigos com Guittone” (Così fer molti antichi di Guittone- v. 124). O de Limoges, segundo
os comentadores, é o poeta provençal Giraut de Bornelh, falecido em ca. 1220,
de estilo simples e popular; e o outro poeta citado é Guido d’Arezzo, chamado
Guittone, nascido em ca.1250, um erudito mas de poesia artificial e desgraciosa
(5).
Guido Guinizzelli
encerra sua fala fazendo este pedido a Dante, após usar a metáfora do claustro
para o Paraíso:
Or se tu hai sì ampio privilegio,
che licito ti sai l’andare al chiostro
nel quale è Cristo abate del collegio,
falli
per me un dir d’un paternostro,
quanto bisogna a noi di questo mondo,
quanto bisogna a noi di questo mondo,
dove poter peccar non è più nostro. (XXVI, 127-132)
Se tens
agora tão amplo privilégio/ de poder ir até o claustro/ no qual é Cristo abade
do colégio,
recita
por mim, a Ele, um “pater nostro”,/ na parte que é necessária a nós neste mundo,/
onde o poder de pecar não é mais nosso.
Depois disso,
Guido Guinizzelli “desapareceu dentro do
fogo/ como na água o peixe vai ao fundo” (/.../ disparve per lo
foco,/ comme per l’acqua il pesce andando al fondo- v. 134-135), outra comparação.
Arnaut Daniel (min. séc. XIII) |
Em seguida, Dante
se aproxima do espírito que antes fora indicado por Guido, dizendo-lhe que ao
seu nome o seu desejo “preparava uma
acolhida cortês” (apparecchiava grazïoso loco- v. 138), ou seja, pede para
que ele decline seu nome. E esse espírito, nos próximos oito versos (v.
140-147), manifesta-se em sua própria língua, o provençal. Afirma então que atenderá
com prazer sua demanda. Ele é Arnaut, que lamenta a loucura passada e espera,
contente, a alegria futura. Conclui pedindo a Dante, que se dirige ao alto da
escada, para lembrar-se dele no momento oportuno.
E Arnaut Daniel
sai de cena. Dante assim expressa isso, no último verso do canto: “Depois, escondeu-se no fogo que os purifica”
(Poi s’ascose nel foco che li affina- v.148).
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984-p. 384
(2) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics,
2009- p.270. Cf. também SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy- II. Purgatory”. Translated by Dorothy L.
Sayers. Penguin Classics, 1963, p. 277.
(3) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p.385
(4) SAYERS,
Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-
II. Purgatory”, op. cit., p. 278.
(5) Id.
ib, p. 279.
Salvador Dalí |