quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Canto VII

PURGATÓRIO


Canto VII 


            Após Virgílio dizer quem era, o trovador Sordello -- que já se entusiasmara com o recém-chegado pelo simples fato dele também ser de Mântua -- maravilha-se agora por estar na presença de um tão grande poeta. E o saúda nestes termos:

“O gloria di Latin”, disse, “per cui
mostrò ciò che potea la lingua nostra,
o pregio etterno del loco ond’io fui,   (VII, 16-18)

“Ó glória dos latinos”, disse, “por quem/ a língua nossa mostrou tudo o que podia,/ ó eterna honra da minha terra,”    

G.Doré- Sordello e Virgílio

            Sordello quer saber então de qual círculo do Inferno ele vem. Virgílio explica que, por um “poder do céu” (virtù del ciel- v. 24), percorreu todos os círculos, mas sua origem é o primeiro deles, o Limbo, assim caracterizado:

Luogo è là giù non tristo di martìri,
ma di tenebre solo, ove i lamenti
non suonan come guai, ma son sospiri.  (VII, 28-30)

Há um lugar lá embaixo, não triste pelos martírios,/ mas pelas sombras somente, onde os lamentos/ não soam como ais mas como suspiros.

            Para o Limbo foram todos os que morreram antes da vinda de Cristo, o qual, conforme a doutrina católica, abriu as portas do Céu para os seres humanos, fechadas pelo pecado original.  Para lá vão os pagãos, inclusive as crianças inocentes.  Diz Virgílio:

Quivi sto io coi pargoli innocenti
dai denti morse de la morte avante
che fosser de l’umana colpa essenti  (VII, 31-33)

Ali estou eu com crianças inocentes/ mordidas pelos dentes da morte antes/ que fossem da humana culpa isentos”

            Note-se a metáfora associada à morte, considerada implicitamente como uma fera, pois tem dentes hostis.

            Quando Cristo morreu levou consigo para o Paraíso os que estavam no Limbo. Mas Virgílio, que estava lá há pouco mais de 50 anos (uma vez que  morreu em 19 a.C., no reinado do primeiro imperador romano, Augusto) (1), não teve essa sorte:

Io son Virgilio; e per null’ altro rio
lo ciel perdei che per non aver fe’.  (VII, 7-8)

Eu sou Virgílio; e por nenhuma outra falta/ salvo a de não ter fé perdi o céu.

            Na resposta a Sordello, Virgílio diz:

Non per far, ma per non fare ho perduto
a veder l’alto Sol che tu disiri
e che fu tardi per me conosciuto. (VII, 25-27)

Não por fazer mas por não fazer perdi/ a visão do alto Sol que tu desejas / e que tarde foi por mim conhecido.

            Deus está assim associado à imagem do Sol, ou da luz. Já vimos há pouco que na caracterização do Limbo o autor da “Eneida” diz que ali é triste não porque haja tormentos mas pelas “sombras”, i.e., pela ausência da luz ou da visão de Deus.  

S.Dalí- Sordello

            Virgílio pede a Sordello que lhe indique o caminho para chegar mais depressa “lá onde o Purgatório verdadeiramente começa” (là dove purgatorio ha dritto inizio- v.39). Eles ainda estão, como se vê, no Antepurgatório.  Sordello lhe informa que não há um lugar fixo para os espíritos que no Purgatório expiam seus pecados. Podem (durante o dia) mover-se à vontade. E oferece-se para ser seu guia. Mas observa que não é possível subir à noite (v.44), quando o Sol se põe. Essa lei do Purgatório reforça a associação da imagem antes referida. A purificação dos espíritos -- expressa alegoricamente pela ascensão na montanha -- só é possível com a luz do Sol, com a fé em Deus, ou melhor, com as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade). Apenas com as quatro virtudes cardeais (prudência, justiça, coragem e temperança), possuídas pelos pagãos justos, não é possível chegar ao Paraíso. Virgílio se deu conta disso tarde demais...

            Como o dia já declina, Sordello propõe que eles passem a noite, descansando, num local próximo, onde há almas apartadas que será interessante conhecer.  Seguindo por um caminho irregular, de uma saliência elevada da montanha eles avistam um vale de beleza estranha, cuja cor das flores e grama supera o conjunto multicolorido de alguns refinados recursos naturais de nosso mundo:  

Oro e argento fine, cocco e biacca,
indaco, legno lucido e sereno,
fresco smeraldo in l’ora che si fiacca,

da l’erba e da li fior, dentr’ a quel seno
posti, ciascun saria di color vinto,
come dal suo maggiore è vinto il meno.  (VII, 73-78)

Ouro e prata fina, carmim e alvaiade,/ índigo, madeira clara e resplandecente,/ fresca esmeralda na hora em que se parte,
se colocados naquele vale seriam todos vencidos/ em sua cor pelas flores e a grama,/ como o menor é vencido pelo maior.           

            A esses versos relacionados ao sentido da visão, seguem-se outros, citados abaixo, que se referem aos do olfato e da audição, pois mencionam o perfume “único e desconhecido” do vale, derivado “da suavidade de mil odores”, e o “Salve, Regina” cantado pelos espíritos que ali estão. Assim, nos versos 73-84, Dante busca evocar três dos nossos cinco sentidos para melhor caracterizar essa região peculiar, estranha, do segundo reino do mundo dos mortos.  

Non avea pur natura ivi dipinto,
ma di soavità di milli odori
vi facea uno incognito e indistinto.

Salve , Regina” in sul verde e ‘n su’ fiori
quindi seder cantando anime vidi,
che per la valle  non parean di fuori.   (VII, 79-84)

A natureza ali não apenas pintara/ mas da suavidade de mil odores/ criava um outro (odor),  desconhecido e indistinto.
Sobre o verde e sobre as flores/ vi espíritos sentados cantando “Salve, Regina”,/ que não eram visíveis fora do vale.

G. Doré-  O vale
            Nesse vale estão, como se deduz pelas pessoas citadas nos versos seguintes, os príncipes e reis que só se arrependeram no final da vida, dedicando toda ela a preocupações outras, que não as de sua religião. São eles:

--o imperador Rodolfo de Absburgo, que “teria podido sanar as chagas que matam a Itália” (sanar le piaghe c’hanno Italia morta- v. 95);

-o rei da Boêmia Ottokar, pai de Venceslau: aquele, “nos cueiros/ valia mais que Venceslau, seu filho/ barbudo, que se nutre de luxúria e ócio” (/.../ ne le fasce/ fu meglio assai che Vincislao suo figlio/ barbuto, cui lussuria e ozio pasce- v. 100-102);

Rodolfo de Absburgo

Ottokar da Boêmia
--Felipe III o Audaz (ou o “de nariz pequeno”, o nasetto- v. 103) e Henrique de Navarra. O primeiro “morreu fugindo e deflorando o lírio” (morì fuggendo e disfiorando il giglio- v. 105). O lírio simboliza a França. Dante se refere aqui à sua derrota fragorosa na guerra que empreendeu contra Pedro III de Aragão (2).  Esses dois, Felipe e Henrique, “Pai e sogro são da peste de França” (Padre e suocero son del mal di Francia- v. 109), i.e. pai e sogro de Felipe IV o Belo (1268-1314). Este monarca é assim caracterizado porque  Dante não o perdoa por ser responsável pela morte de um papa (ainda que criticado por ele, Bonifácio VIII) e tutelar outro, Clemente V, tão sob seu controle que transferiu a sede do papado para Avignon em 1309, aí permanecendo até 1377 (3).

            A seguir são citados Pedro III de Aragão e  Charles I d’ Anjou, sendo que  o primeiro “cingiu a corda de todas as virtudes” (d’ogne valor portò cinta la corda- v. 114). Esses dois, que foram inimigos em vida, no Purgatório cantam juntos o “Salve, Regina”. Ocorreu o mesmo com Rodolfo e Ottokar, citados acima. Ottokar morreu em batalha contra o primeiro, por não concordar com que ele assumisse o Sacro Império Germânico-Romano. No Purgatório esses ex-inimigos compartilham a mesma esperança, vivendo em harmonia e cantando juntos aquele hino religioso em que os devotos, neste “vale de lágrimas” (mencionado no hino, uma associação ao local onde estão), pedem a intercessão de Maria para auxiliá-los a ganhar o Paraíso.

            São citados ainda o jovem Alfonso III de Aragão e seus irmãos Jaime II rei de Aragão e Frederico II rei da Sicília, filhos de Pedro III de Aragão. Se aquele jovem, que morreu cedo, fosse (ainda) rei “bem andava o valor de vaso em vaso” (ben andava il valor di vaso in vaso- v. 117) , o que não se pode dizer de seus irmãos.  Dante, embora aceite a doutrina da origem divina dos reis, não acha que os descendentes destes herdem necessariamente as suas qualidades. Estas não são distribuídas de modo igual por Deus:

Rade volte risurge per li rami
l’umana probitate; e questo vole
quei che la dà, perché da lui si chiami.  (VII, 121-123)

Raras vezes renasce pelos ramos/ a humana probidade; e isto quer/ Quem a dá, para que se lhe peça.

            Os últimos governantes citados são:

--Henrique III de Inglaterra -“este tem em seus ramos melhor rebento” (questi ha ne’ rami suoi migliore uscita- v.132)  pois seu filho Eduardo I é melhor governante que ele (4), ao contrário dos casos antes apontados, em que “a planta é menor que sua semente” (Tant’ è del seme suo minor la pianta,/ quanto /.../ v. 127-128) (cf. o efeito de paradoxo que Dante explora aqui);

--Guilherme VII, marquês de Monferrato. Ao tentar sufocar uma rebelião em Alessandia, na região do Piemonte, Guilherme foi preso, e assim mantido durante 17 meses, até morrer em 1292.  Seu filho, numa guerra de vingança mal sucedida contra Alessandria,  envolveu Monferrato e Canavese (5). Por isso, ele as faz (ainda) chorar, conforme o último verso do Canto (v. 136). 


NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.332.

(2) Id. ib, p. 333

(3) Id. ib, p. 333. Cf também CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 68-69.   

(4) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”, op cit, p. 70.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 334.


Amos Nattini

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Canto VI

PURGATÓRIO


Canto VI 


            Este Canto abre com uma imagem curiosa, a dos jogadores de zara, um jogo medieval apoiado no lançamento de dados. Quando acaba, todos se reúnem em torno do vitorioso, pressionando-o para obter dele algum dinheiro, enquanto o perdedor fica sozinho num canto, refazendo todos os lances e aprendendo a lição. O poeta se compara ao vitorioso, que só se livra da pressão dos que o rodeiam atendendo à sua expectativa. Também ele só se livrará dos espíritos que o pressionam fazendo-lhes promessas, as de recomendá-los aos vivos, em nosso mundo, para que façam preces em sua intenção. Como ele diz mais adiante, explicitamente.

Come libero fue da tutte quante
quell’ ombre che pregar pur ch’altri prieghi,
sì che s’avacci lor divenir sante,

io cominciai: /.../    (VI, 25-28)

Logo que fiquei livre daquelas sombras/ que pediam as preces alheias/ para apressar a sua santificação,/

comecei: /.../

Amos Nattini
             O poeta pergunta a Virgílio sobre uma passagem da “Eneida” em que os deuses parecem inflexíveis, sem se dobrar às súplicas dos homens, negando assim que “a oração dobre decreto do céu” (che decreto del ciel orazion pieghi- v. 30), como acreditam todos os que estão ali, purgando as suas faltas. Mas Virgílio lhe diz que “a esperança deles não é ilusória” (e la speranza di costor non falla- v. 35), deixando implícito que isso só valia para o paganismo, a época anterior à vinda de Cristo. Mas Beatriz lhe esclarecerá melhor essa questão, diz ele, ela “que será lume entre a verdade e o teu intelecto” (che lume fia tra ‘l vero e lo ’ntelletto- v. 45).   

            Antes disso, porém, Dante cita meia dúzia daqueles espíritos que o pressionavam, os quais são referidos rapidamente, em poucas palavras. Na época, deviam ser facilmente identificados pelos leitores/ouvintes do poema. Hoje precisamos das notas dos comentadores para saber quem eram eles. Todos tiveram morte violenta: 1) um juiz aretino assassinado pelo bandido Ghino di Tacco porque condenou um parente deste;  2) um outro aretino que se afogou no Arno, perseguindo os inimigos, ou sendo perseguido por eles (o verso é ambíguo); 3) Federigo Novello, citado nominalmente, morto pelos guelfos de Arezzo; 4) um nativo de Pisa, assassinado pelo Conde Ugolino (personagem do Canto XXIII do “Inferno”), perdoado pelo pai de Federigo, Marzucco, que havia se tornado franciscano;  5) o Conde Orso, morto pelo primo, em decorrência da luta que travavam os pais de ambos; e finalmente 6) Pier de la Broccia, também citado nominalmente, médico e ecônomo de Frederico III de França, com quem caiu em desgraça, e acabou sendo enforcado, por causa das intrigas da  segunda esposa do rei, a “dama de Brabante” (1).  Aliás, quanto a esta, que ainda estava viva em 1300 (ano em que se passa a ação da “Comédia”), Dante a adverte nestes termos, pois ela corre o risco de ir para o Inferno:  

Pier da la Broccia dico; e qui proveggia,
mentr’ è di qua, la donna di Brabante,
sì che però non sia di peggior greggia. (VI, 22-24)   

Era Pier de la Broccia; e que/ a dama de Brabante, enquanto estiver aqui (no mundo dos vivos),  providencie/ para que não acabe em pior grei!

            Prosseguindo em sua jornada, quando o movimento do Sol indica que a tarde avança, os dois poetas avistam uma alma sozinha, que olha para eles. Diz Virgílio: “ela nos indicará a via mais curta” (quella ne ‘nsegnerà la via più tosta- v.60). Dante compara essa alma -- que vai se identificar como Sordello no v. 74 (um famoso trovador do século XIII, que escreveu em provençal) (2) -- a um leão em repouso:

Venimmo a lei: o anima lombarda,
come ti stavi altera e disdegnosa
e nel mover de li occhi onesta e tarda!

Ella non ci dicëa alcuna cosa,
ma lasciavane gir, solo sguardando
a guisa di leon quando si posa.  (VI, 61-66)

Fomos até ela: ó alma lombarda,/ como tu estavas altiva e desdenhosa/ e no mover dos olhos digna e lenta!/
Ela não nos disse nada./ Deixou-nos passar, só nos olhando/ à guisa de leão quando repousa. 

            Quando Sordello fica sabendo que Virgílio é de Mântua, ele se ergue no mesmo instante para se confraternizar com o conterrâneo: “O mantuano, eu sou Sordello, da tua terra!” (O Mantoano, io son Sordello/ de la tua terra!”- v.74-75).  



Cesare  Zocchi- Dante e Virgílio encontram Sordello, 1896, Trento

Logo na sequência, em contraste a essa manifestação de entusiasmo entre os dois pelo simples fato de serem da mesma terra, Dante-autor inicia seu longo discurso crítico à Itália de seu tempo, cujos cidadãos viviam em conflito permanente, como seres irracionais, pois “um ao outro rói(/../.e l’un l’altro si rode- v.83). Sua crítica à Itália e depois a Florença estende-se até o final do Canto. A partir do v. 76 ele passa a dirigir-se diretamente à Itália, chamada sucessivamente de “albergue da dor” (di dolore ostello- v.76), “navio sem piloto em grande tempestade” (nave sanza nocchiere in gran tempesta- v.77), “senhora não de províncias mas de bordel” (non donna di provincie, ma bordello!- v.78),  animal rebelde “por não ser corrigido pelas esporas” (per non esser corretta da li sproni- v.95)  de um César que deveria sentar na sela vazia, carente de um imperador. Dante lembra aqui Justiniano, o imperador romano do Oriente, do séc. VI  e cristão, que codificou as leis do Império:

Che val perché ti racconciasse il freno
Iustinïano , se la sella è vòta?
Sanz’esso fora la vergogna meno.  (VI, 88-90)

De que valeu Justiniano consertar teu freio/ se a sela está vazia?/ Sem ele a vergonha seria menor.  

            Mas a Itália estava agora subordinada ao Sacro Império Germânico-Romano, cujo imperador, negligente, não se interessava por ela. Essa é a essência da crítica do poeta a “Alberto tedesco” (v.97), que também se aplicava ao pai deste (Rodolfo). Ambos (pertencentes à dinastia Habsburgo)  abandonaram o “jardim do Império” (giardin de lo ‘mperio- v. 105) à sua própria sorte, mais preocupados com outros territórios sob seu domínio. Temos aqui mais uma das diversas imagens (metáforas) que Dante evoca para caracterizar a Itália “serva” e “mísera” (v. 76 e 85) de seu tempo, cuja situação anárquica ele quer ver mudada pela ação efetiva de um imperador. Dante crítica também a gente que devia “ser devota”, i.e. a Igreja, por imiscuir-se em assuntos temporais, sem atender ao que “Deus ordena” (v.93), vale dizer, sem observar o princípio evangélico (Marcos, 12: 16-17) da separação entre os poderes temporais e espirituais (“Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”).  

            Nos versos seguintes (a partir do v. 106), iniciados por anáforas (repetição de “vem ver” – viene a veder -- três vezes) o poeta dirige-se ao imperador Alberto (“ó homem negligente”- v.107;  “ó cruel”-v.109). Convida-o a vir para ver representantes de diversas famílias aí citadas em luta permanente, pois são guelfas e gibelinas segundo os comentadores; convida-o ainda a vir curar os males de seus nobres, a ver como está sua Roma, a ver como o povo se ama (cf. a ironia, que será explorada mais adiante), convida-o a vir para se envergonhar da situação que encontrará.  Na referência a Roma, ela é assim personalizada:

Vieni a veder la tua Roma che piagne
vedova e sola, e dì e notte chiama:
“Cesare mio, perché non m’accompagne?”  (VI, 112-114)

Vem ver a tua Roma que chora,/ viúva e só, que dia e noite chama:/ “Ó César meu, por que não estás aqui comigo?”  

            Dada a situação crítica que mostrou, o poeta pergunta a Deus/ Cristo (invocado pela expressão “ó sumo Jove”- o sommo Giove- v. 118) se ele desviou  “os justos olhos” (li giusti occhi- v. 120) de sua terra. Ou então esse é mais um dos mistérios que mostram os limites da razão humana, cuja insuficiência é reconhecida pelo poeta florentino:

O è preparazion che ne l’abisso
del tuo consiglio fai per alcun bene
in tutto de l’accorger nostro scisso?  (VI, 121-123)

Ou preparas, no abismo/ de tua mente, algum bem,/ em tudo distante da nossa compreensão?  

            A partir do v. 127, até o fim do Canto, Dante volta-se para a sua  Florença natal, usando intensamente a ironia, bem evidente nas observações abaixo, contidas nos versos citados:

-- a crítica antes feita à Itália não diz respeito a ela:
Fiorenza mia, ben puoi esser contenta/ di questa digression che non ti tocca- v. 127-128
Florença minha, bem podes ficar contente/ por esta digressão, que não te toca

-- seu povo tem a justiça no coração, na boca, mas é cauteloso em colocá-la  em prática:
Molti han giustizia in cuore, e tardi scocca/ per non venir sanza consiglio a l’arco; v. 130-132)
Muitos têm a justiça no coração, e são lentos/ para não se precipitarem em disparar o arco;

-- seu povo é solícito e assume logo encargos públicos (na realidade, seu povo é ávido pelo poder):
ma il popol tuo solicito risponde/ sanza chiamare, e grida: “I’ mi sobbarco!”- v. 134-135
ma o povo teu, solícito, responde/ sem ser chamado, e grita: “Eu assumo!”

-- é rica, vive em paz e é sensata (é rica mas não vive em paz nem é sensata):
--tu ricca, tu con pace e tu con senno!- v. 137
tu rica, tu com paz e tu com bom senso!

-- o progresso de Florença quanto ao bem viver é superior ao de Atenas e Esparta, que foram tão civilizadas:
Atene e Lacedemona, che fenno/ l’antiche leggi e furon sì civili,/ fecero al viver bene un picciol cenno/ verso di te /.../ - v. 139-142
Atenas e Esparta, que promulgaram/ as antigas leis e foram tão civilizadas,/ fizeram quanto ao bem viver um progresso pequeno/ comparado ao teu /.../   

            Nos últimos versos, Florença -- que apesar de sua prosperidade, sofre dos males antes apontados -- é comparada a uma mulher rica (cf seu “leito de plumas”- v. 150) (3) mas doente, que se revira na cama, para atenuar a dor desses males:

E se ben ti ricordi e vedi lume,
vedrai te somigliante a quella inferma
che non può trovar posa in su le piume,

ma con dar volta suo dolore scherma.  (VI, 148-151)

E se bem te recordas e vês claro/ verás a ti semelhante àquela enferma/ que não encontra repouso em seu leito de plumas/

e se defende da dor mudando de posição.



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p.329.

(2) Id. ibid, p.330  

(3) CIARDI, John- “Dante- The Purgatorio”. Signet Classics, 2009- p. 59.    



John Flaxman- Encontro com Sordello 

Salvador Dalí



terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Canto V

PURGATÓRIO


Canto V 

           
            Dante está subindo a montanha, seguindo Virgílio, quando ouve uma das almas que deixaram para trás comunicar às outras que ele faz sombra, o que causa nelas admiração.  Virgílio o censura por desacelerar o passo e preocupar-se com isso. Só deve preocupar-se com seu objetivo último, que é avançar na sua jornada para o alto. Faz então esta comparação:

Vien dietro a me, e lascia dir le genti:
sta come torre ferma, che non crolla
già mai la cima per soffiar di venti;  (V, 13-15)

Segue-me e deixa falar as gentes:/ mantém-te como torre firme, que não balança/ jamais o cimo pelo soprar dos ventos;


G.Doré- Os arrependidos tardiamente

            Mais adiante, um grupo de espíritos avança, entoando o “Miserere”  (identificado como o Salmo 50). Estes também se admiram com o fato de Dante possuir sombra, i.e. de possuir um corpo material, de estar vivo. Então “mudaram seu canto para um “oh!” longo e rouco” (mutar lor canto in un “oh!” lungo e roco”- v.27). Dois deles correm ao encontro dos poetas e pedem que estes informem sobre sua condição. Virgílio lhes diz então que o corpo de Dante “é vera carne” , num terceto em que o som duro dos k é suavizado pelo dos v:

E ‘l mio maestro: “Voi potete andarne
e ritrarre a color che vi mandaro
che ‘l color di costui è vera carne”. (V, 31-33)

E o meu mestre: “Podeis retornar/ e dizer a quem vos enviou/ que o corpo deste aqui é vera carne.

            E aconselha: “honra lhe façam, pode lhes ser bom” (fàccianli onore, ed esser può lor caro- v. 36), querendo dizer com isso que Dante, ao retornar ao mundo dos vivos, poderá informar que eles estão no Purgatório e assim obter preces em sua intenção. Dante compara a rapidez com que essas duas sombras “mensageiras” (v. 28) retornam para avisar as outras a “vapores inflamados” (vapori accesi- v. 37) fendendo o céu sereno ou as nuvens de verão (v. 37- 40), estrelas cadentes ou relâmpagos. Compara também o retorno imediato de todas elas a “uma fileira de soldados a correr” (come schiera che scorre sanza freno- v. 42), que no original italiano é mais um dos inúmeros versos que joga com a sonoridade dos fonemas, no caso alternando sons sibilantes (s, z) e duros (k)  para a obtenção do ritmo ou do efeito estético desejado. Virgílio previne Dante que esse bando vem para lhe suplicar recomendação no mundo dos vivos. Ele pode escutá-los, mas não deve parar por causa disso (però pur va, e in andando ascolta- v. 45).

            Eles então lamentam que Dante não se detenha para ouvi-los. Pelo que dizem, ficamos sabendo que os integrantes desse grupo tiveram morte violenta; sua vida foi pecaminosa, mas na hora final se arrependeram e perdoaram quem lhes fez mal (v.52-55).  Dante ouve-os e compromete-se a fazer o que estiver ao seu alcance por esses “espíritos bem nascidos”  (spiriti ben nati- v.60), pois um dia chegarão ao Paraíso.

            Na sequência três deles se manifestam. E suas palavras se estendem até o último verso do Canto.

            O primeiro a falar não diz o seu nome, apenas cita fatos de sua vida, o que segundo os comentaristas permitiria que fosse facilmente identificado  pelos contemporâneos. Ele deseja que Dante, se alguma vez vir

/.../ quel paese
che siede tra Romagna e quel di Carlo,

che tu mi sie di tuoi prieghi cortese
in Fano, sì che ben per me s’adori
pur ch’i’ possa purgar le gravi offese. (V, 68-72)

/.../ aquela terra/ situada entre a Romagna e o reino de Carlos/ que tu me sejas cortês pedindo/ em Fano preces por mim/ para que eu possa purgar graves pecados.

            O reino de Carlos é o de Nápoles, na época governado por Charles d’Anjou, e a terra entre tal reino e a Romagna é Fano (1). Note-se a aliteração em p do v.72, consoante que também ocorre nos versos anteriores a este, talvez para enfatizar o purgar, que é o anseio de todos que ali estão. 

            A seguir, essa alma fala de suas “profundas feridas” (v.73), “feitas no meio dos filhos de Antenor” (fatti mi fuoro in grembo a li Antenori- v. 75), isto é, em Pádua, “lá onde eu pensava estar mais seguro” (là dov’io più sicuro esser credea- v. 76). Pádua foi fundada, de acordo com a lenda, por esse troiano que traiu sua cidade em favor dos interesses gregos (por isso Dante chama uma das quatro divisões do mais baixo círculo do Inferno, onde estão os traidores da pátria, de “Antenora”). Naquela região, em Orïaco, num pântano para onde fugira, ele foi morto por alguém a mandado de seu inimigo, “aquele de Este” (quel da Esti- v.77). Trata-se de Azzo VIII d’Este, conforme os comentaristas, que identificam por esses dados a pessoa que fala como Jacopo del Cassero, “podestà” ou principal magistrado de Bolonha. Note-se que Dante indica quem é esse primeiro espírito a se manifestar apenas pela menção à sua terra natal, ao local e circunstâncias de sua morte e ao inimigo dele, autor intelectual do crime.

            O segundo a falar é identificado pelo poeta, no v. 88: trata-se de Bonconte de Montefeltro. Sua narrativa é extensa, abrange os versos 85 a 129.

G.Doré- Buonconte da Montefeltro

          Ele pede a intercessão de Dante junto aos seus conterrâneos, em Fano, pois Giovanna (sua esposa) e outros não se preocupam com ele. Esse era um líder militar gibelino, que comandou os aretinos contra os guelfos de Florença na batalha de Campaldino em 1289. Dante, que quando jovem (aos 24 anos) também participou dessa batalha, está intrigado com um mistério, que aparentemente persistiu ao longo do tempo e que devia intrigar também os seus contemporâneos, o do desaparecimento do corpo de Bonconte. E pergunta o que ocorreu com ele, pois “jamais se soube de tua sepultura?” (che non si seppe mai tua sepultura?- v. 93).  A maior parte dos versos seguintes, na realidade, consiste numa explicação do que teria acontecido a esse cadáver.   

            Bonconte começa dizendo que no vale do Casentino passa um riacho chamado Arquiano, que nasce nos Apeninos e deságua no rio Arno. Foi nessa foz do rio que ele morreu, pronunciando o nome de Maria:

Là ‘ve ‘l vocabol suo diventa vano,
arriva’ io forato ne la gola,
fuggendo a piede e sanguinando il piano.

Quivi perdei la vista e la parola;
nel nome di Maria fini’, e quivi
caddi, e rimase la mia carne sola. (V, 97-102)

Lá onde aquela corrente perde o nome/ cheguei, com a garganta perfurada,/ fugindo a pé e ensanguentando o chão.
Ali perdi a visão e a fala,/ ao pronunciar o nome de Maria, e ali/ onde caí ficou somente minha carne.

            O “anjo de Deus” então o tomou, enquanto o do Inferno, ressentido, protestou de que ele levava a sua “parte eterna”, i.e. a alma, apenas “por uma pequena lágrima” (per una lagrimetta- v. 107),  enquanto ele ficou com o corpo. O demônio, dotado de inteligência e vontade orientadas para o mal, “moveu o fumo e o vento” (mosse il fummo e ‘l vento- v. 113) para causar uma chuva torrencial que encheu os rios.

Lo corpo mio gelato in su la foce
trovò l’Archian rubesto; e quel sospinse
ne l’Arno, e sciolse al mio petto la croce

ch’ i’ fe’ di me quando  ‘l dolor mi vinse;
voltòmmi per le ripe e per lo fondo,
poi di sua preda mi coperse e cinse. (V,124-129)
   

O avolumado Arquiano encontrou, em sua foz,/ o corpo meu gelado; e o lançou/ no Arno, e desfez no meu peito a cruz/
que eu fizera com os braços quando a dor me venceu;/ rolou-me pelas beiras e pelo fundo,/ depois cobriu-me com seu butim de entulho.

            Bonconte era filho de Guido de Montefeltro, líder gibelino, protagonista do canto XXVII do “Inferno”, onde estão os “falsos conselheiros”. No final da vida, ele se tornou franciscano. Após a morte, S. Francisco veio buscá-lo, mas ao contrário do que ocorreu aqui com o seu filho, foi o diabo quem saiu vitorioso na disputa pela sua alma. 


G.Doré- Pia
  
            O Canto encerra com a fala de Pia. O autor da “Divina Comédia” é elogiado por conseguir sugerir, em tão poucos versos (os transcritos abaixo), todo o drama dessa mulher, que teve morte violenta, causada pelo próprio marido. Sua doçura é indicada pelos versos que antecedem o pedido pelas preces. Diferentemente dos anteriores, ela primeiro pensa no bem-estar de Dante, no seu repouso, e depois faz o pedido, que aliás é dirigido a ele próprio, e não a terceiros, parentes ou amigos, o que indica também a sua solidão (2):  

Deh, quando tu sarai tornato ao mondo
e riposato de la lunga via,”
seguitò ‘l terzo spirito al secondo,

“ricorditi di me, che son la Pia;
Siena me fé, disfecemi Maremma:
salsi colui che ‘nnanellata pria

disposando m’avea con la sua gemma.” (V, 130-136)

 “Ah, quando retornares ao mundo/ e repousares desta longa jornada”, / o terceiro espírito, seguindo o segundo, disse,/ “recorda-te de mim que sou a Pia./ Siena me fez, e Maremma me desfez:/ bem o sabe aquele que me deu um dia/ o anel de esposa, com a sua gema”. 

            Pia era possivelmente da família Tolomei, de Siena, e foi jogada do balcão de um castelo em Maremma pelo marido, principal magistrado de Volterra e Lucca, por suspeita de adultério ou para poder se casar com uma rica mulher (3).  
  
D.Gabriel Rossetti- Pia de' Tolomei

NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam Books, 1984- p. 327

(2) SAYERS, Dorothy L.—“Dante: The Divine Comedy-  II. Purgatory”. Translated by Dorothy L. Sayers.  Penguin Classics, 1963, p.108-109

(3) MANDELBAUM, Allen- op cit, p. 328.


Amos Nattini


S.Dalí- Ilustração para o canto V do Purgatório