PURGATÓRIO
Canto II
Nos versos
iniciais deste Canto, para dizer que nascia o sol no Purgatório, Dante usa uma
longa perífrase. Refere-se aí a Jerusalém, situado no mesmo meridiano que a
montanha do Purgatório (embora diametralmente oposta a esta), e também à noite,
que se opõe ao sol, ou à aurora personificada (ela é a deusa do amanhecer na
mitologia clássica) presente nessa hora naquele lugar. De onde Dante estava, ele
a vê mudando de cor, à medida que o tempo passa:
/.../ le bianche e le vermiglie guance,
là dov’ i’ era, de la bella Aurora
per
troppa etate divenivan rance. (II,
7-9)
/.../
do lugar onde eu estava,/ as faces brancas e rubras da bela Aurora/ por muita
idade tornavam-se amareladas.
A noite também
é personificada. Os versos afirmam que a Balança (ou Libra, a constelação) “cai de suas mãos quando ela vence o dia”
(che le caggion di man quando soverchia- v. 6), quer dizer, quando a
primavera atual passar, e a extensão da noite for maior que a do dia (i.e.“vencê-lo”),
no equinócio de outono no hemisfério Norte. A noite então não estará mais em
Libra e sim o sol (no equinócio de
primavera a noite é aproximadamente igual ao dia em extensão, o sol está em
Áries e a noite, oposta a ele, está em Libra) (1). Essa passagem dá uma ideia de como Dante faz
uso, às vezes, do saber astronômico/astrológico de sua época...
G.Doré- O barco |
Os dois poetas
estão junto ao mar, na base da montanha do Purgatório. Dante diz que sua visão
é atingida então por uma luz muito forte e veloz, que vem do mar, e também por
uma alvura intensa, que vai se definindo aos poucos, começando por
identificar-se como as asas de um anjo. Trata-se de um “anjo de Deus” (angel di Dio- v.29), um “barqueiro celestial” (celestial
nocchiero- v. 43), que traz mais de cem almas para o Purgatório (v.45). Ele as
transporta desde a foz do Tibre (v. adiante, v. 101), o rio que banha Roma, a
cidade sagrada para Dante, sede da Igreja e do Império, em cujo âmbito
geográfico e de dominação política nasceu Jesus Cristo. Para esse local vão os
mortos que se arrependeram dos pecados em tempo. Eles aguardam ali o seu
traslado, do hemisfério Norte onde está Roma, para a montanha do Purgatório, no
hemisfério Sul.
Quando Virgílio
reconhece o timoneiro, manda rapidamente seu discípulo ajoelhar-se e juntar as
mãos, pois trata-se de um anjo de Deus. À medida que este se aproxima dos dois,
Dante é obrigado a abaixar os olhos, por não suportar a intensidade da luz que
dele emanava:
Poi, come più e più verso noi venne
l’uccel divino, più chiaro appariva;
per che l’occhio da presso nol sostenne,
ma chinail giuso; /.../ (II, 37-40)
Depois,
como mais e mais se aproximava de nós/ a ave divina, mais clara parecia;/ de
modo que meus olhos não podiam sustentar tal visão/ e fui forçado a abaixá-los;
/.../
G.Doré- O barqueiro celestial |
Os
comentaristas destacam o sentido alegórico desses versos. Dante é obrigado a
baixar os olhos porque ainda não está em condições de defrontar-se com a Graça
(2). No final do canto, quando Catão reaparece para censurar os recém-chegados,
ele vai dizer a eles: “Correi ao monte a despojar-vos da casca”
(Correte al monte a spogliarvi lo scoglio- v. 122), entendendo-se assim
que para ascender ao Paraíso e desfrutar da visão da bem-aventurança é
necessário toda uma purgação dos pecados que é feita justamente neste secondo
regno. A
propósito, o termo scoglio, traduzido normalmente por “casca”,
em sua forma arcaica é o mesmo que scoglia e significa pele de
cobra, que o réptil abandona todos os anos (3). Assim também o ser humano, para Dante, deve
perder tal pele, renovar-se, vale dizer, purificar-se, para evoluir
espiritualmente. Esse é o sentido dessa bela metáfora.
Os mais de cem
espíritos que chegam no barco cantam em uníssono (mostrando a sua união por um
ideal comum) o salmo 133 que começa com “In
exitu Isräel de Aegypto” (v. 46). O salmo é sobre a saída dos judeus do
Egito, rumo à Terra Prometida. Aqui também deve ser ressaltado o sentido
alegórico: assim como os judeus rumam para esse destino, livres da escravidão
no Egito, aos recém-chegados está prometida a sua salvação, o acesso ao
Paraíso, uma vez purgados dos pecados, ou seja, libertados deles.
O anjo
deposita-os na praia, após fazer o sinal da cruz sobre eles, e retorna
veloz. Eles ficam por ali, olhando em
torno, “como quem experimenta coisas
novas” (come colui che nove cose assaggia- v. 54), uma comparação. Alguns
deles perguntam a Virgílio qual é o caminho para subir o monte. Mas este lhes
responde que os dois poetas também não conhecem o lugar, que são peregrinos
como eles. As almas dão-se conta que Dante ainda é vivo, pela sua respiração, e
ficam espantadas com isso, aglomerando-se diante dele. E ocorre aqui uma
comparação interessante. A atração que esse fato exerce sobre aquelas almas é
semelhante à do mensageiro que traz notícias, portando um ramo de oliveira
(antigo costume, símbolo de boas notícias):
E come a messager che porta ulivo
tragge la gente per udir novelle,
e di calcar nessun si mostra schivo,
così al viso mio s’affisar quelle
anime fortunate tutte quante,
quasi oblïando d’ire a farsi belle. (II,
70-75)
E como
um mensageiro que porta um ramo de oliveira/ atrai as pessoas para ouvir as
novas,/ não se esquivando à aglomeração,/ assim fitaram o meu rosto aquelas/
almas afortunadas, todas elas,/ quase esquecendo de irem fazer-se belas.
É de se
destacar, no v. 75, a identificação da ética com a estética: as almas libertas do pecado tornam-se belas...
Dante então vê
uma sombra avançar em sua direção, com grande afeto, para abraçá-lo. E, ao fazer o mesmo, admira-se
porque nas três vezes que tentou fazer isso, suas mãos vieram dar no seu
próprio peito (v.80-81), quer dizer, o amigo era apenas uma aparência, sem um
corpo sólido. Essa é uma passagem impressiva que Dante-autor inclui para
certamente nos relembrar da natureza sobrenatural do ambiente em que eles estão
agora. Essa passagem é imitada de uma outra, da “Eneida” de Virgílio, que é
assim homenageado pelo poeta florentino. (4)
A sombra em
questão é o músico Casella, amigo e colaborador de Dante, que se supõe colocou
em música várias de suas “canções”. Dante, ao responder a uma pergunta dele,
afirma que faz esta viagem “a fim de retornar/
para lá de onde eu sou”:
“Casella mio, per tornar altra volta
là dov’ io son, fo io questo viaggio” ,
diss’ io; /.../ (II, 91-93)
cotal m’apparve, s’io ancor lo veggia,
un lume per lo mar venir sì ratto,
che ‘l muover suo nessun volar pareggia
(II, 16-18)
assim
me pareceu – e possa eu vê-la de novo --/ uma luz vinda pelo mar tão
rapidamente/ que nenhum voo de pássaro a igualaria
Casella lhe
explica depois que foi recolhido lá “onde
a água do Tibre se salga” (dove l’acqua di Tevero s’insala- v. 101), quer dizer, onde o
rio romano desemboca no mar, e que o anjo de Deus sempre recolheu ali aqueles que não
foram condenados ao Inferno (aqui referido pelo rio utilizado por Caronte, uma
metonímia):
A quella foce ha elli or dritta l’ala,
però che sempre quivi si ricoglie
qual verso Acheronte non si cala. (II,
103-105)
Àquela
foz ele endireita a asa/ uma vez que sempre ali se recolhem/ aqueles que não
descem ao Aqueronte.
Note-se que, no
início tanto do Inferno quanto do Purgatório as situações são equivalentes. Iniciam
pelo transporte dos mortos, uns desesperados e outros, esperançosos de salvação.
Porém há diferenças não só quanto à figura do barqueiro mas também quanto ao
comportamento das almas transportadas.
Na sequência, Dante
pede a Casella para ouvir o canto deste “que
costumava aquietar os meus anseios” (che mi solea quetar tutte mie
voglie- v.108)
Casella então começa a cantar “Amor que
na mente me fala” (Amor che ne la mente mi ragiona- v. 112), início de uma “canzone” de Dante que integra seu livro “Convivio” (“Banquete”). Ele canta tão suavemente que atrai a atenção
de todos que estão ali, esquecidos do propósito
de sua jornada, o que provoca a repreensão do “veglio onesto”. Dante via a Arte como capaz de aliviar as
nossas aflições, como mostra a observação que faz a Casella, ao formular o seu
pedido. Mas certamente acreditava que esse era um conforto passageiro. O conforto
permanente para a sua alma inquieta só seria dado num plano superior, transcendental,
quando a estética se fundisse com a ética, no Paraíso. É por isso que ele e seu
mestre fazem o mesmo que o bando de espíritos, após serem repreendidos por
Catão, vale dizer, também partem rapidamente em busca da montanha do Purgatório
(v. 133), interrompendo o desfrute do canto de Casella.
O canto conclui
com outra bela imagem (a partir do v. 124). Dante compara o que ocorre em
seguida à censura de Catão -- a rápida dispersão daquele bando de espíritos, em
busca da encosta da montanha -- com pombos que inicialmente estão bicando grãos
ou ervas e de repente, ao surgir uma ameaça, alçam voo, deixando para trás sua
comida.
NOTAS
(1) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. Bantam
Books, 1984- p. 321
(2) ZOLI, M e ZANOBINI, F- Dante Alighieri-
“La Divina Commedia”- a cura di M. ZOLI e F. ZANOBINI. Firenze: Bulgarini, 2013-
p. 406
(3) Id., ib., p. 409
(4) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”, op cit, p. 321-322.
Amos Nattini |
S.Dalí- Ilustração para o canto II do Purgatório. |